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‘O vento que arrasa’, uma aquarela argentina

01/08/2015

o vento que arrasaUm carro tem defeito no meio do nada, numa estrada deserta na província argentina do Chaco. A bordo dele vão um pastor evangélico itinerante e sua filha adolescente. Rebocados até a oficina de beira de estrada de um mecânico solitário e grosseirão, que vive ali na companhia de um garoto silencioso, também adolescente, e um número indefinido de cachorros, pai e filha terão que esperar que o carro seja consertado para seguir viagem.

Com esses elementos escassos, a escritora argentina Selva Almada compôs a narrativa “O vento que arrasa”, publicada por lá em 2012 e agora lançada no Brasil (Cosac Naify, tradução de Samuel Titan Jr., 128 páginas, R$ 29,90). Recebido com entusiasmo crítico incomum em seu país, o livro foi eleito o melhor lançamento da ficção argentina naquele ano, em votação organizada pela referencial editora e livraria Eterna Cadencia, e sai aqui com orelha empolgada da crítica Beatriz Sarlo, que o chama de “romance surpreendente” de “uma narradora original”.

Em primeiro lugar, será preciso corrigir a classificação de “O vento que arrasa” como romance. Trata-se sem dúvida alguma de uma novela, ainda que generosamente engordada pelo papel robusto (Pólen Bold 90) e pelas dimensões da mancha gráfica. Essa correção pode parecer um preciosismo, apego excessivo a uma nomenclatura que nada significa. Não creio que seja isso.

“O vento que arrasa” é uma boa novela realista que tira sua força justamente da adequação da história a tal moldura. Não se trata apenas da extensão, mas também da ação comprimida em menos de 24 horas, do número exíguo de personagens e da ligeireza com que a voz narrativa em terceira pessoa esboça cada um deles, dos mais bem acabados – o reverendo Pearson e sobretudo o mecânico Gringo Brauer – aos mais esquemáticos e incipientes, os jovens Leni e Tapioca.

Quando recorre aos flashbacks para contar em pinceladas rápidas a história de cada um deles (todos irmanados por algum tipo de desamparo ou orfandade na infância ou na juventude), a voz, que no primeiro capítulo limitava-se a descrever com destreza a superfície da cena, penetra por fim na cabeça de cada um, como a música que entra o tempo todo pelos fones na cabeça de Leni. Até um cachorro, Baio, recebe tal tratamento perto do fim do livro, conduzindo a narrativa por três páginas.

A alternância de pontos de vista tem papel estruturante, mas não é na interioridade dos personagens que reside o interesse de “O vento que arrasa”. O maior mérito de Selva Almada é, com a leveza ao mesmo tempo certeira e borrada de uma aquarelista, criar cenas carregadas de atmosfera em torno desses quatro, que são mais tipos do que indivíduos. Algumas dessas cenas são belas e chegam a cortejar a pura epifania, efeito literário que costuma se sentir mais à vontade em contos e novelas do que em romances. É o que ocorre, por exemplo, na cena do súbito, gratuito espírito comunitário que baixa sobre o heterogêneo quarteto quando chega uma tempestade.

Os quatro ergueram o rosto para o céu. Não havia nada melhor a fazer naquela altura.

Quanto tempo durou? Vá saber. Foi um momento único e completo, quando todos foram um só. A garrafa passou de mão em mão até se esvaziar. Leni até deu um beijo no pai, sem que ele se opusesse.

É a escassez de elementos mobilizados pela autora, sua habilidade de sugerir mais do que conta, que leva sua singela história realista a tangenciar – sem jamais adentrar – o território da alegoria e do mito. É também o que nos faz atravessar as poucas horas de leitura de “O vento que arrasa” sob uma nuvem cada vez mais carregada de apreensão, quase de medo, à espera da catarse violenta que o título espertamente promete. Descobrir se a promessa chega a se cumprir é uma tarefa prazerosa que deixo para o leitor.

2 Comentários

  • Sérgio Karam 02/08/2015em14:15

    Ô xará, esse livro é uma beleza, assim como os outros da Selva Almada (ela tem mais uma novela, um livro de contos e um de crônica-reportagem publicados). Tanta coisa boa sendo publicada na Argentina, né? Abração!
    Salve, xará, tudo bem? Achei bem legal, mas não espetacular. Grande abraço.

  • Thiago Maia 05/08/2015em17:24

    Que bom uma nova resenha sua, SR. Um abraço.