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‘Fome de realidade’: oba, uma polêmica!

11/03/2010

O livro Reality hunger, a manifesto (“Fome de realidade, um manifesto”), do escritor e ex-romancista americano David Shields, saiu há apenas duas semanas nos EUA e já está provocando – tanto na internet quanto na imprensa tradicional – um dos debates estéticos mais quentes dos últimos anos. Sua intenção nunca foi outra, claro.

O livro é uma coleção de seis centenas de aforismos e micro-ensaios (muitos assumidamente chupados de terceiros) que se revela, mesmo à mais diagonal das leituras, um ataque frontal à imaginação e à ficção em geral – que corresponderiam a uma sensibilidade passadista, destituída de vida. Ao mesmo tempo, faz uma defesa fervorosa do ensaio, da reportagem, da livre apropriação de idéias (que muitos chamam de plágio), do memorialismo que toma liberdades criativas com seu material, dos reality shows e do hip hop – estes sim, segundo o autor, gêneros e formatos afinados com o ar de nossos tempos. Que, como se sabe, está mais para vendaval.

Por atingir seu objetivo de criar polêmica, palmas para Shields. Convenhamos que a polêmica mora no horizonte de qualquer manifesto, o gênero mais fácil e previsível para se chegar a ela, mas palmas mesmo assim. (Até um manifesto despretensioso como o do “Grupo Silvestre”, que andou circulando há duas semanas na blogosfera brasileira, fez sua cota de barulho.)

Contudo, por atingir tal objetivo jogando no centro da roda um saco de gatos em que alguns dos bichanos trocam unhadas no olho (não chega a ficar muito claro, por exemplo, por que a liberdade ficcional é aplaudida nos memorialistas e condenada nos romancistas), Shields abre o flanco para acusações de que, no fundo, está menos preocupado em discutir questões reais do que em – bem, o verbo é aparecer.

Por seu próprio formato, Reality hunger é cheio de afirmações em que o entusiasmo busca abolir a necessidade de argumentação. Algumas são francamente absurdas. Em sua defesa da primazia estética do tosco e do “não-artístico”, que associa de forma direta e meio ingênua à “autenticidade”, Shields lança a seguinte pergunta retórica: “O que, no último meio século, foi mais influente do que o filme em Super-8 do assassinato de Kennedy feito por Abraham Zapruder?” Hã? Devemos responder em ordem alfabética ou cronológica?

Isso não significa que o livro não tenha suas espertezas. Para começar, toca em nervos que estão realmente expostos no corpanzil envelhecido e um tanto sedentário da literatura e das artes em geral. Sim, a ficção vem há décadas perdendo relevância cultural, ponto. O que fazer disso é que são elas. Arejar a literatura na contaminação com outros discursos, inclusive o do jornalismo e o do ensaio, é um caminho que Sebald, Cercas e outros já apontaram há algum tempo – só não viu quem não quis. No entanto, chutar o cachorro que se supõe moribundo tem seus riscos: ele pode morder. Shields despreza o romance num momento histórico em que séries como “Harry Potter” e “Crepúsculo” batem recordes de popularidade. Obviamente, best-sellers desse tipo ficam fora de seu raciocínio por não serem “arte”. Tudo bem, mas os reality shows, que entram com tremenda fanfarra em seu raciocínio, por acaso serão?

A melhor parte dessa história é que o livro de Shields tem provocado reações fortes – contra e a favor – de meio mundo: só acabar com o entorpecimento crítico que caracteriza nossa época já o justifica. Jonatham Lethem louva-o num blurb de primeira página para a edição da Knopf com os adjetivos “sublime, excitante, furioso, visionário”. Zadie Smith escreveu uma refutação enfática antes mesmo do lançamento. O acadêmico de literatura Rob Nixon previu, no prestigioso “Chronicle Review”, que Reality hunger se tornará “o livro ao qual artistas de todos os meios vão se voltar em busca de inspiração, apoio ou altercação, em sua luta para se reinventar contra o vento frontal de nossa época”.

