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Saramago: leitura para poucos, polêmica para todos

01/06/2006

“Ler sempre foi e sempre será algo para uma minoria”, disse José Saramago ontem à noite, criticando o Plano Nacional de Leitura, um ambicioso projeto que os ministérios da Cultura e da Educação de Portugal apresentam hoje. Programa governamental de incentivo à leitura, para o autor de “Memorial do convento”, é algo que “não é válido, é inútil”. Notícia da Reuters aqui.

A ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, reagiu assim que se recuperou do susto com a declaração politicamente incorreta da maior glória das letras lusitanas: “Não vejo como ações que tentam promover e democratizar a leitura sejam vistas como secundárias”.

Tocaram, Saramago e a ministra, num debate interminável. É corajoso dizer o que disse o escritor, certamente com enorme dose de razão: programas de “incentivo à leitura” são ótimos para burocratas e rendem encomendas de grandes tiragens a editoras, mas costumam cair no vazio de um sistema educacional – e de um modelo de sociedade, sejamos francos – que simplesmente não valorizam isso.

Por outro lado, se o fato – inegável – de que ler sempre foi para poucos conduzir ao imobilismo, será que esses poucos não serão cada vez menos? Isso me fez lembrar de uma tirada de Marçal Aquino, autor de “Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios” (Companhia das Letras), que merecia ter muito mais leitores do que tem. “Literatura é para uma seita”, diz Marçal.

Difícil discordar. Mas algumas seitas crescem, outras vão murchando até morrer. O que será da nossa?

42 Comentários

  • eduardo 01/06/2006em16:18

    Acho que incentivar a leitura é muito interessante, mas desvolver no leitor um senso crítico. Você pode ler qualquer coisa, mas não achar que o que se lê é uma verdade absoluta. Cada escritor tem um ponto de vista.

  • Leticia Braun 01/06/2006em16:27

    Não acho que literatura seja para uma seita. Mas que é para poucos, é. Saramago incomodou justamente aqueles que vivem de grandes projetos de leitura: as editoras enjabazadas com o governo e os burocratas.

  • Pedro 01/06/2006em17:15

    O que o Saramago fala não se escreve, e ele mesmo sabe disso, pois não seria um grande escritor se fizesse o contrário.Mas da saramaguice de agora sai ao menos uma discussão importante. Incentivar a leitura é bem mais complexo do que supõe os programas governamentais. Eu, por exemplo, não leio porque minha mãe ou algum professor disse que era bom. Leio porque minha mãe lia, e só. Ela, por sua vez, só lia porque tinha uma profissão que lhe dava tempo e disposição para isso. Agora, como fazer com que se interesse pela leitura o filho de uma empregada doméstica, se ela trabalha o dia inteiro e chega em casa em condições apenas de descansar para a jornada do dia seguinte? Como fazer com que leia, se ele sabe que para profissão que a sociedade lhe reserva não se faz necessária a leitura?

  • joao gomes 01/06/2006em17:29

    Concordo com o Pedro. Como incentivar a leitura? O caso do episodio de Lost do livro que nao existe pode ser um recurso, (incentivo) mais forte do que muitos planos governamentais de motivacao para a leitura.
    Penso que esta geracao midiativa, do visual pode ser “convertida” mas a ferramenta, (marketing) tem que ser inteligente e como diz o velho adagio popular “o artista tem que ir onde o povo esta” . A Arte/literatura tambem tem que sair dos gabinetes das Flips (sempre em Parati) da vida e ir para o interior desse nosso IMENSO Brasil!

  • Te 01/06/2006em21:10

    O que vejo de mais eficaz em formação de leitores são iniciativas anônimas e não-governamentais, como de catadores de papel e pedreiros que formam bibliotecas nas favelas e na periferia, atraindo grande número de leitores.
    Quanto à sobrevivência da seita, se resistiu através dos séculos a bibliotecas incendiadas e índices de autores proibidos e chegou aos blogs, não vejo como poderá morrer. Nem mesmo com esses “futurólogos” que decretaram o fim do livro.

  • Leticia Braun 01/06/2006em21:39

    Te, concordo com você. Incentivo à leitura está nesses exemplos que você citou. Desde que me entendo por gente vejo livros nas escolas, fornecidos pelos governos, e sempre as mesmas editoras, e sempre os mesmos jabás, e a criançada está cada vez mais analfabeta, o que dá uma tremenda tristeza! Quanto às seitas, discordo. A reserva literária atual não se restringe aos blogs (ainda bem!)

