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Lendas etimológicas: Aguardente

11/07/2009

Dando prosseguimento à série que a Flip interrompeu, segue um texto publicado em minha coluna diária sobre palavras no site “NoMínimo” em 2/3/2005:

A leitora Luiza Fontes, de São Paulo, envia uma historinha de certo sucesso na Internet sobre a origem das palavras “aguardente” e “pinga” – texto creditado, não se sabe se acertadamente, ao Museu do Homem do Nordeste, no Recife. “Você pode confirmar sua veracidade?”, pergunta Luiza. Não posso, lamento: a história é grotescamente falsa. Obra de algum etimologista bêbado ou apenas exemplo daquele conjunto de crendices divertidas que faz divisa com a etimologia popular, a coisa, no entanto, é instrutiva ao seu modo – embora não sobre aquilo que pretende ensinar. Vamos à lenda:

Antigamente, no Brasil, para se ter melado, os escravos colocavam o caldo da cana-de-açúcar em um tacho e levavam ao fogo. Não podiam parar de mexer até que uma consistência cremosa surgisse. Porém um dia, cansados de tanto mexer e com serviços ainda por terminar, os escravos simplesmente pararam e o melado desandou! O que fazer agora? A saída que encontraram foi guardar o melado longe das vistas do feitor. No dia seguinte, encontraram o melado azedo (fermentado). Não pensaram duas vezes e misturaram o tal melado azedo com o novo e levaram os dois ao fogo. Resultado: o “azedo” do melado antigo era álcool, que aos poucos foi evaporando e formou no teto do engenho umas goteiras que pingavam constantemente, era a cachaça já formada que pingava, por isso o nome (PINGA). Quando a pinga batia nas suas costas marcadas com as chibatadas dos feitores ardia muito, por isso deram o nome de ÁGUA ARDENTE. Caindo em seus rostos e escorrendo até a boca, os escravos perceberam que, com a tal goteira, ficavam alegres e com vontade de dançar. E sempre que queriam ficar alegres repetiam o processo. Hoje, como todos sabem, a AGUARDENTE é símbolo nacional!!!

De saída, algumas inconsistências históricas. A aguardente (palavra e coisa) já existia quando se começou a fabricar cachaça no Brasil. Os primeiros registros do vocábulo “aguardente” em português datam do século 15, antes de Cabral pisar aqui. Até hoje um dicionário como o da Academia das Ciências de Lisboa diz que esse tipo de bebida alcoólica é obtido pela “destilação do vinho, do bagaço de uvas, de cereais, ou de outro produto vegetal doce”. Como se vê, nossa cana-de-açúcar não ganha nem citação nominal, ofuscada, por exemplo, pela bagaceira.

Preconceito contra a branquinha? Que nada. “Aguardente”, a palavra, deve tanto à cultura da cana quanto a invenção do cinema deve, por exemplo, a Cacá Diegues. É uma das inúmeras descendentes do latim aqua vitae, “água da vida”, nome genérico dos espíritos que os alquimistas acreditavam ter o poder de prolongar a vida. Dessa matriz, direta ou indiretamente, saíram o espanhol aguardiente, o italiano acquavite, o francês eau-de-vie, o holandês vuurwater (literalmente “água ardente”), o russo vodka (diminutivo de zhiznennia voda, água da vida), o sueco akvavit e até o inglês whiskey (por meio do gaélico uisge beatha, também água da vida).

Se a palavra “aguardente”, como ficou demonstrado, é bem anterior à primeira gota de marvada destilada em terras nacionais, “pinga” é um caso diferente – veio muito tempo depois. O primeiro registro conhecido do uso da palavra com esse sentido traz a data de 1813. E convenhamos que, comparada à versão do álcool que pinga do teto, a explicação singela do etimologista Silveira Bueno soa cristalina: pinga é simplesmente “a gota que lenteja do alambique na destilação do álcool de cana-de-açúcar e, por extensão, é o próprio álcool, a aguardente”.

No fim das contas, fatos históricos à parte, um certo contorcionismo barroco – e aparentemente gratuito – bastaria para denunciar a falsidade da história que intrigou a leitora. Se a aguardente arde na garganta, por que imaginá-la irritando feridas abertas por chibatadas? Se pinga do alambique, por que descrevê-la pingando do teto após uma estranha evaporação acidental? Por ignorância – é uma tese respeitável, mas creio que insuficiente.

Falta explicar por que alguém acreditaria que no Brasil, essa terra tão inocente, a “descoberta” da aguardente se deu por acaso. Tenho uma teoria: porque assim é possível encaixar na historinha escravos preguiçosos e desleixados, que deixam o melado estragar, e além de tudo trapaceiros, porque escondem o ocorrido do feitor; escravos cachaceiros, já se vê, mas fundamentalmente musicais – quando bebem, têm “vontade de dançar”.

Não deve ser por outro motivo que a cachaça virou “símbolo nacional”. Com três pontos de exclamação.

7 Comentários

  • Dora 11/07/2009em20:11

    Olá, Sérgio. Já li sobre várias “lendas” etimológicas e, mesmo não tendo fundamento algum, gosto de enxergar nelas o produto de uma mente criativa…rs Não sei se fui clara.
    Vim, lendo seus posts sobre a FLIP e me bateu uma saudade do evento! Talvez você não se lembre de mim. Eu havia enviado a você um e-mail sobre Oficinas de Literatura e fiquei encantada com a presteza com que me respondeu. Obrigada. Continuo a minha busca, no entanto.
    Agora, a “Elza, a garota” está me envolvendo, desde o dia em que iniciei a leitura. Estou nas páginas finais. Depois, penso até em lhe escrever um mail com minhas impressões.
    Um abraço.
    Dora

  • JH 13/07/2009em04:16

    Já vi falsos étimos mais criativos e convincentes. Este da pinga/aguardente é mesmo ridículo.

  • Blog Mallmal 17/07/2009em01:08

    Texto perfeito. Faltou entrar no mérito do ridículo, sob as leis da física, que é o produto da evaporação do etanol condensar-se em um telhado de madeira. Ou em qualquer telhado…

  • Aguinaldo Ramos 30/07/2009em09:34

    Excelente análise, Sérgio.
    Cachaça, bem servida, tb é cultura.
    Abs,

  • Sérgio Rodrigues 30/08/2009em13:56

    Lendas etimológicas: Aguardente

  • Sérgio Rodrigues 30/08/2009em13:56

    Todoprosa – Blog de literatura de Sérgio Rodrigues
    11/07/2009 – 11:15
    Lendas etimológicas: Aguardente

  • Joana Öberg 11/09/2009em08:41

    Muito obrigada por ter escrito este texto Sérgio. Estava justamente pesquisando sobre a veracidade desta lenda para poder imprimir e distribuir em um evento. Confesso que a realidade não tem tanto charme, mas é bom saber sempre a verdade. Abraços da Suécia 🙂