Mas a manifestação que, por afinidade, eu elejo para citar com mais fôlego, a de Laura Miller na Salon.com, toma caminho bem diferente:

Shields poderia ter simplesmente anunciado que perdeu todo o interesse em ler ou escrever ficção, e que fica ofendido pelo fato de alguns escritores que conhece não respeitarem inteiramente sua escolha. Talvez conseguisse fazer com tal material um bom artigo numa revista de literatura. Mas um manifesto – ah, isso sim é pensar grande, com drama e conflito para encorpar a receita! Dizer que você não consegue mais se entusiasmar com romances é realidade, mas proclamar do alto dos telhados que o romance morreu – aí já é showbiz. (…) Porque ao escrever um manifesto você está, afinal, contando uma história e escalando-se no papel de herói. Trata-se de uma história rigorosamente tão familiar e tradicional quanto o enredo do mais convencional dos romances populares: revolucionário visionário luta pelo progresso desafiando corajosamente a velha guarda. É uma narrativa antiquada, sem dúvida alguma – bem, vamos falar sério, na verdade é bastante brega. Mas ainda rola.

12 Comentários

  • Rafael 11/03/2010em15:29

    Polemizar sobre “manifestos” é coisa de quem não tem o que fazer. Quem escreve “manifestos” quer chamar a atenção; isso é coisa de gente mimada e carente, uma doença que tem alcançado uma dimensão pandêmica graças à cultura de celebridade que tem campeado com a difusão do mass midia.
    Suprema ironia: o autor do reality hunger, o tal de David Shields (quem?), não se dá conta da banalização da palavra reality tão em voga com os BBBs da vida; e, neste contexto, reality significa tudo, menos realidade…

  • regina baptista 11/03/2010em16:34

    Talvez o bom desse livro seja o fato dele estimular a discussão sobre o Romance atual, apesar de essa história de dizer que esse ou aquele gênero morreu ser uma estratégia um pouco desgastada.

  • Rosângela 11/03/2010em16:57

    Não vai falar nada de ontem? Por quê?
    Tudo bem que é reality, mas tenho certeza que não foi brega…

    E sou capaz de apostar …que todos gostariam de ler algo sobre… seus escritos ali sendo rabiscados sob olhos… kkk

    Fala aí.

  • Rosângela 11/03/2010em16:58

    E se quiser ser um pouquinho brega na escrita… deixa rolar… deixa rolar…
    O Brasil está precisando…

  • Joao Gomes 11/03/2010em18:09

    Acho que esse cara precisa de uma boa dose de: 1º Viagra __________;
    2º Uisque;
    3º Valeriana. Nao necessariamente nesta ordem.

    Se ele realmente tem fome de realidade que tal sair de uma redoma americana e passar uma temporada na Nigeria ou quem sabe na Faixa de Gaza?

  • gilvas 11/03/2010em18:10

    laura miller expressa uma opinião totalmente apropriada, mas ainda acho que o adjetivo final não é “brega”, mas sim “cafona”.

  • Turista de guerra 11/03/2010em19:18

    É só um lixo pra ser esquecido, as letras servem pra escrever qualquer abobrinha mesmo! Tanta coisa séria pra discutir e as pessoas dão atenção à palhaços com melancias no pescoço.

  • C. S. Soares 11/03/2010em19:27

    Sérgio. “Reality Hunger” parece-me uma falácia. Basta atentar para a citação (a Zola) no primeiro dos “microensaios”: “Every proper artist is more or less a realist according to his own eyes”. Sobre o uso dos aforismos, Nietzsche (em seu exame de consciência) justificaria: “O que escreve em máximas (e com sangue) não quer ser lido, mas decorado”. Foi bom você ter lembrado o “Manifesto Silvestre”. A intenção do grupo, penso, foi bem intencionada. Reservarei alguns comentários ao “manifesto” em meu próximo romance (pois é lá, na esfera do ‘undead’ romance que a realidade se apresenta como efetivamente o é).

  • Hildo Meireles 12/03/2010em00:57

    Alto lá… Aquilo que o Grupo Silvestre publicou é golpe de mídia, sem qualquer consistência – chamar aquilo de manifesto é exagero… E dizer que um texto medíocre daqueles fez barulho também é exagero…

  • Daniel 12/03/2010em08:03

    O sujeito não sabe escrever, não tem talento então desconsidera a arte e prega os Reality Shows.
    Estarão as uvas verdes?

  • Microempresario 12/03/2010em15:09

    Manifesto ? Cada século tem o Marinetti que merece.

  • Vinícius Antunes 15/03/2010em08:04

    Gostei muito do texto, Sérgio. Estou totalmente de acordo contigo.