  • Clara 01/06/2006em23:45

    O comentário do Saramago é um dos mais instigantes que já li. Tendo a discordar dele, mas tenho que pensar mais a respeito. Alguma coisa está fora de ordem…

  • Writing Ghosts 02/06/2006em01:09

    Saramago talvez nem tenha pensado tão profundamente ao fazer o comentário. É fato que o espírito humano se alterna, hoje, entre coisas muito mais instigantes – para essa mesma inteligência mediana-rasteira a qual o escritor (e eu, aqui) se referia – que as ‘tediosas’ páginas extáticas, sem luzinhas piscando, sem ‘interatividade’, sem um multicolorido brilhante, dinâmico, explosivo e impactante; e que ainda cobram um certo trabalho intelectivo do aventureiro que se arriscar por seu conteúdo..!

    Será que isso mudará com o advento, logo em breve, dos livros digitais (e-book) ? Tampouco creio.

    E quanto ao ser ‘politicamente incorreto’ ao tratar da questão: francamente acho que ele não tem mais idade (leia-se: “saco”) pra encarar esse tipo de baboseira. Eu não teria.

  • João António 02/06/2006em02:47

    Sou Português.
    Conheci Saramago aquando do lançamento de um dos seus últimos livros.
    È polémico, politicamente activo, e pergunta normalmente :
    Quem não agita sabe o que faz na vida ?
    São sentimentos diferentes na realidade.
    Contudo, tenho que concordar com ele, porque não é por acaso que o livro é um produto caro, a faculdade, a saúde e a advocacia, por exemplo, como uma barreira para que não se discuta o poder, nem se chegue até ele.
    Penso que foi este sentido que deu à sua fala, porque é tudo faz de conta.
    Concordo que o hábito de leitura se promove em casa com os Pais.
    Mas o que considero mais preocupante, e Saramago também refere isso nas palestras, é que o ser humano não questiona, não corre atrás do conhecimento, e lhe basta o bombástico do jornalismo, dos mídeos, para que faça disso, a sua verdade, mesmo que nada corresponda à realidade, mas que passa a constituir a verdade de cada um.
    È obvio que se tem de questionar, agitar, para tentar que as pessoas possam ler mais, mas também parece correto pensar, que não convém a quem governa, por isso só uma minoria se interessa e corre atrás do conhecimento.
    Mas tudo isto é complexo, ainda nos encontramos num estado que não nos permita ter uma solução, e só na realidade as minorias poderão abanar o mundo.
    Os homens que deram alguma coisa à humanidade foram disso exemplo.
    João António

  • Shirlei Horta 02/06/2006em03:17

    Todos aqui deram um pitaco interessante. Problemas complexos, soluções complexas. Não é “uma” solução, mas soluções, que passam por todas as necessidades básicas de uma população. Hoje, todo mundo sabe da importância da informação – mesmo que não consiga fazer esse enunciado. Mas intui, constata, depreende. Básico dos básicos, ainda que insuficiente, é ler para ser visto. Filhos vêem, vizinhos vêem, passageiros de ônibus vêem. Ler contagia.

  • joao gomes 02/06/2006em10:09

    apesar dos blogs terem a pecha de confissional ou “diario de adolescentes em crise”, edito e mantenho um pelo fato de ser um espaco gratis, democratico e de facil edicao. Tematica: ideias, artes. endereco:

    http://cavernadeplatao.blig.ig.com.br

    passe la e tome um cafezinho! E nao deixe de deixar uma msgsinha!

    E o artista/artesao indo ao encotnro do povo.

    Tem uma materia interessante sobre o livro no NYT.

    O futuro dos livros na rede

    The New York Times – 09:11 19/05 – Kevin Kelly

    Em diversos prédios de escritórios de todo o mundo, centenas de funcionário pagos pela hora se curvam sobre scanners e transportam livros empoeirados para avançadas cabines copiadoras. Eles estão reunindo a biblioteca universal página por página.

