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Deus e o diabo na terra do ‘só’

11/01/2014

fósforoEntão é só isso? Umas poucas palavras bem colocadas e pronto, ali está o leitor na ponta da linha, anzol cravado na bochecha? Sim, mas também pode ser só isso: uma única palavra em falso e o peixe desaparece nas profundezas para nunca mais passar perto do seu bote. O que vai ser?

Em qualquer praia estética, esteja ele muito ou nada interessado em ser acessível a um grande número de leitores, acredito que esta preocupação habite a cabeça de todo escritor digno desse nome, isto é, qualquer um que escreva para ser lido por alguém e não apenas para expressar seu eu profundo: como dar às palavras, uma após a outra, uma certa ressonância de verdade?

Estamos em terreno traiçoeiro. Em primeiro lugar convém deixar claro que a palavra verdade não tem aqui – não ainda – a menor fumaça filosófica, histórica ou mesmo emocional. Importa menos “a verdade” do autor ou da história que ele conta do que “uma certa ressonância de verdade”. Sim, é claro que uma dimensão está ligada à outra em algum nível profundo, mas vamos supor que ainda não mergulhamos o suficiente para chegar lá. Estamos na superfície do texto, mal equilibrados em nosso botezinho. Tateantes, inseguros, estendemos a mão e escolhemos palavras para espetar no anzol. Como saber qual é a palavra certa?

Bom, certeza nunca se tem. Tentativa e erro, escrever e reescrever, serão sempre processos indispensáveis do ofício. Contudo, tanto o escrever quanto o reescrever podem e devem ser guiados por alguns princípios gerais, e entre estes acredito que os mais valiosos, quando se trata de buscar uma certa ressonância de verdade, são aqueles que giram em torno do detalhe eloquente, preciso, revelador.

A ideia já foi expressa de diversas formas por grandes escritores. Vladimir Nabokov recomendou “acariciar os detalhes” – isto é, tratar amorosamente as minúcias, prodigalizar-lhes atenção, gastar tempo com elas. Anton Tchékhov cunhou uma bela máxima: “Não me diga que a lua está brilhando; mostre-me seu reflexo num caco de vidro”. Margaret Atwood discorreu de modo comovente sobre a capacidade que tem a literatura – em contraste com o cinema, por exemplo – de pintar cenários grandiosos com base em quase nada, a chaminha trêmula de um palito de fósforo passando por grande incêndio.

Diferenças sutis à parte, o que se percebe em todos esses casos é a valorização do específico sobre o genérico, da parte sobre o todo, do menos sobre o mais. O reconhecimento de que as palavras são só fagulhas que provocarão uma explosão – não na própria página, mas na cabeça do leitor.

É assim que, em vez de dizer que “o calor era senegalesco”, esse lugar-comum fossilizado, ou mesmo que “o termômetro marcava 42 graus”, quase sempre será mais eficaz em termos literários mencionar um dos efeitos concretos da alta temperatura – só isso. O asfalto amolecido que afunda sob o tênis do protanista. As ondas de vapor distorcendo a paisagem vista da janela. O cara que abre a geladeira de picolé da padaria e enfia a cabeça lá dentro. A louca de meia idade que tira toda a roupa e mergulha no chafariz da praça, sob o olhar complacente do guarda gordo que não se anima a deixar a sombra de sua árvore. A evaporação integral dos oceanos revelando os esqueletos de galeões naufragados sob montanhas de peixes mortos.

Escolhido num cardápio infinito que vai do mais prosaico ao mais fantástico, o tipo de detalhe, de metonímia, de condensação depende das intenções de cada um, claro. Não se trata aqui de ensinar a produzir harmonias e melodias, apenas de afinar o instrumento. O que importa é dar ao leitor a ilusão de que quem escreve habitou realmente aquela cena, motivo pelo qual é capaz de apontar – só isso – seus mínimos efeitos sensoriais, em vez de se limitar a sobrevoá-la e produzir uma platitude totalizante como “fazia um calor infernal”.

As batalhas homéricas não teriam nem metade de sua violência se o texto não nos levasse a ouvir o ruído de ossos e tendões partidos a golpes de espada. Ah, então é só isso? Não, não é só isso. Mas é um bom começo.

3 Comentários

  • Ataliba 13/01/2014em11:55

    Muito bom o texto. Parabéns Sérgio.

  • FabioS 16/01/2014em21:12

    Qual a diferença entre o calor Senegalês e o Congolês????? vc não acha que a primeira missão é se fazer entender? eu sinto que muitas vezes uma boa estória é perdida pela chatisse do escritor. Eu acho que o calor Congolês pode ser coerente se esta for a voz do narrador, não acha?

  • Pablo 01/02/2014em15:28

    Sérgio, saber que há “alguém” do outro lado da linha (da escrita) também não significa apostar numa leitura que talvez não exista? Quero dizer: quantos leitores caberão nesse “alguém”? Onde moram, o que já leram, quais as suas próprias histórias? Enfim, o que haveria justamente de “comum” nessa comunicação? Por isso acho também que toda discussão em torno de uma suposta “aura” (talvez até da auréola) da arte – sobretudo a literária – passa igualmente por aí. Quero dizer: criou-se um suporte (o livro moderno, reproduzível em escala industrial e vendido nas melhores livrarias) cuja exigência de definição é incompatível com o tempo do aprendizado da escrita (se é que, além do critério da “reescrita”, vale também o do “ainda estou vivo”). E isto sem falar no próprio aprendizado individual e coletivo da leitura. No fundo, é claro que a autoria hábil e sensível de um texto “já acabado” (fruto, sejamos francos, muito mais da profissionalização do escritor por meio da comercialização do livro do que qualquer outra coisa) é algo de encher os olhos, mas isso ainda vai depender do “leitor” que compartilha esses ou aqueles atributos/códigos linguísticos, éticos, estéticos e assim por diante. Em suma: não seria também interessante colocar em questão a própria história do ‘livro’?