Clique para visitar a página do escritor.

‘Era uma noite escura e tempestuosa’: sobre o clichê

11/12/2015
Snoopy, Bulwer-Lytton e a capa do livro de Loureiro: santíssima trindade do chavão

Snoopy, Bulwer-Lytton e a capa do livro de Loureiro: santíssima trindade do chavão

Conversando com uma amiga, romancista talentosa que tem ministrado oficinas literárias, ela dizia que uma de suas maiores dificuldades é explicar aos alunos o que vem a ser um clichê. Fazer o orgulhoso autor de uma frase como “as ondas lambiam voluptuosamente a areia”, que tanto o agrada por sua carga poética, compreender que ela é inaceitável. Não apenas ruim mas desclassificante, algo que um leitor mais exigente tenderá a interpretar como deixa para desistir do livro.

Nessa hora, talvez seja didático mencionar o exemplo de Snoopy. E de Bulwer-Lytton. E de Urbano Loureiro. E de tantos outros que começaram ou se sentiram tentados a começar uma história com aquela frase imortal, emblema supremo do clichê literário em todos os tempos:

“Era uma noite escura e tempestuosa.”

Romancista, poeta, dramaturgo, político e barão, Edward Bulwer-Lytton (1803-1873) passou à história com a glória irônica de ter sido seu criador. Se alguém já tinha usado uma fórmula parecida, o que não acho improvável, a imensa popularidade da obra do nobre inglês em sua época garantiu à frase de abertura de seu romance Paul Clifford o privilégio de fixar a construção exata, a forma irretocável do clichê:

“It was a dark and stormy night.”

Snoopy, o beagle de Charlie Brown, foi seu maior divulgador durante décadas. Batucando numa máquina de escrever acomodada no telhado de sua casinha, o cachorro com veleidades literárias criado pelo cartunista Charles M. Schulz era dado a começar assim os livros que nunca terminava. A tira abaixo é só um exemplo.

It-was-a-dark-and-stormy-night-until-edited

Desde 1982, um concurso literário galhofeiro organizado pelo departamento de letras da Universidade de San Jose, na Califórnia, escolhe todo ano as frases de abertura mais clichezentas que lhe são submetidas – não é preciso escrever o livro inteiro, basta começar muito mal, como Snoopy. O concurso merece a atenção deste blog desde 2006 e se chama Bulwer-Lytton Fiction Contest, o que é justo.

No entanto, se alguém se animar a organizar uma brincadeira semelhante em português, fica a sugestão: que tal deixar a memória do escritor vitoriano em paz e privilegiar um sucedâneo lusófono? Existe um romance português lançado em 1878 que começa assim:

“Era por 1880, uma noite carrancuda e tenebrosa…”.

O livro é “Infâmia de frei Quintino – romance d’uma família”, de Urbano Loureiro. Achei a dica numa postagem de 2009 no site português Sorumbático e desde então o sol tem me sorrido com nova e insuspeitada radiância no azul-anil de um céu de brigadeiro, entre outros clichês alegrinhos. Bulwer-Lytton que me perdoe, mas Urbano Loureiro é o cara!

4 Comentários

  • Silvio 12/12/2015em14:48

    O clichê é um sinal de desgaste da linguagem. E isso faz com que ele tenha um grande potencial para virar objeto da literatura satírica, por exemplo: os adágios de Sancho Pança, escudeiro de Dom Quixote. No curioso ‘Dicionário do Diabo’, o americano Ambrose Bierce dá uma hilária definição: “Clichê: uma medusa murchando na beira da praia do pensamento.”

  • Don Gately 13/12/2015em06:43

    Sérgio, será que faz sentido a gente pensar que clichês só deveriam ser rejeitados quando expressos por narradores oniscientes? Digo isso porque, dentro de uma perspectiva realista, a utilização de frases desbotadas ditas por personagens intelectualmente normais é não só possível como tecnicamente desejável, caso levarmos em conta o princípio da verossimilhança – afinal, pessoas normais apresentam uma fala em boa parte escorada em frases prontas. Abração! E vida longa ao novo espaço. Parabéns!

    • Sérgio Rodrigues 14/12/2015em11:20

      Não acho que seja bem assim, Don. A questão do narrador é complexa demais. A caricatura de clichês é um recurso de grande sucesso, claro. Não é o único modo de lidar com eles, mas eu diria que, sem alguma medida de ironia, de distanciamento claro entre autor e narrador, mesmo o clichê “verossímil” enfraquece o texto. Obrigado pelos votos e grande abraço.