    LINK – http://ultimosegundo.ig.com.br/materias/nytimes/2379001-2379500/2379446/2379446_1.xml

  • P. Osrevni 02/06/2006em11:35

    È que normalmente essa turma da burocracia confunde “incentiver a leitura” com “incentivar a indústria editorial”. Entopem as crianças de livros que elas não entendem e o resultado é um só: elas tomam birra de livros. Incentivar a leitura é outra coisa, passa por mudar o modelo das aulas de literatura da escola. Mas, principalmente, é incentivar a escrita e o interesse por ela. Atividades escolares em que as crianças desenvolvem e escrevem suas próprias histórias, e vêem que conseguem fazer o mesmo que os escritores. Isso, sim, leva as pessoas a gostarem de ler, e desde pequenas, o que é fundamental. O resto é papo furado. Duvido que o Saramago discordasse disso.

  • P. Osrevni 02/06/2006em11:36

    Perdoem os erros de digitação…

  • Nicolas 02/06/2006em14:38

    O que também dificulta o acesso à leitura são os próprios livros. Apesar de boas obras disponíveis, o fosso entre a produção literária e a cultura geral cria autores herméticos, linguagens alternativas e um arsenal de bobagens. Quantas vezes me aventurei a ler livros pretensiosos, destinados à seita do Marçal Aquino? Os escritores e as editoras precisam criar livros bons e acessíveis, com temas de interesse geral, histórias dinâmicas e português compreensível. Como se sabe, a maioria não lê nem se ressente disso. É ingenuidade achar que vão se coçar sem que a produção literária ofereça uma contrapartida.

  • joao gomes 02/06/2006em15:37

    Nicolas

    … e o que é um bom livro?

  • Shirlei Horta 02/06/2006em16:39

    Concordo com P. Osrevni.

  • Peter Blake 02/06/2006em20:29

    Essas campanhas me deixam invocado. Como o próprio Sérgio disse, a leitura não é valorizada porque realmente não tem qualquer valor prático. Quem lê bem lê para si, não pelos eventuais benefícios práticos que isso acarreta, senão vai ler auto-ajuda, como o nome diz.
    Deve o governo gastar dinheiro com isso? Não, claro que não.

  • Writing Ghosts 02/06/2006em20:55

    … agora, que a “leitura não é valorizada porque realmente não tem qualquer valor prático – quem lê bem lê para si, não pelos eventuais benefícios práticos que isso acarreta(…)” – isso é uma piada?

  • Peter Blake 02/06/2006em21:04

    Qual é a piada, Ghosts? Você acha mesmo que literatura tem valor prático?

  • Leticia Braun 02/06/2006em21:25

    Entendi o que o Blake disse. Ele se refere aos valores práticos do rebotalho. Realmente, o grosso da população lê ou porque a escola pediu (Código Civil atualizado, comentado e anotado), ou tem um título sem-vergonha (Como fazer amigos e influenciar pessoas, O gerente-minuto) ou virou best-seller e a pessoa não quer se passar por alienada (O Código da Vinci). Há também os que os centros espíritas recomendam (Violetas na Janela).

  • Peter Blake 02/06/2006em21:47

    Letícia, o mundo gira e a Luzitana roda e o Brasil não seria, na prática, nem melhor nem pior do que é hoje se Machado de Assis tivesse morrido de bexigas aos cinco anos de idade. Seria um lugar mais triste, com certeza. Mas isso nada tem a ver com utilidade prática.
    Quem não enxerga isso é quem acha que a arte em geral e a literatura em particular eleva o ser humano e faz a sociedade melhor. Faz nada. Tá cheio de canalhas que leram Proust. Tá cheio de bom caráter que prefere o Prost. E tá cheio de uma porção de outras coisas. São eventos totalmente independentes.

  • Writing Ghosts 02/06/2006em21:50

    livros mobilizaram revoluções, Blake. em 19, em 39, em 68. livros foram queimados não por acaso durante o nazismo. também não por acaso foram inclusos no Index da Santa Igreja, numa polêmica de séculos que terminou (ainda bem) já faz um bom tempo. os ‘revolucionários’ russos tinham seus escritores. Maquiavel, Tomás de Aquino, Darwin: cada um à sua maneira, em sua área de atuação, foram fundamentais. Na prática! Se um mundo imensurável como o que vivemos dá tanta importância à literatura que cria e a seus autores, não deve ser à toa, não? a resposta mais completa à sua pergunta jamais poderá ser escrita em poucas linhas. só ‘praticando’, mesmo – em uma vida inteira sobre páginas abertas (e isso é só o começo).

