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Julian Barnes: ‘Arthur & George’

17/03/2007

Da grande geração de escritores ingleses que integra com Ian McEwan, Martin Amis e Salman Rushdie, Julian Barnes é o mais “europeu”, no sentido de sofisticado, afeito a sutilezas de composição e pensamento, numa tradição assumidamente francófila – pecado quase imperdoável em sua ilha. O que o torna também, previsivelmente, o de menor sucesso comercial dos quatro. Autor da obra-prima “O papagaio de Flaubert”, uma mistura de ensaio e ficção em que acerta contas com sua grande admiração literária, Barnes volta, em “Arthur & George” (Rocco, tradução de Léa Viveiros de Castro, 448 páginas, R$ 53,50), a transformar uma figura real da história da literatura em tema. Mas desta vez, embora a variedade sempre tenha sido uma marca de sua obra, surpreendeu até quem já esperava uma surpresa. O escritor cuja vida ele romantiza é popular e inglês até a alma: Arthur Conan Doyle, o criador do detetive Sherlock Holmes. E o livro, o mais convencional que Barnes já escreveu. Ficção histórica consistente, cheia de pesquisa, “Arthur & George” conta em contraponto as histórias do médico Arthur Conan Doyle e de outro personagem real, o advogado George Edalji. Trata-se de dois antípodas: um inglês atlético e bem sucedido, um descendente de indianos acusado de um crime bizarro. Seus caminhos se encontram quando, procurado por George, Arthur decide imitar seu personagem famoso e investigar a injustiça de que o advogado foi vítima, expondo uma trama de ilegalidades e preconceitos na polícia e no Judiciário.

Ele tinha modernizado a investigação criminal. Ele a havia livrado dos representantes da velha escola de detetives de raciocínio lerdo, aqueles simples mortais que recebiam aplausos por decifrar pistas palpáveis deixadas no seu caminho. Em seu lugar, ele havia colocado uma figura fria e calculista que podia enxergar a pista de um assassinato num novelo de lã e condenação garantida num pires de leite.

Holmes trouxe fama instantânea a Arthur e – algo que o comando da equipe inglesa jamais teria trazido – dinheiro. Comprou uma casa de tamanho decente em South Norwood, cujo jardim de muros altos tinha espaço para uma quadra de tênis. Pôs o busto do avô no hall de entrada e alojou seus troféus árticos no alto de uma estante. Conseguiu um escritório para Wood, que parecia ter se estabelecido como auxiliar permanente. Lottie tinha voltado de Portugal, onde havia trabalhado como governanta, e Connie, apesar de ser a mais decorativa, estava se mostrando uma ótima datilógrafa. Ele tinha comprado uma máquina de escrever em Southsea, mas nunca conseguia manipulá-la com sucesso. Era mais habilidoso com a bicicleta de dois assentos que pedalava com Touie. Quando ela engravidou de novo, ele trocou a bicicleta por um triciclo, impulsionado unicamente por força masculina. Sempre que a tarde estava bonita, ele a levava em percursos de quase cinqüenta quilômetros pelas colinas de Surrey.

Ele se acostumou ao sucesso, a ser reconhecido e investigado, bem como aos diversos prazeres e embaraços das entrevistas de jornal.

– Aqui diz que você é um homem alegre, cordial e caseiro. – Touie estava sorrindo enquanto lia a revista. – Alto, de ombros largos e com um aperto de mão firme que, na sinceridade das boas-vindas, chega a machucar.

– Que revista é essa?

The Strand Magazine.

– Ah. Sr. How, se me lembro bem. Não exatamente um esportista, conforme desconfiei na ocasião. A pata de um poodle. O que ele diz de você, meu bem?

– Ele diz… Ah, não posso ler isto.

– Eu insisto. Você sabe como gosto de vê-la ruborizada.

– Ele diz… que sou “uma mulher muito charmosa”. – E, ao dizer isto, ela ficou vermelha e mudou logo de assunto: – O sr. How diz que “o dr. Doyle sempre cria primeiro o final da sua história e escreve o resto de acordo com ele”. Você nunca me contou isto, Arthur.

– Não contei? Talvez porque seja o óbvio ululante. Como você pode escrever um início plausível se não souber o fim? Pensando bem, é inteiramente lógico. O que mais diz o nosso amigo?

– Que as idéias lhe chegam a qualquer hora… quando está caminhando, jogando críquete, pedalando ou jogando tênis. É verdade, Arthur? É por isso que você às vezes é tão distraído na quadra?

– Posso ter exagerado um pouco.

– Veja, aqui está a pequena Mary em pé sobre esta cadeira.

Arthur inclinou-se para olhar.

– Impressa a partir de uma de minhas fotos… está vendo? Eu fiz questão de que eles pusessem o meu nome embaixo.

