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Bom-mocismo nas letras

02/07/2010

O post de hoje é um texto longo – longuíssimo, para os padrões da internet. Foi publicado em maio na revista “Veja Especial Mulher”, que retomou o fio de uma edição de 1967 – apreendida por ordem do Juizado de Menores – da extinta “Realidade” para investigar quatro décadas de mudanças na situação da mulher na sociedade brasileira. No caso das letras, a parte que me coube, a pauta acabou virando uma reflexão sobre o tratamento do sexo na literatura, tanto a feminina quanto a masculina. Assunto de Todoprosa, portanto. Então lá vai.

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“Sempre fomos o que os homens disseram que nós éramos. Agora somos nós que vamos dizer o que somos.” O grito de guerra de uma personagem de Lygia Fagundes Telles no romance “As meninas”, de 1973, ecoou em milhares de “quartos só delas” – aquilo que a escritora inglesa Virginia Woolf, em um célebre ensaio de 1929, declarou ser fundamental para que as mulheres pudessem escrever, isolando-se dos outros papéis sociais que a sociedade lhes impunha. Por trás de suas portas fechadas, enquanto soprava na janela a ventania do feminismo, as escritoras brasileiras lançaram-se nas últimas quatro décadas à tarefa de contrapor sua própria voz a uma tradição literária maciçamente masculina. De um modo que não surpreenderia Sigmund Freud, a maior revolta se deu onde era maior a repressão: do erotismo sutil às abordagens gráficas que flertam com a pornografia, o tema do sexo foi o grande campo de batalha dessa revolução.

Mas terá sido mesmo uma revolução? Embora esteja desgastada, a palavra se aplica. Desde o momento em que a revista “Realidade” fez sua enquete de 1967, uma revolução de tinta e papel – mais veloz e vertiginosa do que o avanço flagrado pelas pesquisas em áreas como comportamento e mercado de trabalho – expandiu dramaticamente as fronteiras daquilo que as escritoras podiam expressar sem correr o risco de um apedrejamento real ou metafórico. Por injunções que não eram apenas literárias, mas refletiam mudanças mais profundas na cultura e nas relações sociais, o erotismo místico e caseiro da poeta mineira Adélia Prado (“é em sexo, morte e Deus,/ que eu penso invariavelmente, todo dia”) foi recebido sem escândalo em 1976, quando saiu seu livro de estreia, “Bagagem”. Isso a poupou do ostracismo social – e até certo ponto literário – a que fora condenada em 1915, também por seu primeiro livro, uma pioneira como a carioca Gilka Machado (“Eis-me, lânguida e nua,/ para a volúpia tua”).

Para encontrar, nos últimos anos do século 20, uma medida de choque comparável ao deflagrado por Gilka Machado, seria preciso recorrer às narrativas assumidamente “obscenas” que a poeta e prosadora paulista Hilda Hilst publicou em sua fase madura, como “O caderno rosa de Lori Lamby”, de 1990. Goste-se ou não desse livro estranho, em que uma menina de oito anos prostituída pelos pais descreve com candura suas experiências sexuais, é possível argumentar que ele assinala uma espécie de auge da libertação literária feminina, ao qual se seguiu um inevitável declínio. Hoje, poemas carregados de gritos orgásticos e fluidos genitais tornaram-se, para as jovens aspirantes às letras, um gênero tão banal e recheado de clichês quanto foi o amor impossível para os poetas românticos do século 19 ou a ode ao povo para os bardos engajados dos anos 1960.

Tudo isso é bom, pelo simples motivo de que liberdade é melhor que prisão. No entanto, antes de comemorar o sucesso de uma certa revolução feminista nas letras, deve-se levar em conta que – como qualquer revolução – esta não cumpriu todas as suas promessas nem escapou de certas armadilhas típicas dos processos emancipatórios. No ambiente pós-feminista do terceiro milênio, enquanto a literatura vive das migalhas de seu antigo prestígio social e a oferta erótica se multiplica em sites e programas de TV, os desafios diante dos escritores de ambos os sexos parecem ser outros. Depois que uma garota de programa chamada Bruna Surfistinha tomou de assalto com seu livro de memórias, “O doce veneno do escorpião”, as listas dos mais vendidos de 2005, talvez tenha chegado para a literatura a hora de refletir sobre uma frase do romancista americano Gore Vidal: “O sexo não constrói nenhuma estrada, não escreve nenhum romance, e certamente não dá sentido a nada na vida além de si mesmo.”