  • Writing Ghosts 02/06/2006em21:56

    …se escrever é praticar na teoria, ler seria ensaiar a prática possível? há sempre um “antes” de idéias – que gera um “depois” de História “praticada” (com sangue muitas vezes: os homens-bomba que o digam, com seus pedaços. O Corão, então – e suas versões – não tem nada a ver com isso?)

  • Writing Ghosts 02/06/2006em21:59

    …e o valor prático de um software? ou você é um ‘ser’ apenas hardware? a “alma” do negócio está, também, nos livros. e existem ainda inúmeras outras analogias possíveis…

  • Peter Blake 02/06/2006em22:00

    Tá certo, Ghost, logo vi que não falamos da mesma coisa. Você fala de Darwin, Maquiavel e São Tomás de Aquino, eu falo de Machado de Assis e Proust. Você fala de ciência e filosofia, eu só falo de literatura.

    Agora, campeão, não é disso que se trata. Estamos falando de uma campanha para incentivar a leitura, não para promover a popularização da ciência ou divulgar a filosofia. Isso o Fantástico faz, sem que se precise abrir um livro.

    Mas desconfio que você saiba tudo isso e só esteja de marra.

  • Urariano Mota 02/06/2006em22:17

    A filosofia, a ciência, os filósofos, os cientistas se constróem com literatura. Para não ir muito longe, vejam a síntese que Freud realiza (e como escreve bem!). E se querem exemplo mais prático, vejam o pensamento de Marx, que não existiria sem a literatura, romances, poesia, teatro (e como escreve bem o barbudo!!!). Se pensam que a literatura é o exercício vazio do palavra-puxa-palavra, e culminam esse magnífico pensar com a impressão de que sem Machado o Brasil seria o mesmo…. leiam, por favor, “Instinto de Nacionalidade”, tornem a ler O Alienista. Sem puxar a brasa, recordo que uma certa “Oração para Canhoto da Paraíba” gerou 2 pensões para o genial violonista que se encontrava esquecido pela gente vil.

  • Peter Blake 02/06/2006em22:46

    Bom Urariiano, pensei duas vezes antes de responder um cara que acha que Marx escreve bem. Mas vá lá.

    Sem “Machado” (amigo íntimo, suponho), o Brasil seria exatamente esta merda que é. Só seria mais triste. Veja que não cabe juizo de valor. Machado de Assis é ducaraco, adoro poder ler “O Alienista”. Mas só faço isso porque gosto, não há qualquer outro motivo. Se isso influencia quem eu sou? Lógico. E daí?

    E se você acha que ciência e filosofia (ou qualquer outrra coisa) se confunde com literatura, vou instituir uma campanha, que já sei de antemão inútil, para melhorar as suas leituras.

  • Writing Ghosts 02/06/2006em23:27

    não: sem o “Machado” (rs), ou mesmo o Rosa! cujo olhar peculiar sobre o sertão completa 50 anos, o Brasil não seria o mesmo. Não é marra: do seu ponto de vista, o pouco ou nenhum valor dado à literatura pode se aplicar também à Arte, à Matemática Pura, à Física Teórica, à Filosofia.

    Quem come papel? Idéias sobre o infinito, sobre a existência de Deus?

    Nada prático: mas é a construção do espírito crítico que formará os cientistas que moldarão, estes sim, um mundo prático. E nada melhor que a literatura de ficção para “viajar” antes, sem responsabilidade até, onde a ciência porá os pés depois.

    E convenhamos: o ‘Fantástico’ (o sumo do lugar-comum do estereótipo) está para a articulação original e necessária como Guimarães Rosa está para o gibizinho, hein?

    …e por que podar o “espírito irreprimível” do ser humano? por que evitar a arte (quando ela sobrevive até nas comunidades mais primitivas: oral, intuitiva)? a literatura nos torna mais humanos: a metáfora nos salva da barbárie. Quando falei do Corão, não me referi a ele como ciência, até mesmo porque as escrituras sagradas do Islã não podem ser inclusas aí. Elas moldam a alma do muçulmano – aquilo que norte-americano algum jamais vai entender como funciona, como também nunca poderá com ela dialogar ou dominar. Mas os pedaços destes homens estão lá, ainda quentes, no chão. E a culpa, se não toda ao menos em grande parte, é dos ‘mundos possíveis’ criados pela… literatura (sagrada ou profana).

