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Alguns livros brasileiros do ano

28/12/2006

Existe uma segunda vantagem em tentar acompanhar o turbilhão de lançamentos que comentei na nota abaixo: diante da tarefa de eleger os livros mais destacados do ano, basta pescar na memória aqueles que conseguiram fugir do campo gravitacional dessa algaravia-láctea, suspendendo a impaciência e a exasperação da leitura para instaurar seu próprio tempo. Ah, o critério é subjetivo? Evidente que é. O Todoprosa nunca foi outra coisa. (Existe mesmo quem seja?)

Os títulos à altura da façanha não foram tantos assim. Em meio ao borrão de velocidade que Thomas de Quincey, com uma argúcia que soa deliciosamente ingênua nestes tempos eletrônicos, identificou no futuro da humanidade ao contemplar em meados do século XIX a carruagem do correio inglês, os livros que carregam suas próprias cápsulas de tempo flutuam nítidos na memória do leitor que leu muito, leu demais, mas ainda se recusa a abrir mão do prazer como princípio básico da brincadeira.

Não houve livro brasileiro de ficção que eu tenha lido com mais gosto este ano do que Mãos de Cavalo (Companhia das Letras), de Daniel Galera, resenhado na época aqui. Não estou dizendo que seja uma obra-prima, uma obra irretocável. Uma leitura ranzinza identifica nele pelo menos um ponto que se poderia chamar de calcanhar-de-aquiles – uma virada de trama que, se não fosse habilmente mascarada pela estrutura temporal em vaivém, saltaria aos olhos como inverossímil e forçada num livro que nunca rompe com o realismo. Que a busca do tal “defeito” sirva de estímulo extra para quem ainda não leu esse caprichado romance de formação de um autor que evoluiu como nenhum outro de sua geração.

Para mim, o que torna “Mãos de cavalo” mais interessante é o respeito – jamais excessivo ou paralisante – que Galera demonstra pela tradição do romance clássico, pela dedicação a um ofício que nunca foi bolinho, num momento em que um certo neo-romantismo alimentado pela internet enfatiza o voluntarismo da expressão dos egos, afugentando leitores à mão cheia.

Deixei ele lá e vim, de Elvira Vigna, outro bom livro de 2006, dialoga com a tradição do romance de modo inteiramente diferente: idiossincrático e sacana. Mais madura que Galera, a autora está claramente interessada em demolir – e não em erguer – o barraco ficcional. Exige participação tão ativa do leitor, trabalha com tantas elipses, pistas falsas e puxadas de tapete, que em mãos menos habilidosas sua prosa correria o risco de se tornar ilegível. O mais bacana é isto: não se torna nunca. Pelo contrário, para resistir à escrita de Elvira só mesmo sendo um crítico brasileiro médio, desses que ignoraram a pequena jóia que, já a partir do título, é “Deixei ele lá e vim”. (O Todoprosa também frangou o livro, cerca de três meses atrás, mas tem o álibi da falta de tempo; terminei de lê-lo há duas semanas, e espero que sua inclusão nesta lista seja redenção suficiente.)

O terceiro lançamento nacional que me encheu os olhos em 2006 tem carga menor de novidade, mas sua edição inédita em livro é uma notícia espetacular: Cartas de viagem e outras crônicas, comentado aqui, reúne textos publicados no “Pasquim” por Campos de Carvalho, autor de “A lua vem da Ásia” e “O púcaro búlgaro”. Trata-se de um grande escritor que o Brasil de vez em quando tem que redescobrir – o que é uma forma de dizer que sempre o esquece. Foi o melhor título da boa coleção Sabor Literário, da José Olympio.