Arthur tornara-se um nome nos círculos literários. Era amigo de Jerome e Barrie, conhecera Meredith e Wells. Jantara com Oscar Wilde e o havia achado muito cortês e agradável, ainda mais porque o sujeito tinha lido e admirado o seu Micah Clarke. Arthur tinha a intenção de usar Holmes por dois anos – três no máximo, antes de matá-lo. Depois, ele iria concentrar-se em romances históricos, que sempre soubera ser o que fazia melhor.

20 Comentários

  • Paulo (outro Paulo) 17/03/2007em01:42

    Gostei da sua descrição de Barnes, francófilo e bem sofisticado. Deve ser dos bons, vou colocá-lo na minha cabeceira.

  • Thiago Maia 17/03/2007em04:05

    “… numa tradição assumidamente francófila – pecado quase imperdoável em sua ilha.”

    O Barnes é francófilo, e aquele, dentre os grandiosos escritores vivos que outrora ou atualmente residem em Londres, que é o mais british, é “japonês”.
    Natural se tomarmos um que na fronteira entre os séculos XIX e XX, ainda que de maneira muito diversa à de Kazuo Ishiguro, também retratou bela e melancolicamente a terra dos Senhores do Mundo e seus imensos tentáculos, e era polonês.
    Óbvia, uma das diferenças entre os dois é que Ishiguro é realmente inglês para todos os efeitos, e Conrad, por exemplo, só dizia saturday com sotaque carregadíssimo.

  • Lucas Murtinho 17/03/2007em08:33

    Talvez por eu ser anglófilo de carteirinha, o Barnes não me conquistou. Achei a mistura de ensaio e romance do “Papagaio de Flaubert” pouco atrativa e “Inglaterra, Inglaterra” é engraçado mas, talvez essa não seja a palavra, alegórico demais, exagerado. Mas “Arthur & George”, mais “convencional”, talvez esteja mais ao meu gosto.

    Enfim: falando sobre a francofilia e a francofonia, Sérgio, você viu o manifesto “por uma literatura-mundo em francês”, assinado por quarenta escritores francófonos e publicado no Le Monde? Parece ser um primeiro passo interessante para a literatura francesa deixar de olhar o próprio umbigo. Está no site: http://www.lemonde.fr/web/article/0,1-0@2-3260,36-883572,0.html

  • Sérgio Rodrigues 17/03/2007em09:43

    Obrigado pelo link, Lucas. Mas se entendi bem, o que eles anunciam com pompa ali como “revolução copernicana” é só uma versão francesa do (já) velho multiculturalismo, não?

  • Areias 17/03/2007em09:58

    Valeu, Lucas. Interessante o artigo. Talvez não haja nada de novo nisso, como diz o Sergio R., mas é sabido que a França é o país mais aberto às literaturas de outros cantos do mundo. Traduzem para o francês romancistas croatas, poetas armênios, contistas brasileiros e por aí vai. Há uma convicção local de que teria sido o Roman Nouveau o responsável pelo declínio da literatura “fanco-francesa” no mundo todo. Pode ser, mas o pós-guerra colocou os americanos como os “melhores” em tudo e daí se seguiu uma avalanche de imitações e assimilações.
    Voltando ao Barnes, ele é muito querido na França, como o Woody Allen, pelas mesmas razões talvez.

  • Jonas 17/03/2007em12:24

    Do Barnes só li o Papagaio, que é um dos livros mais engraçados que já passaram por mim.

  • Lucas Murtinho 17/03/2007em14:18

    Sérgio, é sim. O negócio é que a literatura francesa como um todo está muito atrasada em relação ao resto do mundo, especialmente ao que se faz na Inglaterra. Copérnico ainda não chegou a Paris. O que é estranho quando se leva em conta o comentário de Areias: de fato, a França é um país bastante aberto à literatura estrangeira. Mas os escritores franceses parecem um pouco reticentes a aprender lições que vêm de fora. Esse artigo pode indicar uma mudança bem-vinda de rumo.

  • Cláudio Soares 17/03/2007em14:41

    Sergio: recentemente, publiquei no “A Última Biblioteca” (e tb no Portal jornalístico Comunique-se) uma minibio de Sir Arthur Conan Doyle (que tb foi presidente de honra da Federação Espírita Internacional).

    Aos fãs do criador de Sherlock Holmes (e demais interessados):

    http://aultimabiblioteca.blogspot.com/2007/02/maldio-de-sherlock-holmes.html .

    Forte abraço!

  • Jonas 17/03/2007em16:14

    Sérgio, esperamos seus comentários sobre o tal projeto da Cia das Letras anunciado hoje na Ilustrada – os autores brasileiros que vão para cidades da Europa. É bom para quem reclama que o mercado não dá chance para os pobres autores.

    “Ah, mas só estão os veteranos”. É claro, ou deveriam deixar o Sérgio Sant’Anna de fora, em favor de algum jovem? Ou o Bernardo Carvalho. E se bem que estão levando a Adriana Lisboa, o Cuenca e a (mala) Cecília Gianetti..