  • Writing Ghosts 02/06/2006em23:38

    voltando ao assunto primeiro: ainda acho que as campanhas são necessárias, que “água mole em pedra dura…” mesmo que tomadas de assalto por políticos oportunistas (infelizmente) – mas também não creio que o Saramago devesse ‘arredondar’ suas palavras: ele foi vítima, creio, do ‘escandalizado’ e medíocre modismo do ‘politicamente correto’, que assola as mentes pequenas por aí.

  • Peter Blake 02/06/2006em23:53

    Ghost, vamos lá, insisti porque você parece não ser burro: não estou negando o valor do que quer que seja: literatura, ciência, teologia, filosofia, o que você quiser. Claro que todas essas coisas tem valor e são meritórias e tal e coisa.

    Não é disso, contudo, do que se trata. Trata-se de reconhecer que a literatura é, de tudo o que você citou, a única que é uma experiência exclusivamente pessoal, tanto do ponto de vista da motivação (não se lê o “Machado” para se progredir na vida, por exemplo) como do ponto de vista das implicações (não se faz revolução após ler o “Machado”, ainda como exemplo). Percebe como é diferente?

  • Writing Ghosts 03/06/2006em04:59

    …entendo o que você diz, perfeitamente.
    O fato é: levantar a discussão sobre valores éticos, morais – que, dizem as línguas – é a base da nossa sociedade, e está (essa discussão, esse questionamento) evidentemente presente em grande parte de toda produção literária nacional então não é ter valor prático?

    …a ‘liberdade de espírito crítico’ não tem forma concreta, visível: por isso não existe?

    É natural que surja, entre os bons que leram Proust, algum “joio”. Mas os bons serão, quero acreditar, em maior número. Quanto ao bom-caráter que prefere o Prost, este pode mais facilmente ser manipulado por uma campanha como essa de reeleição do Lula, por exemplo, que mostra um País tranquilo, sem crise, sem violência, crescendo e feliz: visão tão ou mais esquizofrênica quanto a que se projetava na telinha nos anos de chumbo. E aí estão os índices do IBOPE que não me deixam mentir.

    …a diferença entre o leitor e o não-leitor então não pesa na prática?

    Antonio Cândido, Edmund Wilson e André Bazin podem estar fora de sua lista, mas não da minha, certamente: eles não me incitam a ganhar mais dinheiro, nem resolvem meus problemas mais ordinários. Mas pela sua pena, eu conheci o mundo em que quero morar. Por eles me tornei um formador de opinião entre os que me rodeiam, e isso ecoa gradualmente ao infinito. É pouco como um voto sozinho é capaz. Mas não é invisível, e germina como erva daninha.

    A ficção dá ânimo às descobertas e aspirações científicas. O público leigo se baseia nela (na ficção) para assimilar o legado frio e empírico dos homens de ciência (…os práticos?). Também serve (Arte) para esmiuçar o próprio Homem, sua reação às noções de materialidade que o cercam: a Arte registra o estado de espírito do Homem diante de sua própria e incalculável grandeza e complexidade. Sua crítica (a da Arte) nos revela os detalhes menos reconhecíveis ali, e compartilha a visão do autor com seu público.
    Começa-se a formar opinião: reação sofisticada e envolta em política e analogias com a realidade observada. Daí ao engajamento social é um passo menor. Os projetos tem mostrado resultados favoráveis, e há iniciativas particulares (como floradas no sertão): sem apoio algum do Estado, indicando o interesse vívido por experiências do gênero.

    A literatura agrega, irmana, delineia uma nação. Isso é prático e visível.

    No Afeganistão miserável, foi a forte cultura local um dos fatores de sua gigantesca resistência frente a potências como URSS e EUA (país, aliás, onde se tem das mais altas médias de leitura por cidadão no mundo: 11 livros por ano, o que desfaz outra idéia do texto de Sérgio Rodrigues: afinal, “ler é para poucos” só nestas plagas…)

    A diferença é: eu acredito no valor da Arte.
    Mr. Blake, não.

