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Sabato morreu em baixa. Borges e Kirchner venceram?

02/05/2011

A morte do escritor argentino Ernesto Sabato (1911-2011) no último sábado, a menos de dois meses de completar cem anos, motivou os elogios fúnebres de praxe. Pena que o necrológio, esse gênero cheio de superlativos que precisa dar ao leitor a ilusão de que o redator tem os olhos marejados, não seja bom condutor de inteligência e senso de perspectiva histórica. É porque Sabato merece ambos que o artigo publicado ontem no jornal espanhol “El País” pelo escritor argentino Jorge Fernández Díaz, sob o título “Os claro-escuros do túnel” (em espanhol, acesso gratuito), se torna mais notável na exposição dos fatores que levaram o autor de “Sobre heróis e tumbas” a morrer com seu prestígio literário em queda livre.

Para resumir os argumentos de Díaz, enunciados no trecho abaixo, são dois os inimigos da reputação de Sabato. Um é estético-mundano, o outro é político. Um é de direita, o outro é de esquerda. Ambos são poderosíssimos: Jorge Luis Borges e o kirchnerismo.

Literária ou não, jagunçagem é sempre um assunto triste, mas mantê-la na sombra do não-dito só lhe agrava o potencial de injustiça. Quem pode garantir saber o que dirá a posteridade, que para Sabato mal começou? Como Díaz, eu me limito aqui a tirar o chapéu para uma novela de 1948 chamada “O túnel”, que considero uma das maiores obras da ficção sul-americana no século 20.

Recordemos que Sabato foi elogiado por Camus, que recebeu o Prêmio Cervantes e que a crítica especializada dos principais jornais do mundo logo o equiparava a Borges e o exaltava incansavelmente. O curioso é que esse prestígio literário foi se erodindo ao longo das últimas décadas, restando poucos escritores de primeira linha (Magris, Saramago) capazes não apenas de se declarar devedores de seus romances, mas de vindicar sua prosa de forma direta e franca. Seus colegas asseguram em voz baixa, para ser piedosos com o venerável narrador, que os livros de Sabato não resistem a uma leitura atual, que sua fama foi uma moda, e que foi obtida à base de aparições públicas e do cumprimento do papel de “escritor comprometido com seu tempo”.

Esse último aspecto foi especialmente repudiado, e não só pelos que sustentam que um escritor deve falar apenas através de sua obra, da mesma forma que um juiz só deve falar através de suas sentenças. Também foi criticada de maneira implícita sua participação na Comissão Nacional dos Desaparecidos por parte de setores vinculados ao governo argentino, que mandou escrever recentemente um novo prólogo do “Nunca mais”. Sabato foi, como se sabe, uma das pessoas decisivas na confecção desse documento extraordinário onde se narram os horrores da última ditadura militar, e o redator final do primeiro prólogo, onde se assinalam não só os crimes de lesa-humanidade que os militares haviam cometido: também se alude ali aos atentados e assassinatos perversos que as organizações armadas de esquerda levaram a cabo durante a democracia. Este último trecho parece ofensivo a muitos dirigentes kirchneristas, visto que tal inclusão no “Nunca mais” estaria equiparando um demônio a outro, pondo num mesmo nível duas formas de violência política, e nada é mais grave do que utilizar o Estado para fazer terrorismo. O kirchnerismo conseguiu a adesão fervorosa das elites universitárias, de modo que vocês podem imaginar como também esse assunto polêmico teve impacto negativo sobre a figura de Sabato, que, para sermos justos, jamais disse que o ERP e os Montoneros eram tão culpados quanto os hierarcas da ditadura.

Creio que nada teve maior influência no descrédito literário de Sabato que os comentários jocosos e depreciativos que lhe prodigalizaram Borges e Bioy Casares ao longo de toda a sua vida. O monumental “Borges” de Bioy, onde se reproduzem os cruéis e deliciosos diários íntimos do autor de “A invenção de Morel”, tornou público o privado, e ali ficaram registradas por escrito muitas diatribes contra Sabato. Abundam neste e em outros livros de entrevistas e miscelâneas dezenas de anedotas lapidares sobre Don Ernesto, que muitas vezes aparece ridicularizado por sua literatura e por sua vaidade. Borges foi um inimigo íntimo e subterrâneo de Sabato, embora tenham dialogado num livro magnífico que mereceria uma releitura atenta. No entanto, a pregação irônica de Borges golpeou gravemente a estatura do autor de “Um e o universo”. De alguma maneira, a opinião borgiana acabou se constituindo numa espécie de versão oficial sobre a obra de Sabato.

