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Javier Cercas: ‘A velocidade da luz’

02/06/2007

Chega às livrarias nos próximos dias o romance “A velocidade da luz”, de Javier Cercas (Relume Dumará, tradução de Antonio Fernando Borges, 208 páginas, R$ 34,90), mais uma oportunidade que o leitor brasileiro tem de ser apresentado ao escritor mais interessante e festejado da “nova geração” (nasceu em 1962 e publica desde os anos 80) da literatura espanhola. Cercas é autor de uma proeza rara, um arrasa-quarteirão reverenciado pela crítica, o romance “Soldados de Salamina”, de 2001, em que lança um olhar original sobre a Guerra Civil Espanhola embaralhando realidade e ficção – a ponto de criar um narrador chamado Javier Cercas e um personagem secundário, também escritor, que atende pelo nome de Bolaño, como o chileno que era seu amigo e primo literário. (Para quem quiser se aprofundar na história, aqui vai uma breve resenha do Roberto Bolaño verdadeiro sobre o livro.) Lançado no Brasil em 2004 pela Editora Francis, “Soldados de Salamina” não teve por aqui nem uma migalha da repercussão internacional que mereceu, daí se poder dizer que “A velocidade da luz”, o romance com que Cercas respondeu à expectativa criada por seu maior sucesso, é uma nova chance. Nova chance para o público brasileiro, bem entendido, e não para ele, que passa bem sem isso.

Embora nos dois casos a ficção se empenhe em sabotar noções estabelecidas de bem e mal, sucesso e fracasso, pelo menos num aspecto “A velocidade da luz” trabalha no avesso de “Soldados de Salamina”. Este gira em torno de um enigmático ato de misericórdia praticado em meio à guerra pelo soldado republicano que, fingindo não vê-lo escondido, salva a vida de Rafael Sánchez Mazas, personagem real que foi um dos pilares do fascismo espanhol. No novo livro, também de arquitetura engenhosa e esticada no tempo, o narrador, um professor universitário espanhol que sonha virar escritor, torna-se amigo de Rodney Falk, veterano do Vietnã cuja passagem pela guerra não foi marcada exatamente por atos de misericórdia, para dizer o mínimo. Mais tarde, quando seu sonho de glória literária se tornar realidade em forma de pesadelo, o narrador sem nome vai voltar à terrível história de Falk em busca de redenção.

No trecho abaixo, a amizade dos dois ainda está no início, e o alerta do americano sobre os riscos do sucesso soa premonitório:

– Achou tão ruim assim o que eu lhe entreguei?

– Ruim, não – respondeu Rodney. – Horroroso.

O comentário foi como um chute no estômago. Reagi com rapidez: procurei explicar que o que ele tinha lido era apenas um rascunho, procurei defender o esboço do romance que eu iniciava; em vão: Rodney tirou do bolso do jaquetão as páginas do romance, desdobrou-as e passou a triturar seu conteúdo. Fez isso sem paixão, como o legista que faz uma autópsia, o que me doeu ainda mais; mas o que mais me doeu foi que intimamente eu sabia que meu amigo tinha razão. Arrasado e furioso, com todo o rancor acumulado enquanto Rodney falava, perguntei-lhe se em sua opinião o que eu devia fazer era parar de escrever.

– Eu não disse isso – corrigiu-me, impávido. – O que você deve ou não deve fazer é assunto seu. Não há nenhum escritor que não tenha começado escrevendo um lixo como este ou até pior, porque para ser um escritor decente nem sequer é preciso ter talento: basta um pouco de esforço. Além do mais, talento não se tem, se conquista.

– Então, por que você me pergunta se eu tenho certeza de que quero ser escritor? – perguntei.

– Porque você pode acabar conseguindo isso.

– E qual é o problema?

– É que é um ofício muito filho-da-puta.

– Não é pior do que o de tradutor, imagino. Nem, por exemplo, do que o do minerador.