Outros prazeres de 2006: o pontapé inicial no bem-vindo relançamento de toda a obra de Luiz Vilela, com a novela inédita Bóris e Dóris (Record); a surpresa do finíssimo humor grosso de Edward Pimenta em O homem que não gostava de beijos (Record); os delírios verbais de Luiz Roberto Guedes em O mamaluco voador (Travessa dos Editores); a prosa simplíssima de Michel Laub na novelinha O segundo tempo (Companhia das Letras); a engenhosidade de Flávio Carneiro em A confissão (Rocco); a densidade poética de Ronaldo Monte em Memória do fogo (Objetiva). Houve mais, mas…

Ah, sim: 2006 fica na história como o ano em que Milton Hatoum, com Cinzas do Norte (lançado em 2005), ganhou todos os prêmios que havia para ganhar. Justo. E mais um sinal de que o romance-romance não está disposto a ser aposentado.

Até aqui, estamos falando de livros inéditos, mas relançamentos em grande estilo foram responsáveis por boa parte do espetáculo em 2006 – como devem ser. Puxando a fila das velhas novidades, A vida como ela é, de Nelson Rodrigues (Agir), marcou a mudança de endereço da obra em prosa do autor, até então na Companhia das Letras, e apresentou a uma nova geração essas obras-primas do conto-crônica carioca. Na época do lançamento escrevi sobre o livro aqui.

Outras boas notícias do ano: a continuação, pela editora Ouro Sobre Azul, do projeto de relançamento da obra do crítico Antonio Candido, chegando agora ao clássico Formação da literatura brasileira; e a exploração do rico filão do “Pasquim” que vem sendo promovida em ritmo acelerado pela editora Desiderata. A reedição de O nariz do morto, de Antonio Carlos Villaça (Civilização Brasileira), obra-prima do memorialismo brasileiro que resenhei aqui, também merece destaque, juntamente com a do esquecido romance A idade da paixão, de Rubem Mauro Machado (Bertrand Brasil).

23 Comentários

  • Pedro 28/12/2006em02:42

    “…livros que carregam suas próprias cápsulas de tempo.”

    Fico feliz, Sérgio, em ler nessa pequena frase o que tão atabalhoadamente tentei explicar nos dois parágrafos que postei na nota anterior.

    Concordo com quase tudo sobre “Mãos de Cavalo”, embora não tenha certeza se entendi bem o que foi o tal “defeito” ao qual você se referiu. Ainda acrescentaria outra qualidade ao livro: o retrato bastante verossímil de um tipo de classe média que raramente aparece nos livros e filmes brasileiros, que se ocupam mais da miséria dos sertões ou de tramas policiais. Como o critério é subjetivo, quem tem a mesma idade e origem social dos personagens se sente ainda mais envolvido com o livro, já que a descrição de hábitos, roupas, entre outras coisas, é irrepreensível.

    Por fim, não quero ser puxa-saco, e sim mais uma vez subjetivo: “Todo Prosa” foi para mim uma das boas novidades “literárias” do ano. (Não sei se o blog é de 2006, mas foi este ano que o conheci).

    Pedro David

  • Medeiros 28/12/2006em03:24

    Mas que ano chato, então… Foda-se o romance clássico, pois.

  • J R 28/12/2006em05:01

    Como paulista, não posso aceitar nem a menção do canalha do Nelson Rodrigues… A Ilha das Ostras é um lugar bom até demais para esse sujeito.

  • Homero 28/12/2006em09:08

    Sergio, e os melhores não-brasileiros?

  • Saint-Clair Stockler 28/12/2006em09:24

    O livro da Elvira Vigna é, para mim, o melhor lançamento brasileiro do ano. O mais incrível é que ela tem um outro romance (“A um passo”) que é uma obra-prima, nada de melhor foi lançado no Brasil há pelo menos 30 anos, e quase ninguém comentou sobre ele – justamente porque “o crítico brasileiro médio” não tem, sorry, capacidade para analisá-lo.

  • Sérgio Rodrigues 28/12/2006em09:47

    Homero, os estrangeiros chegam amanhã. Abraço.

