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Que cena! Joyce entra com Bloom na casinha

29/08/2015

joyceA cena abaixo é uma das mais famosas – e infames – de “Ulisses”, do irlandês James Joyce (“Ulysses” na edição da Penguin-Companhia, tradução de Caetano Galindo, 1112 páginas, R$ 50,00). Parte do que a fez tão especial pode escapar aos leitores de hoje, habituados a todo tipo de indiscrição literária: o escândalo provocado nas primeiras décadas do século XX pelo fato de Joyce ter acompanhado o personagem Leopold Bloom em sua ida matinal ao banheiro, jornal na mão, na cabeça a ideia de se livrar de uma prisão de ventre.

Em vez de esperar do lado de fora, por pudor ou bom gosto, o escritor entra com Bloom no reservado malcheiroso e faz o que está determinado a fazer em seu romance estranho, excessivo, prodigioso (mais sobre ele aqui): narrar tudo o que se passa diante dos sentidos e dentro da cabeça de seus personagens naquele 16 de junho de 1904 em Dublin.

O resultado é o esquete abaixo, com sua comicidade ultrajante que a excelente tradução de Galindo aproveita ao máximo. E que inclui até uma autoironia feroz, prova de que Joyce, ao escrever aquilo, divertia-se com o furor que ia causar: “Imprimem qualquer coisa hoje em dia”, pensa Bloom, crítico, enquanto lê seu jornal, prestes a lhe dar uma aplicação menos óbvia. “Época besta. Ele continuou lendo, sentado calmo sobre seu próprio odor que se elevava.”

O poeta e crítico literário Ezra Pound, editor de Joyce na revista The Little Review, de Nova York, cortou as passagens mais escatológicas do trecho abaixo – parte final do episódio 4 do romance, chamado “Calipso” – ao publicá-lo em 1918. Temia problemas com a lei, o que era sensato, mas em carta ao autor formulou uma censura estética também:

“Eu considero certas coisas má literatura, nessa seção. Má porque você desperdiça a violência. Usa palavras mais fortes que o necessário, e isso é arte ruim, assim como qualquer superlativo supérfluo é arte ruim. O contraste entre a poesia interior de Bloom e o ambiente que o circunda é excelente, mas não precisa, para se realizar, de tratamento tão detalhado das fezes que caem.”

Curiosamente, o juiz John M. Woolsey, que em 1933 rejeitou a acusação de pornografia e autorizou a entrada do livro nos EUA, demonstrou em sua antológica sentença uma compreensão mais sofisticada que a do autor de “ABC da literatura” sobre as intenções artísticas de Joyce:

“As palavras censuradas por sua vulgaridade são velhos termos saxões que quase todos os homens conhecem e, ousaria dizer, muitas mulheres também; e são, creio eu, palavras usadas com frequência e naturalidade pelo tipo de indivíduos cuja vida, física e mental, Joyce estava tentando descrever. (…) o efeito de ‘Ulisses’ sobre o leitor, em muitas partes, é sem dúvida um pouco emético, mas nunca apresenta a tendência de ser afrodisíaco.”

Abriu num chute a porta torta da casinha. Melhor cuidar pra não sujar essa calça pro enterro. Ele entrou, curvando a cabeça sob o lintel baixo. Deixando a porta entreaberta, em meio ao fedor da barrela mofada e a teias murchas ele soltou os suspensórios. Antes de sentar espiou por uma frincha as janelas do vizinho. O rei estava em sua tesouraria. Ninguém.

Acocorado no tamborete ele desdobrou seu jornal virando as páginas em cima dos seus joelhos nus. Alguma coisa nova e fácil. Sem grandes pressas. Segurar um pouquinho. Nosso pitéu especial. O golpe de mestre de Matcham. Escrita pelo senhor Philip Beaufoy, do Playgoers’ Club, Londres. Um pagamento à razão de um guinéu por coluna foi feito ao autor. Três e meia. Três libras e três. Três libras treze e seis.

