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‘Mãos de cavalo’: parem as máquinas!

18/05/2006

Entre “críticas” que raramente são mais que resenhas apressadas, notinhas em blogs e entrevistas oba-oba, tudo emparedado por sólidos muros de silêncio comodista da universidade, volta e meia eu me vejo intrigado e perplexo com a recepção dada a nossos livros pela elite cultural brasileira – aquela fatia fina da população que se interessa por literatura a ponto de perder seu tempo escrevendo ou lendo sobre um assunto tão, hmmm, inútil.

Não me refiro apenas ao modo como as relações de amizade e compadrio se sobrepõem freqüentemente aos critérios estéticos – isso é assunto velho, e talvez não possa ser diferente num mundinho tão pequeno e de ar tão viciado. Quando falo em perplexidade, penso mais na forma como certos juízos se espalham rapidamente, sem contraditório, numa inércia em que a baixa média geral de leitura parece se mesclar ao medo de contrariar o bando.

Isso gera maluquices, distorções e injustiças que, até certo ponto, sempre fizeram parte do jogo. Verdade – literatura não é para quem tem pele sensível e desiste fácil. Meu temor é que, a partir de um determinado ponto, as maluquices geradas por nossos mecanismos falhos de avaliação e difusão de novidades literárias tenham o poder de desestimular tanto a boa escrita quanto a boa leitura.

Exemplo quente do forno: a Companhia das Letras lançou recentemente o melhor e mais animador livro de um escritor brasileiro que leio em muito tempo. “Ah, isso eu sei”, dirá você, que já andou se informando por algum de nossos grandes jornais ou revistas eletrônicas alternativas e sabe que todos, ou quase todos, chegaram a um consenso glorioso: o livro do momento é “O paraíso é bem bacana”, de André Sant’Anna. Certo?

Para mim, errado. Espero tratar do livro de Sant’Anna em breve, mas posso adiantar que me parece estarmos diante de um monumental equívoco de julgamento – daqueles que, de tão monumentais, são até interessantes. Certamente não é o melhor e mais animador livro de um escritor brasileiro que leio em muito tempo. Esse carimbo midiático, mas sincero, eu guardo para o novo título do gaúcho Daniel Galera, o romance “Mãos de cavalo” (Companhia das Letras, 190 páginas, R$ 34,00).

Daniel Galera, 26 anos, é um dos mais jovens representantes da chamada “geração internet”. Publicou seus dois primeiros livros por conta própria, pelo selo Livros do Mal: “Dentes guardados” (contos) e “Até o dia em que o cão morreu” (novela). Ambos interessantes e ambos imaturos na forma e no conteúdo: obras, no fundo, do adolescente talentoso que ele praticamente era.

Galera mostra ter crescido de forma surpreendente em “Mãos de cavalo”. O livro é narrado na terceira pessoa do ponto de vista do cirurgião plástico Hermano, que tem o apelido do título por causa das mãos enormes. Sua vida se apresenta ao leitor em três planos temporais intercalados: infância, adolescência, idade adulta. A arquitetura hábil do romance permite a Galera compor, com prodigiosa economia de meios e dosando secura e lirismo com a sabedoria de um veterano, uma emocionante história de crescimento.

Sim, trata-se de um típico Bildungsroman, um romance de formação. O subgênero é difícil de encarar por causa do grande número de clássicos inscritos nesse campeonato, de “Este lado do paraíso” a “O apanhador no campo de centeio”, de “O Ateneu” a “O encontro marcado”. Pois Daniel Galera não apenas topa o desafio como consegue a proeza de atualizar o romance de formação, trazendo-o para a era dos jogos de computador, das corridas de bicicleta downhill, da calça de tactel, do celular, do alpinismo com equipamento de última geração. E o mais incrível – o velho subgênero de nome alemão se sente à vontade nesse ambiente, como se nunca tivesse vivido em outro lugar.

Já vejo narizes torcidos para um suposto “conservadorismo” do jovem autor – quem quer apostar? Uma das manias de nossa imprensa literária é cobrar revoluções por minuto de quem mal aprendeu a assinar o nome. Pela seriedade com que encara os desafios do romance tradicional, buscando verosimilhança, precisão nas descrições, densidade psicológica do protagonista, Galera poderia, sim, ser acusado de ter pouca ousadia.

Eu prefiro um enfoque diferente. Acho ousadíssimo encarar com sobriedade um aprendizado técnico, o da ficção de qualidade, que a tradição cultural brasileira costuma desprezar em benefício de inspirações súbitas, storylines bombásticas e sacadas de estilo “geniais”.

Enfim, não deixe de ler “Mãos de cavalo” e formar seu próprio juízo. O meu não se pretende definitivo, é claro. Só acho estranho que, tendo, como tem, fundamentos tão defensáveis, ele esteja meio mal representado pelos porta-vozes habituais de nossa inteligência literária.

