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O sáurio

04/04/2008

As livrarias pequenas ou decadentes eram as melhores. Sentimentalismo? Picas: ausência de câmeras. Esgueirava-se entre as estantes feito réptil, puro sangue frio em movimento.

Sim, um lagarto. Com olho de ave de rapina para que nada lhe escapasse: localização da obra em foco, vendedores mais próximos, possibilidade de flagra por meio de traiçoeiros espelhos ou jiraus. Suích, suích, lá ia ele dobrando esquinas acolchoadas de best-sellers, iguana com olho de gavião e mente hiperativa de escritor.

A obra em foco era sempre, de algum modo, a mesma: o último sucesso de um de seus companheiros de geração. Pareciam inesgotáveis seus companheiros de geração. E os sucessos que produziam. Acompanhava os lançamentos, pupilas estreitas esquadrinhando os cada vez mais anêmicos cadernos literários dos jornais. Para isso pelo menos serviam os pasquins: montava ali, à mesa do café, o roteiro das próximas investidas.

Às vezes acontecia de esbarrar com seu próprio livro escondido em algum pé de estante empoeirado, entre ácaros e oblívio. Raro, raríssimo. Mas sempre doía. Seu bebê incompreendido, seu prematuro grotesco. Era vexaminoso encontrá-lo nessas incursões, geralmente escondido atrás de tomos impossíveis, um guia de montanhismo lapão, a autobiografia da stripper que foi sucesso década e meia atrás.

Preferia que não acontecesse, que seu rebento jamais tivesse deixado o estado de embrião. Ao mesmo tempo, o encontro sempre lhe fortalecia o ânimo para a tarefa que o aguardava. E um nobre sentimento gelado, temperatura de sáurio, adoçava-lhe o crime por vir.

Profissional orgulhoso, jamais apanhado, lá ia ele. Suích, um camaleão, sujeito sério, ninguém o tomaria pelo que era. Os vendedores sempre se distraíam em algum momento e era o que bastava: em dois segundos, estava consumado o delito. Hora de vazar.

Na rua, com as pupilas de rapineiro se adaptando à luz do sol e um gosto de sangue na boca, o coração batia no esôfago e a euforia lhe desenrolava um tapete de vento sob os pés.

Missão cumprida: mais um paparicado companheiro de geração escondido atrás de barreiras inexpugnáveis de guias de montanhismo lapão e autobiografias de stripper.

Uma injustiça a menos neste mundo mau.

16 Comentários

  • Tibor Moricz 04/04/2008em11:44

    Sérgio, você captou as vibrações que emanam do meu peito. Nunca me transformei em réptil para realizar a façanha, mas tive vontade. E tenho vontade. Quem sabe um dia. Todos nós, os incompreendidos. Numa turba agitada, levantando poeira nas livrarias. Você comandando a tropa, claro!

  • Sérgio Rodrigues 04/04/2008em11:52

    Tibor, fico feliz por ter conseguido captar o que lhe vai n’alma. Um escritor não tem o direito de desejar mais do que isso, concorda? Mas você vai ter que achar outro líder pra sua turma de incompreendidos.

  • Tibor Moricz 04/04/2008em12:37

    Ora bolas! Você um líder nato.

  • Sérgio Rodrigues 04/04/2008em13:03

    Obrigado, meu caro. O problema é que me sinto um pouco, digamos, compreendido demais para aceitar tão nobre incumbência.

  • Tomás 04/04/2008em13:30

    Em geral faço o contrário. Resgato meu “prematuro grotesco” das pilhas empoeiradas e o coloco diante dos pseudo-literários de auto-ajuda.

  • Pablo 04/04/2008em15:58

    Injustiça seria passar por aqui e não deixar ao menos um comentário: genial, Sérgio!

  • joaquim 04/04/2008em16:33

    Menos, Pablo. Menos…

  • o rapineiro 04/04/2008em17:01

    liga não pablo. sáurio na área!!! kkkkkk

  • Fernando Molica 04/04/2008em17:47

    Muito bom!

  • Mr. WRITER 04/04/2008em18:15

    Sérgio,
    cumprindo meu ultimato… E o livro “Sobrescritos”, é pra quando mesmo?

  • Joao Gomes 04/04/2008em18:40

    Sérgio,

    …Acho que o Nareba escapou da Penitenciária.
    Iconoclasta perambula pelas livrarias fazendo justiça…

    Muito bom!

  • Sérgio Rodrigues 04/04/2008em19:30

    Tomás: se o livro que você desenterra da pilha é o ‘Cama de cimento’, está bem desenterrado. Ainda não li, mas tenho boas referências. Está na fila.

    Molica: valeu, amigo. E boa sorte com o lançamento de ‘O ponto da partida’.

    Obrigado Pablo, João e todos, abraços.

  • Eric 05/04/2008em00:52

    Ai, ai. Esse post valeu meu dia.
    Pelo conto e pelos comentários.

  • Tomás 05/04/2008em14:09

    Olá Sérgio,
    Estava falando mesmo do Cama de Cimento.
    E quanta honra estar na sua fila!
    Abraço

  • El Torero 07/04/2008em16:41

    Muitas vezes, são estantes inteiras que me dão ganas de serem emparedadas…

  • Cezar Santos 08/04/2008em17:07

    Sérgio,
    Bom pra daná este textículo ai… afiadim, afiadim.
    Ironia com verve, fluidez com sacação.