– Não tenha tanta certeza – disse, com uma expressão incerta. – Não sei, talvez só devesse ser escritor aquele que não possa ser outra coisa.

Ri como se procurasse imitar a risada feroz de um camicaze, ou como se estivesse me vingando.

– Ora, ora, Rodney: não vai me dizer agora que no fundo você é um maldito romântico. Ou um sentimental. Ou um covarde. Pois eu não tenho o menor medo de fracassar.

– Claro – disse ele. – Porque você não tem nem idéia do que seja isso. Mas quem falou em fracasso? Eu falava do sucesso.

– Pronto! – disse eu. – Agora estou entendendo. A catástrofe do sucesso. É disso que se trata. Mas isso não é uma idéia, cara: é só um lugar-comum.

– Pode ser – disse ele, e em seguida, como se estivesse rindo de mim ou me repreendendo mas não quisesse que eu desconfiasse nem de uma coisa nem da outra, acrescentou: – Mas as idéias não se transformam em lugares-comuns porque são falsas, mas porque são verdadeiras, ou pelo menos porque contêm uma parte substancial de verdade. E quando alguém se aborrece com a verdade e começa a dizer coisas originais procurando se fazer de interessante acaba dizendo apenas tolices. Na melhor das hipóteses, tolices originais e até interessantes, mas tolices.

Não soube o que lhe responder e tomei um gole de cerveja. Percebendo que o sarcasmo me aliviava do ultraje da decepção, eu disse:

– Bem, pelo menos depois do que leu você há de reconhecer que estou vacinado contra o sucesso.

– Também não tenha tanta certeza disso – replicou Rodney. – Talvez ninguém esteja vacinado contra o sucesso; talvez a pessoa só precise ter paciência suficiente com o fracasso para que o sucesso a capture. E aí já não há escapatória. Acabou. Fim. Aí estão Scott e Hemingway: os dois eram apaixonados pelo sucesso, e ele matou os dois, e aliás muito antes de que os enterrassem. Sobretudo o pobre Scott, que era o mais frágil e o mais talentoso, por isso o desastre o atingiu antes e ele não teve tempo de perceber que o sucesso é letal, uma sem-vergonhice, um desastre sem paliativos, uma humilhação para sempre. Ele gostava tanto daquilo que, quando chegou, ele nem se deu conta de que, embora se enganasse com manifestações de orgulho e declarações de cinismo, na verdade não tinha feito outra coisa além de procurá-lo, e agora que o tinha nas mãos já não lhe servia para nada nem podia fazer nada com ele a não ser deixar que o destruísse. E o destruiu. Destruiu-o até o fim. Você sabe o que Oscar Wilde dizia: “Existem duas tragédias na vida. Uma é não conseguir o que se deseja. A outra é conseguir.” – Rodney riu; eu não. – Enfim, o que eu quero dizer é que ninguém morre por ter fracassado, mas é impossível sobreviver com dignidade ao sucesso. Isto ninguém diz, nem mesmo Oscar Wilde, porque é evidente ou porque dá muita vergonha dizer isso, mas é assim. Portanto, se você insiste em ser escritor, adie o sucesso o máximo que puder.

15 Comentários

  • Saint-Clair Stockler 02/06/2007em00:22

    Uau, texto maravilhoso! Inverte tudo e, por isso mesmo, diz verdades difíceis de a gente ver ditas por aí… Muito bom. Gostei muito. Já tinha ouvido falar do outro livro do autor, que é um tremendo sucesso lá fora e aqui passou meio que despercebido. É uma pena. O cara, pelo que estou vendo, é bom à beça.

  • Areias 02/06/2007em11:33

    “Fez isso sem paixão, como o legista que faz uma autópsia, o que me doeu ainda mais; mas o que mais me doeu foi que intimamente eu sabia que meu amigo tinha razão”. O aperitivo é tentador, mas na frase acima me pareceu um pouco desleixada a tradução. Ou será assim também no original?