Desde aquele mesmo 1967, e de forma mais impressionante que a própria produção das escritoras, os estudos literários centrados em questões de gênero viveram uma explosão. Parte da onda de “estudos culturais” que varreu os departamentos universitários de ciências humanas no período, eles abraçaram a estratégia de botar sob suspeita toda a história da literatura como uma conspiração de “machos brancos heterossexuais mortos”, substituindo o enfoque estético pelo político e as obras consagradas pelos testemunhos de minorias – sobretudo mulheres, gays e negros. O leitor comum não tomou conhecimento disso, mas a influência de tal pensamento politicamente correto nos círculos intelectuais, inclusive entre os próprios escritores, é considerável. O problema é que agendas políticas não costumam conviver bem com a criação artística.

Um exemplo: quando a professora Cristina Ferreira-Pinto, brasileira que leciona na Washington and Lee University, nos EUA, diz em seu livro “Gender, discourse and desire in twentieth-century Brazilian women’s literature” (Gênero, discurso e desejo na literatura feminina brasileira do século 20) que “o melhor exemplo da perspectiva masculinista do corpo feminino é “Gabriela, cravo e canela”, de Jorge Amado”, livro cuja protagonista seria retratada pelo autor “de um ponto de vista patriarcal”, é inevitável pensar que todos os exemplos de reação literária feminina que ela cita em seguida parecem condenados à irrelevância. Gabriela é um ícone cultural de massa. Quem é a anti-Gabriela da literatura feminina? Não há, nem poderia haver: para começo de conversa, as letras simplesmente já não têm a importância que tinham há meio século, quando saiu o romance de Amado. Ainda que tivessem, porém, jogar nos ombros de obras de arte o peso de uma missão política é injusto. As dificuldades propriamente artísticas em seu caminho são mais que suficientes.

Dessa promessa impossível deriva a armadilha mais traiçoeira da literatura feminina “de combate”, a mesma que, em nome de uma virada de mesa, encurralou parte do pensamento feminista na imitação pouco criativa do que havia de pior no mundo masculino: no caso do erotismo na literatura, o desejo autocentrado, a transformação do outro em mero objeto de prazer. É o que se vê por exemplo nas histórias da contista paulistana Márcia Denser, que fizeram sucesso de crítica nos anos 1980. Sua personagem-símbolo, Diana Marini, é uma predadora de homens – “Diana Caçadora” é o título de um de seus livros, lançado em 1986. Erigida em paladina do erotismo feminino, Denser apresentou outras autoras em antologias de oportunidade intituladas “Muito prazer” e “O prazer é todo meu”, que, como seus próprios livros, guardam hoje um travo de época.

De forma curiosa, a maioria dos escritores homens da nova geração vem adotando, dentro e fora do Brasil, uma postura nitidamente mais encucada e menos agressiva que a da geração de seus pais no tratamento do erotismo. O que pode muito bem ser mais um resultado da onda feminista. Se o brasileiro Rubem Fonseca e o americano Philip Roth sempre tiveram um fraco por personagens priápicos que colecionam mulheres, hoje isso tende a ser visto como um sinal de mau gosto e cafonice. Em 1997, em artigo polêmico, o influente escritor americano David Foster Wallace, nascido em 1962 (e que se enforcou em 2008), atacou Roth como membro – ao lado de seus contemporâneos John Updike e Norman Mailer – do time dos “Grandes Machos Narcisistas”. Tal tipo de bom-mocismo levou a acadêmica americana Katie Roiphe, em artigo publicado em dezembro de 2009 no “New York Times”, a alfinetar a geração de Wallace como “cool demais para o sexo”.

Talvez Roiphe cometa uma injustiça ao ver apenas pose e acanhamento existencial na postura de Wallace e seus contemporâneos. Parece natural e até saudável que, após uma época obcecada com a liberdade sexual como foram os anos 1960-70, a literatura se dedique no século 21 a uma investigação mais tateante de um tema que, no fim das contas, permanece um grande mistério cravado no coração do humano. “A grande tragédia da carne começou quando o homem separou o sexo do amor”, disse Nelson Rodrigues, que já foi chamado de pornográfico. A frase pode ser considerada conservadora, mas não desprezível. Quando tudo pode ser dito, resta a tarefa gigantesca de decidir o que, em termos propriamente artísticos, merece ser dito.