21 Comentários

  • Miguel 18/05/2006em18:58

    é possível uma ficção estar “equivocada”? o que seria isso? existe algum ponto de vista sobre a humanidade que seja o correto, para que possamos definir os outros como errados? o estilo do andré é muito apropriado para revelar certo conjunto de sentimentos humanos, e limitadíssimo para falar de outros. isso não se chama equívoco, mas universo ficcional. a não ser, claro, que acreditemos na existência de necessidades na arte, de obrigações e proibições, de certos e errados, tese que me parece um tanto equivocada. abs

  • Luis Antonio Escobar 18/05/2006em19:20

    Não, Miguel, não existe literatura equivocada. O que existe, pelo visto, é leitor, como você, para lá de equivocado. Dê uma relida no texto. Você não precisar ser físico nuclear para entender que o autor falou sobre juízos equivocados em torno de certo tipo de literatura. Entendeu?

  • Shirlei Horta 18/05/2006em21:00

    Não li “Mãos de cavalo”, mas aceito seu convite para lê-lo. Aliás, adorei a maneira como você convida à leitura. Quanto à crítica que você tece a escritores e a leitores (aí incluídos os críticos), concordo especialmente no que diz respeito à necessidade de se estar revolucionando a escrita todo santo dia. A palavra “vanguarda”, que carimbou tudo que se criava na década de 1970, é um pesado e desnecessário fardo, que só faz desanimar os novos e potenciais talentos artísticos.

  • Rafael Rodrigues 19/05/2006em01:45

    Sérgio, também li o “Mãos de cavalo” e partilho da mesma opinião. Muitíssimo bom romance do Galera. E é bom ver que não apenas eu, mais jovem que ele um pouco, achei que o romance é mesmo um livro de valor. Meu senso crítico está cada vez mais apurado. Abraço, e seu site foi uma descoberta (antes tarde do que nunca) agradabilíssima.

  • lao 19/05/2006em09:27

    Carta Capital elogiou o Romance de Galera há umas duas semanas. Pretendo ler em breve.
    abrs,

  • cida 19/05/2006em09:47

    Sugestão, Sérgio: que tal postar um trecho do romance no NoMínimo?

  • Lívia Santana 19/05/2006em09:50

    Já ouvi falar TANTO desse “Mãos de Cavalo” que tá virando necessidade lê-lo. Onde eu acho?

  • Miguel 19/05/2006em10:13

    recomendo a vc seguir sua sugestão, luis. abs

  • Sérgio Rodrigues 19/05/2006em10:26

    Caros Miguel e Luis, a disputa de vocês se deve a uma ambigüidade involuntária que havia no meu texto, e que espero ter eliminado acrescentando “de julgamento” após a palavra “equívoco”. O Luis leu o que pretendi escrever com clareza e não consegui: o que chamo de equivocado não é o romance mas a leitura que dele se faz.

    Embora em tese, e já que você falou nisso, Miguel, eu não considere nenhum absurdo falar em equívoco ficcional. Basta, por exemplo, que um autor faça as escolhas de meios erradas para a obtenção de um efeito que claramente busque. Ou que obtenha efeitos de humor involuntário ao narrar uma tragédia. Mas estou falando em tese.

    Abraços a todos.

  • Vinícius Trindade 19/05/2006em10:36

    Li o “Mãos de Cavalo” assim que saiu. Acompanho o trabalho do Galera desde “Livros do Mal” e fiquei feliz quando soube que “Até o dia que o cão morreu” ia virar filme. “Mãos de Cavalo”, além de ser o melhor livro novo que li recentemente, é um deleite pra quem nasceu em 79 (ou perto disso). Todas aquelas referências são maravilhosas e o texto é permeado de boas sacadas e pouquíssimas bolas fora. Reforço o convite que o Sérgio fez.

  • Miguel 19/05/2006em13:06

    Correndo o risco do preciosismo, eu diria que nestes casos se trataria de fracasso, mais do que equívoco, propriamente. Porque é difícil saber até que ponto o desenvolvimento de um certo estilo ou tom é uma escolha. Na verdade, reagi ao seu comentário porque ele me lebrou da minha primeira impressão ao ler o livro do André. A escrita dele resulta numa restrição tão radical daquilo que pode ser dito e explorado, que me pareceu de alguma maneira “errada”, uma compreensão equivocada das pessoas. Depois, ao perceber, que essa restrição permitia uma espécie de compensação, uma intensidade e originalidade raras na representação de certos -ainda que poucos- sentimentos, achei melhor pensar em termos de limitação do que de erro. Sobre a recepção ao livro do Galera, que ainda não li, te lembro da resenha bem elogiosa da Beatrz Resende na Veja. Recepção bem melhor do que a dedicada pela revista ao “paraíso”.
    abraço

  • Sérgio Rodrigues 19/05/2006em13:54

    Miguel, não penso no livro do André Sant’Anna em termos de erro. Como são obviamente propositais, não chamaria de erro a autocomplacência extrema e a opção pela reiteração infinita de um “estilo” até em prejuízo da própria narrativa. De elogio ao Galera, ainda que com ênfase um pouco menor do que eu julgaria apropriada, teve a resenha da Veja, sim. E a do Polzonoff na Bravo. De relevante, pouco mais. Abs.

