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Tóibín concebe Maria com pecado

17/08/2013

Detalhe do afresco "A lamentação", de Giotto

Em termos literários, Maria, a mãe de Jesus, aparece no Novo Testamento como uma personagem pouco desenvolvida: sem pecado, amorosa, silenciosa, discreta, está lá para criar um filho destinado à glória e ao martírio sem uma única queixa. Não demora a escorregar para a periferia da ação, mas volta no fim para acolher o cadáver destroçado do homem que gerou e representar a mater dolorosa. É o que se poderia chamar de um tipo, um estereótipo da mãe perfeita, não exatamente um personagem humano – o que, se é insatisfatório de um ponto de vista secular, literário ou mesmo histórico, funcionou divinamente na narrativa mitológica que fundou o cristianismo, como comprova o duradouro poder simbólico e imagético de sua figura.

Na curta, concentrada novela “O testamento de Maria” (Companhia das Letras, tradução de Jorio Dauster, 88 páginas, R$ 29), o escritor irlandês Colm Tóibín encara um desafio que, pensando bem, acho curioso que só seja encarado agora, após tantas décadas de feminismo: reivindicar Maria para a literatura e transformá-la numa mulher de três dimensões, narradora de sua triste história. O resultado é um livro belo e estranho, ao mesmo tempo previsivelmente herético e surpreendentemente respeitoso.

A princípio concebida como um monólogo teatral que estreou em 2011 na Irlanda e chegou este ano à Broadway, a história começa vinte anos após a crucificação. Exilada na cidade de Éfeso, numa região então pertencente à Grécia (e hoje à Turquia), a fim de fugir da perseguição aos cristãos, Maria vive em completa solidão a não ser por visitas esporádicas de seus “guardiões” – evangelistas que ela não nomeia, talvez João e Lucas, e que a entrevistam para escrever seus próprios relatos da vida de Jesus. Aqueles relatos, justamente, em que ela vai aparecer como uma personagem pouco desenvolvida, sem pecado, silenciosa etc.

A Maria de Tóibín não é nem silenciosa, nem desprovida de pecado. Convertida ao paganismo em sua nova terra, adoradora da deusa Ártemis, irrita-se com seus entrevistadores, que também se irritam com ela. O que está em jogo desde a primeira linha é uma luta de versões, uma guerra ríspida pelo direito à voz que Maria vai perder miseravelmente, como sabemos e ela própria dá mostras de saber. Pelos séculos seguintes, a igreja que aqueles homens fundarão vai achatar a figura feminina complexa que ela representa na bipolaridade implacável de Maria e anti-Maria, santa e bruxa. Tipos, personagens pouco desenvolvidos, as duas.

A mãe de Jesus sabe que a morte está próxima e que nada pode fazer para evitar essa apropriação de sua história, mas não se curva. Recusa-se obstinadamente a retocar suas lembranças para conformá-las ao plano grandioso que sabe estar em marcha no mundo e na cabeça de seus interlocutores. Diz admirar “a determinação de ambos”, mas nunca se esquece de que são ex-integrantes da turba que seguia seu filho e que ela, mais mãe do que nunca, caracteriza como um bando de desajustados, “gente grosseira e irrequieta, com a barba por fazer, homens incapazes de olhar para uma mulher”, que “diziam coisas sem nexo noite adentro”. Em sua cabeça, são eles os responsáveis pela danação de seu rebento.

Os evangelistas não confiam nela. Querem um relato piedoso da crucificação e Maria lembra que, de puro medo, para salvar a própria pele, fugiu da colina antes que Jesus morresse: não acalentou seu corpo, tudo balela, e jamais se perdoará por isso. Em vez de um enredo trágico mas inspirador, ela lhes fornece a memória aleatória – e impressionante – de uma cena que a marcou na ensandecida feira livre instalada em torno da cruz:

…um homem chegou perto de mim trazendo uma gaiola onde estava aprisionado um pássaro grande enraivecido, de bico afiado e olhar indignado; as asas não podiam se abrir de todo, e esse confinamento parecia torná-lo frustrado e enfurecido. Ele deveria estar voando, caçando, mergulhando para pegar sua presa.