  • Leticia Braun 03/06/2006em15:31

    Blake, (lá em cima) me refiro ao povão, grandão. Pobres, classe média e ricos. É a realidade quando se pega um trem ou um metrozinho básico. É aquele espanto quando uma pessoa de suas relações, que você achava aparentemente instruída, arrotar que leu o senhor do anéis no orig. O que quis dizer é que a maioria das pessoas lê movida por um motivo banal.

  • Sérgio Rodrigues 03/06/2006em16:30

    Letícia, não entendi bem qual é o problema de ler ‘O senhor dos anéis’ no original. Tolkien é um caso sério, menina. Se você não fez isso, não sabe o que está perdendo. Abraços.

  • Paulinho Assunção 03/06/2006em18:41

    De todas as maneiras, já dizia Edmond Jabès: “Le monde existe parce que le livre existe”.

  • Shirlei Horta 03/06/2006em22:08

    Discordo frontal e definitivamente de Peter Blake, mas isso não tem nada a ver com gostar dele. Continuo gostando.

  • Peter Blake 03/06/2006em22:16

    Shirley, não entendo porque é tão difícil reconhecer que literatura não tem nenhuma aplicação prática. Não tem mesmo. O que não quer dizer que não tenha valor ou que possamos viver sem ela. Só não serva pra nada de prático na vida do vivente ou para aqueles que vivem a sua volta.

    Prova disso é nota do Sérgio sobre o Handke ali em cima. Um escroto que, segundo dizem (não posso jurar pois não li), escreve bem.

  • Leticia Braun 03/06/2006em22:24

    Não é isso, Sérgio. Não li O Senhor dos Anéis não por preconceito, mas é o tipo de assunto que não me interessa. O que tento analisar aqui, já que o assunto desvirtou, é o sentido prático que as pessoas dão à leitura. Tem gente que lê porque precisa para a escola, e tem gente que lê para dizer que lê. Por isso o “arrotar”. Agora, o ler por ler, por prazer mesmo, concordo com o Blake, não tem muita utilidade prática, não.

  • Writing Ghosts 04/06/2006em05:12

    …entendo que o Peter Blake entenda por “valor prático” a consequência direta e ‘fulminante’ de um conceito posto em ação, uma equação visualizável na rotina cotidiana. como o efeito na ingestão de uma dose cavalar de algum remédio alopático tarja preta… rs
    pra ver até onde se estende nossa diferença: eu, desde que me entendo por gente, só utilizo homeopatia: doses regulares e de baixíssima concentração (tanto que quase ‘invisíveis’, e por isso em meio a tanta polêmica sobre sua eficiência quanto “nossa” discussão) – mas garanto: os efeitos são práticos, não há dúvida! rs

  • vilasboas 04/06/2006em20:23

    A leitura, quando bem aproveitada, nos ajuda a vislumbrar mundos nunca observados, abrindo horizontes; nos respalda em colóquios, em palestras, em debates; aumenta significativamente nosso vocabulário e ajuda na ortografia das palavras; dá acesso ao conhecimento psicológico, ajudando no trato com as pessoas; ativa nossa criatividade e inteligência, sem esquecer outras qualidades, mais, observadas e, por fim, é um lazer muito prazeroso.
    Conheço a história de um senhor que, somente lendo, conseguiu se instruir, sem precisar de Colégios. A sua leitura constante alcançou um objetivo prático.

  • Leticia Braun 05/06/2006em14:09

    Vilasboas, muito bacana o que você escreveu, é o que acho tb. Não sei se com o Blake ocorre assim, mas qd. digo que não a leitura (aquela de verdade) tem utilidade prática, estou no limite da ironia.

  • Clara 05/06/2006em23:32

    Também gostei muito do que vilasboas escreveu.

    Quando lembro da fascinação, a paixão com que as crianças liam Harry Potter, tenho certeza de que a literatura, no caso, a infantil, tem sim efeito prático:construir mundos, canalizar paixões. Isso é pouco? Isso é inútil? Só para os de alma bem pequena.

  • santinha 06/06/2006em02:18

    Aproveitando o papo gostoso, parabenizo o Sérgio Rodrigues pelo assunto. Quem sabe os jovens brasileiros descubram, através de espaços como esse(poderiam ser muitos mais), a correta abordagem da literatura. É preciso, urgentemente, despertar na mocidade o gosto pelos livros, pelo mundo encantado da leitura; sinto que eles se afastam, cada vez mais, dessa prática, uma triste realidade.