  • Roger 19/05/2006em14:30

    Sergio: embora tenha vivido quase toda sua infancia e adolescência no RS, Daniel Galera é paulista.

  • Sérgio Rodrigues 19/05/2006em14:55

    Obrigado pela precisão, Roger. Gaúcho nascido em SP, então.

  • Drex 23/05/2006em17:30

    Olá Sérgio,

    Realmente o livro do Galera merece ser lido.

    Por outro lado, não concordo contigo quanto à falta de reconhecimento do livro. Na verdade, a exposição que “Mãos de Cavalo” obteve na mídia me surpreendeu bastante.

    Além das diversas “resenhas apressadas” escritas na internet (confesso que também escrevi uma, no site Scream&Yell), o lançamento do livro gerou textos em diversos jornais e revistas, sempre com opiniões no mínimo positivas. Destaco a crítica elogiosa que o Fabrício Carpinejar fez no Estadão. Espantosamente, até a Veja falou bem, gerando desconfiança do pessoal mais “independente” (até o Mário Bortolotto comentou certa desconfiança com os elogios do semanário dos Civita…).

    Foi gostoso ver o livro assim bem recebido. Ficou até com cara de “hype”, o que deve ser evitado. Sinto um pouco que a imprensa oficial vem abrindo mais espaço para a literatura, e arriscando sair um pouco dos chavões com mais de 60 anos de idade. Tomara. O Galera, por sua vez, merece. Apesar de jovem, construiu uma trajetória bonita e o livro é muito bom.

    Um abraço,

  • Sérgio Rodrigues 23/05/2006em18:28

    Drex, quando falei em “resenhas apressadas” não me referia só (nem mesmo principalmente) à internet. Na verdade, acho que a rede é a grande esperança de cura para aquelas precariedades da imprensa literária que eu lamento na nota. Quanto à recepção ao livro do Galera, senti falta do comparecimento de certas vozes tidas como autorizadas – não importam os nomes – para dizer com a ênfase cabível que não, dessa vez não se trata de mais um romance simpático de um jovem promissor, estamos bem além disso. Talvez, como você diz, o livro tenha sido “prejudicado” pelo elogio da Veja, a maldita. Mas a repercussão está crescendo, e pelas reações de gente à minha volta eu acho que o boca-a-boca tem muito a ver com isso. Fico contente.

    Um abraço.

  • Malu 24/05/2006em20:22

    Adorei sua resenha do livro, Sérgio. Eu tava enrolando um pouco pra ler, porque tava sem pique pra mais um desses romances doidinhos (pensei que fosse o caso de “Mãos”). Fiquei boba com o moço. O livro é bom demais, só decepciona um pouquinho no final porque (parece óbvio, mas é isto) acaba e eu fico querendo mais do Hermano, de Porto Alegre e da história tão bem contada pelo Galera.

    O blog tá bacana. Parabéns.

  • Marcelo Moutinho 26/05/2006em17:40

    Antes de tudo, parabéns pela coluna interessante e necessária. Só hoje conheci. Concordo com você com essa exigência de que novos autores precisem revolucionar a linguagem. O que hpa de mal com a narrativa clássica? A qualidade não está necessariamente atrelada a correntes, está além disso… Abraço!

  • Castro Nunes 29/05/2006em14:35

    Caro Rodrigues:
    Seu texto levanta ótimas questões. Para mim, a principal delas é a incapacidade de muita gente tida como conhecedora em reconhecer o que é bom ainda que sob a embalagem de uma forma convencional.O velho Lukács já dizia que , em arte , quando se tem alguma coisa para dizer devese encontrar a forma correta para faze-lo. Isso é o estilo. Parabéns.

  • Ana Paula V. 30/05/2006em17:46

    O livro do Galera não me parece estar sendo ignorado. Muito ao contrário. Acho que está sendo até bem comento. O que me desagrada nesta geração de jovens escritores é que eles SEMPRE parecem estar falando de si mesmos. E de maneira tão pouco sutil… Que um escritor fala de si em tudo que escreve não é segredo pra ninguém. Mas as metáforas poderiam ser menos óbvias. E suas perspectivas menos desolé. Nessas horas que eu suspiro: “salve, Calvino”.

  • Ana Paula V. 30/05/2006em17:50

    errata: “…está sendo até bem comentado”.