  • Ricardo Mainieri 28/12/2006em11:21

    Vou pesquisar alguns livros que vc. citou.
    Este artigo prova que a literatura nacional pulsa novidade e buscas estéticas.
    Sobre Ronaldo Monte, trata-se do poeta e prosador paraíbano?
    Existe muita gente boa que circunavega pela NET e ainda não foi devidamente descoberto pelas editoras.
    Falo de Antônio Mariano, paraíbano, Antonio Naud Jr, baiano, Márcia Maia, pernambucana, Rubens da Cunha, catarinense, Geraldo Neres, paulista e tantos outros com excelentes produções.

    Abraços e Feliz 2007.

    Ricardo Mainieri

  • Sérgio Rodrigues 28/12/2006em11:26

    E, Pedro David, o Todoprosa nasceu mesmo em 2006, em maio. Obrigado pela leitura e pela mensagem. Feliz 2007.

  • Roberto 28/12/2006em12:16

    Esse Daniel Galera tem a mão. Às vezes tenho a impressão de que ele se leva a sério demais, mas enfim: talvez seja só impressão. Li pouco livro nacional esse ano, infelizmente, mas gostaria de registrar a boa surpresa que tive com “A história dos ossos”, de Alberto Martins. Fugindo um pouco da área de ficção, gostei muito do “Passos de Drummond”, de Alcides Villaça, um dos estudos mais certeiros e delicados que já li sobre o monstro de Itabira.

  • Marcelo Moutinho 28/12/2006em12:17

    Boa lista. Comprei há pouco o da Elvira e estou curioso para ler. O Michel Laub é muito bom escritor…

  • Mr. Ghost(WRITER) 28/12/2006em13:45

    Estranho… eu tinha a nítida sensação que o Todoprosa era anterior ao ano de 2006…

  • Mr. Ghost(WRITER) 28/12/2006em14:00

    Ségio, amigos cometaristas, peço desculpas por fugir do tema do post, mas queria saber caro Sérgio, quando foi a estréia do Todoprosa e qual era a aputa. Agradeço desde já e peço desculpas mais uma vez pela fuga do tema.

    P.S.: poderia colocar o link? Obrigado.

  • Sérgio Rodrigues 28/12/2006em16:45

    Mr Ghost, o Todoprosa estreou no dia 8 de maio com duas notas sobre o futebol na literatura brasileira. Clicando aqui à direita no arquivo do mês de maio você pode ler todas as notas daquele mês.

  • Mr. Ghost(WRITER) 28/12/2006em20:38

    Obrigado Sérgio, queria saber para constar na memória… como disse, por algum motivo estranho sempre achei que o Todoprosa era mais antigo. Acredito que essa impressão seja pelo número constantes de acessos que fiz e faço, apesar de só ter começado a comentar há pouco tempo. Acredito que é dai que decorre a impressão de mais idade, além do que, a qualidade com que as coisas se dão por aqui também sempre apareceu muita experiência no andar da carruagem.
    Obrigado pela informação Sérgio, e mais uma vez desculpe pela fuga do tema do post…
    Feliz ano novo a todos. Abraços.

  • Saint-Clair Stockler 28/12/2006em22:07

    Feliz Ano Novo, Mr. Ghost(WRITER)!

  • Alan de Faria 29/12/2006em00:29

    Passei quase perto de alguns desses autores neste ano… “Mãos de Cavalo” quase me pegou, mas fui fisgado por livros de jornalismo-literário… “O Poder e o Mito”, de Gay Talese; ou até mesmo o “atual” “A Hora em que Não Sabíamos Nada Um dos Outros”, de Phillip Gourevictch (impossível não lembrar deste livro ao ler, nos jornais, notícias do conflito Etiópia Somália)…

    mas vou atrás de romances e ficções… afinal de contas, é preciso ficcionar, também, a minha carreira iniciante de jornalista.

    até mais
    se cuida!
    feliz 2007!

