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Por que o Google Ads é coisa de psicopata

06/09/2014

american psycho x infinite jest“O psicopata americano”, o romance mais conhecido do escritor americano Bret Easton Ellis, é um livro detestável na opinião de David Foster Wallace, com a qual concordo. Mas é um livro detestável que, de uma forma que seria até desonesto não considerar brilhante, conseguiu ficar na história como o melhor retrato de uma época e uma cultura detestáveis – o yuppismo dos anos 1980.

A posição referencial que American psycho assumiu na recente ficção dos EUA pode ser constatada mais uma vez numa experiência curiosa: a “reescritura” do livro por meio do Google Ads, que resultou na publicação de um e-book chamado, justamente, American psycho, de BEE, mas cujo texto foi substituído por uma longa lista de notas de rodapé (ironicamente, recurso adorado por DFW) em que figuram os anúncios que cada naco de prosa gerou automaticamente ao passar pela correspondência de seus “autores” no Gmail.

Ou seja, trata-se do retrato de uma época marcada pela fetichização da mercadoria comentado por uma época marcada pela onipresença da mercadoria. Seria forçado chamar de “literatura” o que fizeram Mimi Cabell e Jason Huff, não por acaso formados em design: sua experiência – sobre a qual se pode ler mais, em inglês, aqui – fica mais à vontade no escaninho da arte conceitual. Mas não deixa de jogar luz sobre a obra original de BEE o fato de ter sido ela a escolhida para gerar um catálogo de produtos.

“O psicopata americano” não é muito mais que isso. Ao longo de quatrocentas páginas, um jovem e bem-sucedido profissional de Wall Street, Patrick Bateman, descreve em detalhes sua rotina, que se divide entre os dois lados de sua personalidade. No primeiro, Bateman e seus colegas yuppies torram o dinheiro que têm de sobra em produtos e serviços pretensiosos e absurdamente caros, num desfile massacrante de grifes que elimina qualquer ideia de diversão que se pudesse associar ao consumo – caramba, grita repetidamente o livro, como são infelizes esses caras!

É no segundo lado da personalidade de Bateman que está o pulo-do-gato do romance. Além de jovem nababo do mercado financeiro, o sujeito é o mais industrioso psicopata da história da literatura. Na prosa elegante de Ellis, os incontáveis assassinatos sádicos cometidos impunemente por Patrick Bateman são descritos de forma tão detalhada quanto seus hábitos de consumo, com efeito também entorpecedor.

Há momentos de humor negro que facilitam a tarefa, mas, de modo geral, a sensação de atravessar o livro guarda semelhanças com a de destrinchar aquele capítulo de “2666”, de Roberto Bolaño, chamado A parte dos crimes, com seu compêndio tedioso de mulheres assassinadas. No entanto, há uma diferença importante de efeito estético, que reside no ponto de vista. Em “2666”, a narração impessoal e monótona das mortes repetidas, fatos já consumados no momento em que a literatura entra em cena, lembra o relatório dos legistas. A exposição intolerável aponta para uma realidade intolerável sem que se possa acusá-la de cumplicidade pornográfica com o que condena.

Não é o caso de “O psicopata americano”, que se esbalda no comportamento doentio do protagonista. Sua única defesa é o descolamento sarcástico entre autor e narrador – pois é claro que Ellis e todos nós julgamos Bateman um monstro, confere? Eis um ponto em que o experimento de Cabell e Huff revela, certamente sem querer, o caráter simplista do projeto de BEE. Uma cena de assassinato com facas gera… anúncios de facas! Uau!

É aí que entra a crítica de DFW. Numa entrevista dos anos 1990, ele afirmou que a arte não pode se contentar em ser um mero espelho da ruindade do mundo e que o livro de BEE “sacia desavergonhadamente os desejos sádicos da audiência por um tempo, mas no fim deixa claro que o verdadeiro objeto do sadismo é o próprio leitor”. Foi o começo de uma inimizade que o suicídio do autor de Infinite jest não aplacou e que recentemente levou BEE a declará-lo “o mais tedioso, superestimado, pretensioso escritor da minha geração”. Nessa briga, mesmo reconhecendo méritos no autor de “Abaixo de zero”, meu lado está escolhido desde o primeiro parágrafo.

5 Comentários

  • Alex R.F. 06/09/2014em16:39

    Sérgio, qual livro de DFW eu deveria experimentar?
    Qual o seu predileto?

    • sergiorodrigues 08/09/2014em17:44

      Alex, está prometida para este ano ainda a tradução do Caetano Galindo para o Infinite jest, pela Companhia das Letras. Nesse caso não dá para ter dúvida.

  • Ivan, o Terrível 10/09/2014em13:39

    Alguma relação com a obra “Babbitt” de Sinclair Lewis, que mostra o lado mesquinho e ridículo de parte da classe-média americana? Obra de 1922!
    São livros cruéis na visão satírica da sociedade americana, mas, embora eu não tenha lido Babbitt, acredito que bem diferentes. Babbitt é um homem comum, seu retrato tem densidade psicológica e pouca coisa “acontece” no romance, certo? Bateman é um serial killer implausível, uma caricatura, e no livro dele acontece coisa à beça.

  • Alex R.F. 12/09/2014em09:36

    Obrigado, Sérgio!
    Fala-se tanto em DFW, mas, consultando a wikipédia, são apenas três romances, né? Eu me lembro de uma tradução de um texto dele sobre Roger Federer, até dei uma olhada no google agora, mas não consegui reencontrá-lo. De todo modo, ficarei no aguardo, um abraço.

  • Alessandro 26/09/2014em18:14

    Já teve o “prazer” de atravessar o “Glamorama” e seus “quartos com cortinas escuras desenhadas por Mary Bright e tapetes Maurice Velle Keep e espreguiçadeiras Hans Wegner e divãs de couro Spinneybeck e sofás cobertos com chenille Larson”? Bret é incrivelmente tedioso, pornograficamente compilador. Se com “Psicopata Americano”o fascínio era com os assassinatos sádicos, neste, a sua lista sem fim de nomes de estrelas cinematográficas, marcas de cremes para as rugas, endereços chiques de Nova Iorque e pratos da alta gastronomia alcançam, também, muito mais de cumplicidade do que de ojeriza. Uma verdadeira orgia do consumo, igualmente detestável.