Tranquilamente leu, contendo-se, a primeira coluna e, cedendo mas resistindo, começou a segunda. A meio caminho, cedendo suas últimas resistências, ele deixou o intestino se aliviar tranquilamente enquanto lia, lendo ainda paciente, bem curada aquela constipaçãozinha de ontem. Espero que não seja grande demais fazer voltar as hemorroidas. Não, bem certinho. Isso. Ah! Prisão de ventre. Um comprimido de cáscara sagrada. A vida podia ser assim. Nada emocionante e nem tocante para ele mas rápido e benfeito. Imprimem qualquer coisa hoje em dia. Época besta. Ele continuou lendo, sentado calmo sobre seu próprio odor que se elevava. Bem feitinho mesmo. Matcham sempre pensa no golpe de mestre com o qual conquistou a feiticeira sorridente que agora. Começa e termina moralmente. De mãos dadas. Esperto. Passou de volta os olhos pelo que tinha lido e, enquanto sentia sua urina escorrer calmamente, invejou cortesmente o senhor Beaufoy que tinha escrito aquilo e recebido um pagamento de três libras treze e seis.

Até podia fazer um esquete. Dos senhor e senhora L. M. Bloom. Inventar uma estória pra algum provérbio qual? Aquela vez que eu tentei rabiscar no punho da camisa o que ela ia dizendo enquanto se trocava. Não gosto de trocar de roupa junto. Me cortei fazendo a barba. Mordendo o lábio inferior, enganchando o colchete da saia. Cronometrando. 9.15. O Roberts já te pagou? 9.20. O que é que a Gretta Conroy estava usando? 9.23. Onde é que eu estava com a cabeça quando comprei esse pente? 9.24. Eu fiquei inchada com aquele repolho. Um grão de poeira no cromo da bota dela.

Esfregando prontamente uma giga por vez contra a panturrilha da meia. A manhã depois do baile do bazar quando a banda da May tocou a dança das horas de Ponchielli. Explicar que as horas da manhã, da tarde, depois o entardecer chegando, depois as horas da noite. Escovando os dentes. Foi a primeira noite. A cabeça dela dançando. As varetas do leque estalando. Esse Boylan é bem de vida? Ele tem dinheiro. Por quê? Eu notei que o hálito dele estava com um cheiro bom dançando. Não adiantava cantarolar depois. Aludia. Uma música esquisita aquela ontem de noite. O espelho estava na sombra. Ela esfregou o espelho de mão rispidamente no colete de lã contra o peito cheio boleante. Espiando lá dentro. Ruguinhas nos olhos dela. Não dava jeito, de alguma maneira.

Horas do entardecer, meninas de gaze cinza. Horas da noite daí pretas com adagas e meiasmáscaras. Ideia poética rosa, daí dourado, daí cinza, daí preto. E ainda é verossímil também. Dia, daí a noite.

Ele rasgou metade da estória especial bruscamente e se limpou com ela. Então prendeu a calça, abotoou-se e prendeu os suspensórios. Puxou a sacolejante porta balouçante da privada e surgiu das trevas para o ar.

4 Comentários

  • Carlo Magno Menezes. 29/08/2015em10:32

    Joyce é um dos poucos orgulhos de se fazer parte da combalida raça humana. Um verdadeiro divisor de águas na história da literatura.

  • Katia Bizzarro 29/08/2015em10:44

    Sérgio,

    É verdade que “Ulisses” de Joyce foi escrito por uma equipe?

    Parabéns pela coluna sempre inusitada e divertida!

    Abraços!
    Obrigado, Katia Bizzarro! Mas que história bizarra de equipe é essa? A obra de Joyce foi escrita por Joyce mesmo. Um abraço.

  • DIMAS (Goiânia) 04/09/2015em09:37

    Se Ezra Pound não gostou desse trecho, imagina como ele iria reagir se tivesse em mãos a obra “Secreções, Excreções e Desatinos” de Rubem Fonseca! Estou lendo, finalmente, a grande obra Ulisses, da tradutora Bernardina da Silveira Pinheiro. Estive em em seu museu, em Dublin e na estante onde se encontram as edições de outros países, a edição brasileira da editora Objetiva está em destaque.

  • Cronos 07/09/2015em16:06

    Engraçado! Uma coisa tão corriqueira.Quem já não fez isto? Uma das coisas mais prazerosas da vida é se aliviar no banheiro lendo alguma coisa. Nessa, Ezra Pound exagerou.