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O prefácio do psicanalista

13/08/2012

O narrador do romance sou eu. Meu nome será omitido, mas não minha profissão, esta sim importante: sou psicanalista praticante, de consultório na praça há mais de vinte anos. Bem de vida, sim, mas não propriamente rico como alguns colegas. Fui mais escrupuloso, quem sabe; menos esperto sem dúvida. Construí uma carreira sólida e plana, mantive-me ao largo da politicagem da profissão, do assédio da imprensa, das tentações da glória acadêmica. Era um analista na linha de frente, só isso. Infantaria, tudo o que eu desejava. Como outros são ortopedistas, cirurgiões, otorrinos, eu praticava a psicanálise. Meus pacientes me pagavam por isso. E o que seria isso, exatamente? Ouvir, claro. Os pacientes contavam suas histórias. Eu ouvia.

Compreendo que para o leitor isso seja, ao primeiro contato, meio desconcertante. Parece claro que o analista não pode ser outro senão, justamente, o leitor – confere? O escritor é o paciente, o analisando. Conta sua história, tece sua teia. O analista é o leitor, vítima e algoz, enredado e crítico ao mesmo tempo. Caberá a ele encaminhar a resenha, comprar ou não o livro, dá-lo de presente aos melhores amigos, esquecê-lo num canto inacessível da estante ou, pior, vendê-lo a peso a um sebo. É isso mesmo, e no entanto…

O passo seguinte ao modernismo, talvez sua conseqüência mais inescapável, é a necessidade de superação de um inimigo poderoso: a perda da inocência de qualquer enunciado, com o decorrente descrédito do narrador em terceira pessoa, que soa grotesco no século XXI. Quem conta? Por que conta? Eis o nó. Daí essa glorificação da primeira pessoa que vemos ao nosso redor, o império da idiossincrasia e da “parcialização” da narrativa, em que o limite é torná-la irrelevante. Irrelevantes todas as histórias – anódinas, bestas. Pois se já não é possível, a esta altura do pagode virtual, qualquer traço de universalismo ou mesmo de modesta generalização, para que ler, afinal? Por que cargas de dilúvio me interessaria o que narra aquele idiota ou, a propósito, qualquer idiota? Entendendo-se por idiota, sob esse prisma, todo mundo?

Não, já não há história que valha a pena contar (do contrário, por que pagariam profissionais para ouvi-las?). Isso não quer dizer, obviamente, que elas deixaram de ser contadas. Pelo contrário, infinitas histórias riscam o espaço o tempo todo, mais numerosas do que nunca. Quer dizer apenas que falta a todas a mínima transcendência: o drama de fulano é o drama de fulano, ponto.

Ora, o narrador em terceira pessoa com ponto de vista limitado, mas privilegiado, oferece ao analista a possibilidade de criar uma voz nova na literatura, com renovada credibilidade e textura. Ele sabe o que vai na alma do protagonista porque este lhe contou tudo, se esmerou em se fazer entender, e ninguém melhor do que um analista para entender o que nem o confessor entende direito. Acreditamos nele porque sabemos que o personagem lhe abriu a alma por contrato profissional, pagando caro para tanto. Ao mesmo tempo, não se trata de um narrador neutro: não há resquício aqui daquele deus fajuto do realismo novecentista, o cara é humano. O que seu contar pode ter de interessado permanece para o leitor como incógnita e como horizonte, a dar perspectiva e volume aos contornos da história, à espera de luzes que se hão de acender – nem um segundo antes, nem um segundo depois – na hora exata.

Evidenciado o trunfo técnico, resta o aspecto moral da questão, que não me constrange em absoluto. Posto diante do pacto fáustico de trocar o sigilo profissional pela chance de criar o narrador perfeito, não hesitei um instante sequer. E não se trata de vaidade, ou não só dela: uma lógica nova se impõe, como a fome ao desejo.

O romance que começa agora é toda a minha justificativa, leitor. Aproveite-o. Não é todo dia que a literatura concede a nós, leitores, sermos testemunhas de uma revolução.

Um comentário

  • Daniel 14/08/2012em13:09

    UAU!!!!