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Começos inesquecíveis: Tomás Eloy Martínez

18/02/2008

eloymartinez.jpgPouco depois da morte de Mãe, a Brepe deu para pular dentro do sono de Carmona. Fitava o homem enquanto ele se despia e, quando ele apagava a luz, arqueava as costas e ia se erguendo nas patas, pronta para caçar o sonho de Carmona e depená-lo assim que levantasse vôo. Mas os sonhos de Carmona não eram pássaros, e sim gatos: ásperas trevas de gatos, línguas de gato movendo-se entre tições de negra luz.

O homem dormia de boca aberta e, quando ele adentrava o cone de escuridão onde pairavam os sonhos, uma manada de gatos saía de sua boca rasgada por berros de cio e mergulhava no rio dos engenhos de açúcar.

É a primeira vez que promovo aqui o cruzamento das duas seções citadas no título acima, mas tenho um bom motivo. Normalmente, a eleição de um Começo inesquecível exige um tempo de maturação de leitura que é, por definição, incompatível com o espírito apressadinho abrigado sob a rubrica Primeira mão. Certo, mas as frases iniciais da recém-lançada edição brasileira de “A mão do amo” (Companhia das Letras, tradução de Sérgio Molina e Lucas Itacarambi, 168 páginas, R$ 36), romance publicado em 1991 pelo argentino Tomás Eloy Martínez, me agarraram pelo pescoço de tal forma que fico tentado a chamá-las aqui, meio pomposamente, de melhor tradução literária da sintaxe onírica que já li. Sempre gostei de ler – e de escrever – sobre sonhos, esses vizinhos ariscos da ficção, que parecem nunca estar em casa quando tocamos a campainha. Por alguma razão, a beleza feroz de “línguas de gato movendo-se entre tições de negra luz” me parece insuperável.

5 Comentários

  • ricardo 18/02/2008em15:02

    Outro começo inesquecível:

    “When a day that you happen to know is Wednesday starts off sounding like Sunday, there is something seriously wrong somewhere.”

    (The day of the triffids, John Wyndham)

  • Marco Polli 18/02/2008em15:06

    Gostei muito também do “adentrava o cone de escuridão onde pairavam os sonhos”. Vou ter que evitar o TP para o bem do meu bolso.

  • Cezar Santos 18/02/2008em16:52

    Sergio, terminei um livro do Martínez domingo (O Vôo da Rainha), e mesmo ainda sem conseguir definir se gosto ou não do estilo do cara, devo admitir que ele tem uma certa pegada. Parece que esse ai tem força, levando-se em conta esse começo destacado por ti.
    De qualquer forma, pelo relativamente pouco que conheço, acho que a literatura argentina atual está melhor que a brasileira, que anda muito cheia de “garotos prodígios”, gente sem substância, sem experiência de vida, que se põe a escrever.

  • C. S. Soares 19/02/2008em19:07

    A frase é boa mesmo, Sérgio. Certos livros não foram escritos para serem lidos, e sim degustados. Esse trecho parece prenúncio de um livro dessa categoria. Vamos conferir. Uma pergunta: sendo um leitor dos mais interessados e cuidadosos, o que você achou das teorias do professor Bayard em seu Como falar dos livros que não lemos?

  • Sérgio Rodrigues 21/02/2008em00:09

    Claudio: não li o livro do Bayard, mas vou seguir o conselho dele e comentá-lo assim mesmo. Pelo que andei lendo a respeito, é uma provocação, pouco mais que uma boutade espichada, mas feita com inteligência. Espero encará-lo em breve.