  • Jonas 17/03/2007em16:17

    E ah, o orçamento do projeto vem da Lei Rouanet. Eu sou contra coisas como aquele patético Movimento Literatura Urgente e que o governo dê freqüentes subsídios aos autores. Mas no caso de um projeto único, acho interessante. Afinal, se o Lula tira dinheiro da saúde para cobrir os buracos do Pan, por que não investir um pouquinho em literatura? Desde que não vire motivo de deleite daquela lista gigantesca de “autores” do MLU..

  • gustavo weber 17/03/2007em16:20

    òtima dica, sergio. Li Arthur & George quando saiu por lá, um belo livro e uma interessante crítica à sociedade britânica, seus racismos e preconceitos.

  • Sérgio Rodrigues 17/03/2007em16:47

    Jonas, pelo que entendi é exatamente meio a meio entre escritores experientes e inexperientes. Mas ainda não sei bem o que acho da extravagância. Quando soube do valor total do projeto, mais de um milhão de reais, me ocorreu o óbvio: seria muito melhor para a literatura se simplesmente dividissem o dinheiro entre os autores, em forma de bolsa. Daria uma boa grana para cada um em troca, claro, de dedicação aos projetos de livros que quisessem tocar. Então pra que essa papagaiada de mandar cada um como turista para uma cidade do mundo por um mês? Aí li que tem filmes, DVDs e outras coisas penduradas no projeto. É um grande bolo midiático, a literatura é pouco mais que o pretexto. Tudo bem, sinal dos tempos. O dinheiro ser de renúncia fiscal me parece o mais questionável de tudo. Mas é verdade que picaretas aos montes por aí se beneficiam da Lei Rouanet, o que torna menos grave separar algum para escritores que realmente escrevem.

  • Claudio Soares 17/03/2007em17:16

    Não vejo como esse “projeto x” possa ajudar a literatura nacional (apesar de perceber que não é exatamente essa a intenção do “projeto x”). Não li a matéria na Folha. A seção Literatura do Programa Petrobras Cultural oferece R$ 800.000,00 (para serem divididos entre os projetos vencedores), não é? A Cia das Letras vem com um de mais de 1 milhão? É isso mesmo? Pois é…

  • Saint-Clair Stockler 17/03/2007em17:27

    Li um livro de contos do Barnes, justamente sofre os franceses: “Do outro lado da Mancha”. Foi o único. Gostei, ele é muito seguro. E é muito simpático: vi uma entrevista dele na TV, não sei onde, acho que na TV5.

    Tanto ele quanto Woody Allen têm um francês terrível… Como é que pode? Moraram ou passam pela França frequentemente mas têm um sotaque péssimo. Aliás, não é “exclusividade” deles: o FHC e o Jô Soares – este último viveu na Suíça – também são horrorosos falando francês.

  • Saint-Clair Stockler 17/03/2007em17:28

    justamente “sobre”, errei.

  • Areias 17/03/2007em17:38

    Franceses falando inglês e ingleses falando francês é sempre um problema (para eles). Isso não reduz a paixão de um pelo outro (talvez até…). Mas é fácil reconhecer brasileiros falando essas línguas lá fora (ainda que falem bem). Na minha opinião, esse trem da alegria literária deve fazer parte de uma estratégia semelhante à Flip, ou seja, dar a autores brasileiros uma visibilidade de celebridade pública e assim tentar difundir o hábito da leitura entre os viventes deste país. Devo estar errado na minha especulação, mas quem disse que especulação tem que ser correta?

  • Cezar Santos 17/03/2007em20:22

    “Da grande geração de escritores ingleses que integra com Ian McEwan, Martin Amis e Salman Rushdie, Julian Barnes é o mais europeu…o mais francófilo… O que o torna também, previsivelmente, o de menor sucesso comercial dos quatro.”
    Na minha modesta opinião, o que o torna o de menos sucesso comercial dos quatro é que os outros três são melhores que ele. Simples asim…

  • João Marcos Cantarino 18/03/2007em02:18

    Ele é bom. Há muitos bons escritores jovens na Inglaterra: John Banville, Mark Haddon, Dan Rhodes. Sem falar na espetacular geração oitenta.

  • Zeca Futão 19/03/2007em10:34

    Acho ótimo esse projeto da Companhia. Apesar de ainda estar meio nebuloso, tem nomes excelentes, especialmente a Adriana Lisboa. é uma escritora reconhecida, mas deve pelejar para conseguir viver de literatura.
    Pelo que vi na matéria da Folha tem tb nomes controversos, mas coitado deles – imaginem ter seu livro lado a lado com o do Sérgio Santanna. Só tomando muita bala para dormir com um barulho desses.

  • Saint-Clair Stockler 19/03/2007em23:49

    A Adriana Lisboa, pelo que sei, está atualmente morando em Denver. Convenhamos: tá muito melhor do que nós, nesses Tristes Trópicos.