Quem sou eu então para refutar Borges? Ninguém. A verdade é que não abro um livro de Sabato há trinta anos. No entanto, recordo-me hoje vivamente de como roía as unhas lendo “O túnel”, sentindo em minha adolescência aqueles mesmos cios enfermiços de seu protagonista.

9 Comentários

  • t. 02/05/2011em15:41

    se nunca tivessem anunciado seu falecimento, sabato seria imortal. outrora autor da juventude, hoje somos nós, velhos de todas as idades, que ainda conseguimos reconhecer o valor de sua literatura. quem perde não há dúvidas: essa juventude, também de todas as idades, que se importam somente em manter a pele esticada.

  • Clelio T. Jr 02/05/2011em17:25

    Ontem na ilustríssima da FSP tem um artigo do Tabarovski desancando o Sábato também. Existe um livro de diálogos entre Sábato e Borges que é bem interessante, vale a pena ver a troca entre os dois.

  • Fabio Daflon 02/05/2011em18:38

    Quando literatura e política se misturam tudo pode ocorrer. Creio que somente o político por excelência pode ser da dimensão exata e do tamanho de sua obra. Comparemos Dante Alighiere com Nelson Mandela, o grande poeta colocava seus inimigos e desafetos nos círculos do inferno, enquanto Mandela refletia sobre o perdão e a paz na África do Sul. Borges nunca se meteu com política, se tivesse se metido talvez fosse um “pouco menor” do que é. Aqui no Brasil alguns esquerdista cínicos ou no mínimo mal informados ainda cultuam Carlos Marighela como herói, quando Jacob Gorender em seu livro Combates nas trevas confessa que o companheiro admitia certas ações mesmo que envolvessem mortes de inocentes como cota necessária ao processo revolucionário. Da mesma forma o Prêmio Nobel para Mario Vargas Llosa foi pouco festejado, com a comunidade acadêmica dizendo que os textos políticos dele são de menos valor que seus romances, mas isso apenas por Vargas Llosa ser um liberal nato e um grande defensor da democracia.

  • Ernani Ssó 03/05/2011em07:16

    Tudo pode ser, mas – falando apenas por mim, como sempre – jamais consegui reler um livro do Sábato. O que mais me incomoda nele é a tentativa de parecer mais profundo do que é. Quanto à pessoa, era a vaidade em tamanho natural. Conheço gente que o conheceu. Mas há uma boa história do Borges com ele. Borges, entediado com a academia, o convidou pra entrar pra dita cuja. Sábato recusou. Borges disse que era uma pena, que Sábato instalaria o caos lá.

  • Neder 03/05/2011em17:09

    Muito bom o post e o texto reproduzido. Só ficaram faltando informações sobre o teor dos comentários jocosos feitos por Borges e Casares. O que, afinal, criticavam em Sábato…?

  • Pelosta 04/05/2011em13:05

    Este texto do Dámian, citado pelo Clélio T, é um exemplo escarrado do comentário do Jorge Díaz. A título de curiosidade mórbida, Neder, o jornalista Ariel Palácios afirma que Bioy Casares teve um caso com a mulher do Sabato. http://blogs.estadao.com.br/ariel-palacios/

  • Neder 06/05/2011em18:24

    Obrigado, Pelosta. Pouco literária, mas muito convincente a suposição. Vou ler o texto.

  • charlles campos 07/05/2011em10:34

    É justamente por Sabato estar “em queda” que o leio ávidamente. “Em queda” em relação a quem? À cada vez mais autista crítica literária que considera literatura de primeira coisas divertidas e supérfluas como, vamos dizer “O Solar”, de McEwan (que já foi bom, em um passado recente). Escritores que são eclipsados pela modística acadêmica de literatos não perdem seu valor, sua originalidade, e sua capacidade de provocar espanto; antes, quando “redescobertos”, ressurgem revestidos de força sem igual. O próprio Camus seguia no esquecimento quando foi reabilitado através de um ótimo ensaio de Tony Judt.