  • Luiz André 02/06/2007em13:01

    O cara é bom. Já li “Soldados de Salamina” e gostei muito. Vale a pena conferir mais este romance. O ideal seria lê-lo no original, mas na Livraria Cultura o preço está proibitivo, sem falar no prazo para a entrega, que é de 8 semanas.

  • Raul 02/06/2007em18:09

    Soldados de Salamina é uma obra-prima, e que detonou um revisionismo positivo e menos maniqueísta na espanha da Guerra Civil. O cara é bom, tb. é colunista do jornal El País, de Madrid

  • Cláudio Soares 02/06/2007em23:32

    E na Entrelivros deste mês, artigo de Cercas sobre Bolaño. Forte abraço!

  • cíntia gomes 02/06/2007em23:42

    O Vinicius Jatobá que escreve aqui nos comentários de vez em quando é o mesmo com um artigo sobre o Pamuk na EntreLivros? Se for, muito bom!

  • vinicius jatobá 03/06/2007em12:33

    Oi, cíntia. Sou eu mesmo. Obrigado pela lembrança. Dá uma olhadinha no meu blog Outra Babel, lá tem muitas das minhas resenhas. Bjs,

  • shirlei horta 03/06/2007em13:52

    Todo mundo,

    Também estou me mexendo para manter o espaço, com a independência necessária (vejam a coluna do Tutty hoje). Primeiro, eu acho, precisamos de um interlocutor autorizado a verificar os números do NoMínimo e ajudar a fazer sugestões. Hoje à noite vou falar com uma pessoa que eu julgo muito capacitada para isso. Se essa pessoa topar, venho correndo sugerir a vocês. Mas vocês também podem ir pensando nisso, um representante dos leitores junto ao NoMínimo.

    À luta FDP!!!!

  • Antonio Fernando Borges 04/06/2007em12:23

    Um esclarecimento a um certo Areias, que criticou minha tradução: meu maiuor desafio, ao traduzir o romance de Cercas, foi justamente o de manter o tom calculadamente “desleixado” de seu texto, que pretende ser um desabafo de um romancista em crise… Este, aliás, um dos méritos estilísticos do romance: ser coloquial, “descuidado” e tão bem escrito! Um abraço a todos!

  • Antonio Fernando Borges 04/06/2007em12:23

    Um esclarecimento a um certo Areias, que criticou minha tradução: meu maiuor desafio, ao traduzir o romance de Cercas, foi justamente o de manter o tom calculadamente “desleixado” de seu texto, que pretende ser um desabafo de um romancista em crise… Este, aliás, um dos méritos estilísticos do romance: ser coloquial, “descuidado” e tão bem escrito! Um abraço a todos!

  • Márcio Massula 04/06/2007em16:29

    Dele eu só li O MOTIVO, que na época não me fisgou.

    Mas agora fiquei curioso com esse aqui.

  • Cezar Santos 04/06/2007em16:40

    Cercas é dos melhores autores na casa dos 40 anos em todo o mundo…
    “Soldados” é muito bom. E uma curiosidade, o diretor Davi Trueba fez filme baseado no livro, com um roteiro muito bom também, que muda o narrador para uma jornalista com uma amiga lésbica.
    Ambos, livro e filme, valem a pena …

  • clelio 04/06/2007em18:26

    No filme, principalmente a Ariadna Gil (de “Sedução” e “O pior ano de nossas vidas”. Ô mulher mais linda!

    Quanto a esse livro deve ser muito bom. AS dicas do Sérgio não costumam falhar.

  • Areias 04/06/2007em18:37

    “Descuidado e tão bem escrito”. Tudo bem. Pode me chamar de um incerto Areias.

  • Antonio Fernando Borges 04/06/2007em21:57

    Caro Areias, seu comentário inicial sobre minha tradução já tinha-me soado malicioso. Mas vendo você tirar as aspas que coloquei em “descuidado” (depois de ter tido que se trata de um texto CALCULADAMENTE “DESLEIXADO”), concluo que não se trata de mera malícia: é má fé das piores. Vade Retro!