5 Comentários

  • Rodrigo 02/07/2010em08:43

    Oi Sérgio, teu post vem em um momento interessante, pois estou lendo Solar do Ian McEan, acabei de passar pelo trecho em que o tema da presença feminina nas ciências é debatido.
    Eu já me coloquei esse questionamento sobre a insistência dessas personagens macho-dominantes em um certo momento da literatura, mas cheguei a conclusão de que se tratam de personagens imersas em narrativas egocêntricas, o machismo é apenas uma das expressões desse egocentrismo que faz a narrativa parecer operar a mercê dos desejos narcísicos e infantis da personagem. A compulsão para o sexo e o machismo seriam consequencia disso. Nesse sentido, apesar de o politicamente correto esconjurar o machismo da ficção contemporânea, a estreiteza de pensamento e a consciência turvada por idiossincrasias segue prevalecendo em muitas narrativas.
    Por isso, acho que McEwan acerta mais uma vez ao construir uma personagem absurdamente egocêntrica e macho-dominante que é, entretanto, devassada por uma narrativa que a ironiza e ridiculariza constantemente.
    Ao ler as tuas considerações sobre a onde de estudos culturais nas ciências humanas, não pude deixar de recordar as passagens de Solar que satirizam o construcionismo social pós-moderno.
    Gostei muito do teu artigo.Um abraço.

  • Marcelo ac 04/07/2010em12:41

    Sérgio, depois que Flaubert publicou se Madame Bovary, em pleno século XIX, acho que o que o feminismo fez foi até redundante em termos literários. Ficou-se girando em torno de um mesmo eixo, como muito bem apontou o artigo. Não podia ser diferente, haja vista os séculos de opressão. Em todo caso, hoje a gente vê essa libertação até como aliada dos homens. Hoje, os homens não são mais obrigados a desempenhar o mesmo papel super machista que a própria engrenagem que ele ajudou a criar acabou se impondo a todos nós homens, heteros. O feitiço acabou se virando contra o próprio feiticeiro, e ainda bem, ainda bem, que não temos mais esse papel a desempenhar. A revolução feminista foi também uma revolução masculina.

  • Marcelo ac 04/07/2010em12:46

    Desculpe a continuação: hoje, podemos brochar, hoje podemos usar viagra que as coisas se resolvem, e na frente da escolhida! Pô, isso é o que se pode chamar de libertação de um jugo!!!!!!

  • Márcia Denser 18/01/2011em10:25

    Meu prezado, que inveja você tem de mim não?
    Isto até te desatualiza;por exemplo, editei Caim, romance (2006) e Toda Prosa – Obra Escolhida (2008), ambos pela Record, com posfácio da Cris Bailey-que vc devia ler direito, não citá-la em vão.Ele diz de mim justamente o oposto que vc coloca. Em 2003, Diana Caçadora/Tango Fantasma foram reeditados e estão em segunda edição pela Ateliê Editorial, com edição de Marcelino Freire, capa de Nelsinho de Oliveira, Prefácio de Bernardo Ajzenberg e orelhas de Marcelo Mirisola, como vê um grande homenagem de toda a geração dew 90, posterior à minha. Significando que povoei o “imaginário” deles. E quanto!Vc tem todo o direito de não gostar do quê eu escrevo, mas não informe errado o leitor. Quando te é conveniente, claro. E o Paulo Francis, meu maior crítico, como fica nessa história? E o Wilson Martins, meu caro? E depois o “crítico” é você. E quem é você?
    Alimento para o esquecimento?

    • sergiorodrigues 18/01/2011em14:31

      Cara Márcia, lamento que meu artigo a tenha ferido tanto. Com um pouco menos de ressentimento, você certamente poderia se orgulhar de ter seu nome citado nesse breve sobrevoo da literatura feminina brasileira, ao lado de escritoras muito mais importantes. Significa que bem ou mal deixou uma marca – ainda que, como eu digo no texto, seus melhores trabalhos me pareçam presos na moldura dos anos 80. Acontece. Se um dia eu for escrever, em vez de um artigo histórico, uma apreciação da sua obra (não tenho intenção de fazê-lo, mas nunca se sabe), pode ficar tranquila que consultarei a fortuna crítica que você amealhou na época – imagino que haja outros nomes além dos finados Francis e Martins. Respondendo sua pergunta retórica (você sabe bem quem eu sou), sugiro que consulte os amigos da geração mais nova que você cita. Eles poderão lhe dizer que não me intitulo “crítico”, o que não quer dizer que não pense criticamente, e desconfio que seja isso que meus leitores bem-informados venham buscar aqui. Por fim, achei engraçada a história da inveja. Inveja de quê? Se eu fosse ressentido ou tivesse menos noção das coisas, poderia acusá-la de ser a invejosa do pedaço, citando o nome de sua coletânea Toda Prosa, lançada quando meu blog, Todoprosa, já fazia sucesso há dois anos. Mas prefiro acreditar em coincidência ou essas coisas do Zeitgeist. Feliz 2011 pra você.