  • Clarice 29/12/2006em18:31

    Bem lembrado. Vou reler “Formação da Literatura Brasileira”. Agora.

  • Rubem Mauro Machado 30/12/2006em12:45

    Prezado Sérgio
    antes de mais nada quero agradecer a menção a “A idade da paixão” entre as reedições do ano. Sabendo-se da montanha de títulos publicados, é uma referência valiosa de sua parte.
    Gostaria apenas de acrescentar algumas observações.
    A primeira é a de que não havia como o livro não estar esquecido. Entre a primeira edição, quando recebeu o Jabuti de romance de 1986 e se esgotou, e agora, quando é reeditado, passaram-se vinte anos e nem em sebo era encontrado. No arquivo morto da José Olympio restou um único exemplar. Portanto, considero que, em termos estatísticos, um livro que vendeu três mil exemplares há vinte anos pode ser considerado praticamente inédito.
    Mas para mim o que faz desta uma reedição “ambígua” ou “anfíbia”, é o fato de que o romance foi reescrito de cabo a rabo, o que resultou não só no depuramento de sua linguagem como num aumento de quase setenta páginas do texto. Como digo numa “Nota do autor”, tenho agora um livro que é o mesmo e ao mesmo tempo não é; mas com a tranquila certeza de que esta é a versão definitiva.
    Creio que os esclarecimentos são importantes para um eventual interessado nesta história de um jovem no ano de 1961.
    Abraço com estima do seu múltiplo leitor

    Rubem Mauro Machado

  • Sérgio Rodrigues 31/12/2006em12:26

    Valeu o esclarecimento, Rubem. Desejo boa sorte ao livro nessa nova encarnação. Um grande abraço.

  • maria emília 31/12/2006em13:24

    sérgio: sua coluna brilhou em 2006. tenho a impressão de que você é dos poucos (seria o único?) que comentam sistematicamente os lançamentos.
    (alan de faria se confundiu: o título do livro do gourevitch é “gostaríamos de informá-lo de que amanhã seremos mortos com nossas famílias”, um pouco maior que o do peter handke.)

  • Sérgio Rodrigues 01/01/2007em12:13

    Obrigado, Maria Emilia. Feliz 2007.

  • Aroldo Zimdevo 22/01/2007em16:11

    Caro Sérgio, a poesia parece ser mesmo o “patinho feio” de nossa literatura. Como exemplo, veja a sua lista. Nada contra ela, mas 99,9% prosa.
    E já que você não quis entrar no mérito, se me permite, vou dar algumas sugestões que já estão em meu blog, sobre os melhores lançamentos poéticos de 2006. Lá vai:
    1) “Elegias”, de Ivan Miziara, poeta quase desconhecido. Livro rico, denso, inovador. Vale dar uma lida no estudo sobre a obra desse poeta, feita pelo Izacyl Guimarães, no portal da UBE;
    2) “Raro Mar”, de Armando Freitas Filho, poeta bem conhecido. Esperava mais, mas ainda assim uma bela obra;
    3) “O Roubo do Silêncio”, de Marcos Siscar, ganhou o Goyaz no ano passado. Não é inovador como o livro do Miziara, mas prevê altos vôos futuros;
    4) “Árvore Seca”, de Alexei Bueno. Não esperava tanto, confesso, e esse livro me surpreendeu; e, por fim,
    5) “O cão de olhos amarelos”, de Alberto Cunha Melo.
    Se conseguirem encontrar alguns desses livros nas melhores casas do ramo (o que já é uma aventura), comprem correndo.
    Abrs.
    Aroldo Zimdevo

  • Sérgio Rodrigues 22/01/2007em16:28

    Caro Aroldo, obrigado por sua lista, mas tomar a minha como termômetro do baixo prestígio da poesia não faz sentido. O Todoprosa trata de prosa, ponto. É algo assumido desde o nome. Nada contra a poesia, apenas questão de foco. Um abraço.