Clique para visitar a página do escritor.

Que cena! Cai a máscara do narrador em ‘Lolita’

23/07/2012

nabokovTodo o romance é espetacular, uma das obras-primas do século 20, mas a cena abaixo – situada ao fim do primeiro terço de “Lolita” (1955), escrito diretamente em inglês pelo russo Vladimir Nabokov – ocupa posição de destaque. Em primeiro lugar por uma questão de arquitetura, como ponto de virada em que, pela ação quase inverossímil do “longo e cabeludo braço do Acaso”, a paixão proibida de Humbert Humbert, o narrador, sai da sombra da dissimulação familiar para a luz solar de um desfrute que chega perto de ser escandalosamente assumido.

Não é só isso: também no relevo emocional do romance estamos, aqui, num pico elevado. Dele desce serpenteando uma montanha-russa de duas pistas. Numa trafega H.H. com sua voz narrativa que, como aponta com propriedade o escritor irlandês Brian Boyd na atual edição da revista “Serrote”, lembra muito – na inconfiabilidade, no traçado sinuoso, no uso do leitor como vocativo – a do melhor Machado de Assis. Cínico, brilhante, esnobe, esse representante decadente do Velho Mundo tem seu diário secreto violado e vê desmoronar sem aviso a farsa que montou ao se casar com Charlotte Haze, americana de meia-idade que despreza, para usufruir da companhia de sua filhinha, a encantadora Lolita. Parece o fim de seu jogo, mas…

Na outra pista do sobe-e-desce, coração na boca, vamos nós, leitores: lembrados a cada frase de que Humbert é um canalha, e ao mesmo tempo seduzidos pelo brilho de sua prosa sofisticada (aqui na bela e já clássica tradução de Jorio Dauster), sabemos que temos o dever moral de nos alegrar com sua desgraça, mas…

A alegria vem de onde menos se espera.

Como no dia anterior eu havia terminado o regime de frieza que me impusera, ao abrir a porta da sala de visitas anunciei minha chegada com uma jovial saudação. A nuca branca e o coque cor de bronze voltados para mim, Charlotte, vestindo a blusa amarela e as calças marrons que usava no dia em que a conheci, estava sentada diante da escrivaninha de canto escrevendo uma carta. Segurando ainda a maçaneta, repeti meu caloroso alô. Sua mão parou de escrever. Ela ficou imóvel durante alguns segundos e depois virou-se lentamente na cadeira, apoiando o cotovelo sobre o espaldar curvo. Seu rosto, deformado pela emoção, não era algo bonito de se ver; com os olhos baixos, cravados em minha perna, ela disse:

“A mamãe Haze, a cadela gorda, a gata velha, a desmancha-prazeres, a… idiota não está mais aqui para ser enganada por você. Ela pegou… ela pegou…”

Minha imparcial acusadora parou de falar, engolindo seu veneno e suas lágrimas. O que Humbert Humbert disse – ou tentou dizer – não é relevante. Ela continuou:

“Você é um monstro. Você é um impostor nojento, abominável, um criminoso. Se você chegar perto de mim, vou gritar pela janela. Saia daqui!”

Aqui também, creio eu, pode-se omitir o que quer que H.H. tenha murmurado.

“Vou embora essa noite mesmo. Tudo isso aqui é seu. Só que você nunca mais, mas nunca mais, vai ver aquela garota miserável outra vez. Sai dessa sala!”

Leitor, pois foi o que fiz. Subi para o ex-semi-studio. Com as mãos nos quadris, fiquei parado algum tempo na porta, inspecionando com toda a serenidade a mesinha violada e sua gaveta aberta, uma chave dependurada na fechadura, outras quatro espalhadas sobre o tampo. Atravessei o corredor, entrei no quarto de casal e calmamente retirei meu diário de sob o travesseiro de Charlotte, enfiando-o no bolso. Comecei então a descer as escadas, mas parei no meio: ela estava falando ao telefone, que ficava bem ao lado da porta da sala de visitas. Queria ouvir o que estava dizendo: cancelou uma encomenda qualquer e voltou para a sala. Controlei a respiração, atravessei o vestíbulo e entrei na cozinha, onde abri uma garrafa de uísque. Ela nunca resistia a um uísque. Caminhei até a sala de jantar e, através da porta entreaberta, contemplei as largas costas de Charlotte.

“Você está arruinando minha vida e a sua”, disse com voz tranquila. “Vamos nos comportar como pessoas civilizadas. Tudo isso não passa de alucinação sua. Você está maluca, Charlotte. As anotações que você encontrou fazem parte de um romance. Seu nome e o dela estão ali por mero acaso. Apenas porque estavam disponíveis. Pense bem. Vou lhe fazer um drinque.”

Ela não respondeu nem se voltou em minha direção, continuando a escrever a todo o vapor. Aparentemente, uma terceira carta (em cima da escrivaninha já havia dois envelopes selados). Voltei para a cozinha.

(…) Carregando os dois copos, atravessei a sala de jantar e falei através da porta da sala de visitas, que estava quase encostada, não permitindo nem mesmo que eu enfiasse o cotovelo pela frincha.

“Preparei um drinque para você.”

A maluca nem se dignou a responder e eu pousei os copos sobre o aparador, perto do telefone que havia começado a tocar.

“Quem fala aqui é o Leslie. Leslie Tomson”, disse Leslie Tomson, aquele que apreciava um mergulho de manhãzinha. “A dona Charlotte acabou de ser atropelada e acho bom o senhor vir depressa para cá.”

Respondi, talvez com certa irritação, que minha mulher estava sã e salva. Sem largar o receptor, empurrei a porta e disse:

“Tem um sujeito aqui dizendo que você foi morta, Charlotte.”

Mas não havia mais nenhuma Charlotte na sala de visitas.

4 Comentários

  • Daniel 23/07/2012em12:52

    Fantástico!

  • Claudio Faria 24/07/2012em16:18

    Presença certa em qualquer lista que eu fizer dos 10 melhores livros que já li. Ele é tão maravilhoso, tão especial, que jamais o reli – e olha que já se passaram mais de 10 anos! – simplesmente porque suas cenas, vários de seus diálogos e, principalmente, seu clima, ainda estão presentes. Não é uma leitura, é um deleite.

  • Rômulo Alcoforado 24/07/2012em23:48

    Sérgio, qunando li Lolita associei imediatamente HH a Portnoy – de Philip Roth. Tenho visto cada vez mais comparações entre Nabokov e Machado. Mas a obra do russo não dialoga bastante com a do americano também, não?

    • sergiorodrigues 25/07/2012em11:01

      Não duvido que seja possível defender essa tese, Rômulo. Mas nesse caso teríamos um caso de influência, enquanto os intrigantes paralelos com Machado (que nada indica ter sido lido por Nabokov) são de um tipo mais misterioso. Um abraço.