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I Concurso de Resenhas: sobre ‘Mãos de Cavalo’

21/09/2011

Com um texto sobre o romance “Mãos de Cavalo”, de Daniel Galera (Companhia das Letras, 2006), Leonardo Petersen Lamha ficou com a segunda posição no I Concurso Todoprosa de Resenhas – Brasil, século 21. A sacada do personagem “em dúvida sobre seu próprio arco dramático” me parece uma contribuição relevante à leitura desse livro já tão comentado.

Em suas próprias palavras, Lamha “tem 23 anos, cursa o último período de Comunicação Social com habilitação em Cinema na PUC-Rio. Está se especializando em Roteiro Cinematográfico e estuda literatura paralelamente à faculdade, mas é antes de tudo um leitor”.

A resenha vencedora será publicada na sexta-feira.

A GLÓRIA DE UM COVARDE, de Leonardo Petersen Lamha

“Mãos de Cavalo”, de Daniel Galera, abre com um capítulo que pode ser lido como um mito fundador das futuras obsessões do personagem, quando adolescente e adulto, e estabelece alguns temas que serão recorrentes, tais como como o corpo levado ao limite, a violência física, o exercício físico como fuga, frustração, vergonha e autoconsciência: um garoto (Hermano) de dez anos, espetacularmente pedalando pelas ruas, leva um tombo e vê pela primeira vez o seu sangue escorrendo.

O livro intercala duas tramas que contam duas fases distintas da vida de Hermano: a trajetória do renomado cirurgião (Hermano adulto), passada ao longo de duas horas, é contada em grandes parágrafos, no ritmo corrido de pensamentos atuais se misturando a lembranças, que contam regressivamente partes da backstory adulta do personagem enquanto ele dirige um carro num estado de inquietação cujo efeito é a sensação de transbordamento iminente. A do adolescente Hermano constrói aos poucos o trajeto que o estabelecerá como um covarde perante si mesmo, fixando nele o sentimento de culpa ocasionado por um evento em que ele se depara pela primeira vez com uma violência que até então só havia sido ensaiada mentalmente.

O estilo de Galera não imprime grande dramaticidade nos eventos, é de uma intensidade contida, e justamente por isso os momentos de ação mais intensos e dramáticos adquirem força. Por exemplo, o capítulo em que Hermano adolescente é seduzido por uma amiga é narrado num sutil ritmo de ação e reação, como num pingue-pongue, mimetizando o esquema de atenção e cuidado extremos em cada pequena ação, bem próprios ao ato da conquista.

O curioso é que nesse mesmo capítulo acontece um dos momentos mais fracos do livro. A menina revela que o corpo dele era desejado por grande parte das meninas do bairro. A intenção é enfatizar o corpo de Hermano, tão cuidadosamente trabalhado e sempre levado ao limite, e um dos temas centrais do livro. Mas a quase gag com que a menina reage a ele (meninas se amontoando para tomar o corpo de Hermano) parece fugir do registro realista do livro e faz crer que Galera deixou escapulir pra dentro da narrativa desejos pessoais, além de levantar questões interessantes sobre mulheres sendo narradas por homens.

Enquanto a trama do adolescente Hermano é o caminho da consolidação das angústias que tem início nessa época de formação, e termina com Hermano traçando objetivos de vida, a trama de Hermano adulto revela um homem ainda se escondendo do sentimento de impotência, através da exaustão desses objetivos, em grande parte ligados ao corpo e suas possibilidades-limites (seu mais novo hobby é o alpinismo), em meio a uma rotina familiar. Mas o importante em “Mãos de Cavalo” não é a lineariadade (ou causalidade) entre as tramas, e sim a construção, que dá igual peso e importância a ambas as fases da vida de Hermano. A trama do adolescente não está lá meramente para explicar as razões da inquietação do cirurgião. Ela narra algo sobre certas experiências tão profundamente enraizadas que nem mais as percebemos, mas estão sempre ali, fazendo constante pressão em algum canto semi-conscientemente percebido da mente – no caso de Hermano, a culpa.

Pode-se argumentar que na “vida real” não há expiação de culpa através de eventos grandiosos, e sim que estamos sempre tentando nos livrar dela nas menores ações cotidianas, nos mais irrelevantes problemas. Esse tipo de argumento pró-realidade é ingênuo, mas parece interessante analisar os eventos do livro pensando nisso.

Hermano adulto, em determinado momento, depara-se com algo que poderá redimi-lo. Apesar de toda a fúria e violência interna e externa com que ele mergulha na expiação da culpa, e da maneira excêntrica com que logo em seguida fala com a mulher no telefone (falando na verdade consigo mesmo quinze anos atrás), a linguagem contida, enquanto Hermano se questiona se sente-se diferente, e logo em seguida a construção dos capítulos nos revelando pela primeira vez o tal evento traumático que o definiu como covarde, nos desviando a atenção para uma especie de anticlímax da dramaticidade do evento – tudo sugere que é o personagem, numa reflexão autoconsciente, é que está em dúvida sobre seu próprio arco dramático, se ele de fato é possível, e não um discurso do autor; se não está sendo enganado pela ilusão de séculos de narrativas; se um grande evento heroico e intenso, dentro de um período de duas horas, é capaz de impulsionar uma mudança definitiva de caráter e atitude. Enquanto “a fantasia heroica” se esvai, a reflexão é interrompida pelo sangue em seu rosto, que é onde ele conclui residir sua única certeza naquele momento.

É perigoso situar “Mãos de Cavalo” entre narrativas contemporâneas sobre a consciência paralisante, obstruidora do sentido. É como se, ao invés disso, o livro apontasse para o corpo, para suas enormes possibilidades e fragilidades como os únicos parâmetros possíveis para alguma verdade.

5 Comentários

  • Duda Ruskim 21/09/2011em12:23

    Parabéns!

  • Antonio Marcos Pereira 21/09/2011em12:56

    Excelente resenha – comenta com entusiasmo e felicidade um livro que julgo ruim e, depois de lê-la, fico até achando que o livro seja talvez melhor do que o que eu li. Ponto pro resenhista.

  • Glutão 21/09/2011em13:49

    A outra é nitidamente superior, Sérgio.
    Discordo, Glutão. Verdade que a resenha de Gilda é superior em alguns aspectos, entre eles a prosa bem cuidada, mas no fim perde por se limitar a apresentar a obra em seu valor de face, digamos assim, sem ensaiar uma contribuição original à sua leitura. Isso para mim é mais valioso, inclusive por ser raro, do que uma boa apresentação do livro e suas intenções.

  • t. 21/09/2011em22:22

    “parece fugir do registro realista do livro e faz crer que Galera deixou escapulir pra dentro da narrativa desejos pessoais,”. deveria ter parado de ler nesse ponto, mas não. apesar de posteriormente o autor apontar a ingenuidade de um argumento “pró-realidade”, esse é o critério que ele mesmo se vale, inclusive, para afirmar como fraca uma parte em destaque. imagina-se que a primeira colocada destacará machado como o grande autor realista de língua portuguesa, apesar duma primeira fase romântica. zzzzzzzz

  • Emanuela Siqueira 21/09/2011em23:01

    Estou me sentindo péssima de não ter enviado minha resenha do livro da Elvira Vigna. Faça logo o II, Sérgio!!

    Gostei muito do texto do Leonardo. O enredo pode-se ler com o livro, ele fez uma análise bem diferente do que se vê nas resenhas desse livro. Fez uma bela análise psicológica do personagem através de fatos. Ansiosa pelo primeiro lugar!