O homem também carregava um saco, que aos poucos verifiquei estar quase pela metade de coelhos vivos, pacotinhos de energia feroz e aterrorizada. E, durante aquelas horas na colina, durante as horas que passaram mais lentamente que quaisquer outras horas, ele ia tirando os coelhos do saco um a um e enfiando na gaiola entreaberta. O pássaro atacava primeiro uma parte macia da barriga, abrindo o coelho até que as tripas saltassem para fora, e depois, naturalmente, bicava seus olhos… O pássaro não dava a impressão de estar faminto, embora talvez sofresse de uma fome atávica, incapaz de ser satisfeita até mesmo pela carne pulsante de coelhos que ainda se contorciam. A gaiola ficou meio cheia de coelhos semimortos, não comidos inteiramente, que emitiam estranhos guinchos, estrebuchando em espasmos de agonia.

Esse emblema do sacrifício inútil vai ecoar no terrível veredito de Maria quando um dos guardiões lhe diz que a morte de seu filho “redimiu o mundo”: “Não valeu a pena”. A frase é a mais herética do livro, mas reflete a dor de uma mãe, não uma suposta verdade histórica ou teológica. Eis o maior achado de Tóibín. Num momento em que a desmistificação do Evangelho é um estratagema literário domesticado que gera best-sellers como “O código Da Vinci”, as palavras amarguradas de sua Maria não têm a ambição de contar mais do que uma verdade pessoal e precária.

Assim, cenas-chave como a transformação de água em vinho e a ressurreição de Lázaro são submetidas a um olhar que não as rejeita nem acata de todo. Um olhar perplexo que especula se alguém tinha verificado se todos aqueles tonéis continham mesmo água e que vê Lázaro, depois de quatro dias enterrado, se transformar num zumbi infeliz e patético, como se preferisse ter permanecido morto. Jesus era sem dúvida poderoso, mas seria o filho de Deus, como diziam aqueles homens? Maria não acredita nisso. O filho era dela, ora.

14 Comentários

  • Ataliba 17/08/2013em11:47

    Muito interessante! espero que o livro corresponda ao texto…

  • Alexandre 18/08/2013em06:12

    Para uma analfabeta humilhada, até que Maria se sai muito bem. É articulada e, à maneira dos filósofos da época, o fino vocabulário enriquece o pensamento em profundidade. Naturalmente dolorida, mas ciente do seu papel histórico como mulher, faz charme, fica antipática, chora, azeda os apóstolos e para não ficar no zero a zero, confessa ( humana demais, quase perversa )a própria covardia, com o agravante de que sempre achou o filho esquisito, indiscreto, falador, meio exótico, inútil ( cedo, o ingrato largou o pai terreno sozinho na oficina e foi dizendo por aí que era Filho de Deus, desafiando D’us e o mundo )um tanto impostor e muito influenciável. Alguém tem que dizer, basta! Está tudo errado, a começar pela perspectiva histórica. O cara que escreveu isso teve uma sacada ( Darei voz para Maria )beleza. Só que fracassou. Faltou estudo, pesquisa e talento. Sem mencionar o vespeiro maluco teológico em que se meteu. Maria nunca foi uma mulher descolada. Maria foi submissa. Engravidou com 12 ou 13 anos. Casou com um velho. Era isso ou pedrada. E uma mulher criada assim, não confessa seus crimes com desenvoltura. Pelo contrário. Jamais falaria com qualquer homem de igual para igual. Seria repreendida. E mais, a miséria de sua região, a opressão romana e as insurgências da época, não permitiriam uma fuga para Éfeso, onde naturalmente se falava outra língua e os costumes, outros. Maria morreu jovem. Provavelmente com 45 ou 47 anos. Talvez tenha morrido no dia mesmo em que Jesus foi à cruz. Lembrem-se, os romanos eram maus. Ou, sabiamente, foi cuidar da vida com seus outros tantos filhos ( José, pela lógica, já estaria morto ou caduco ). Se a dor da perda de um filho amado é atemporal, naquela época, minha gente, o sentimento do luto era outro. As pessoas mas tinham mais o que fazer. De qualquer forma, a inverossimilhança pesou. Não gostei de nada que li. Parece que o cara pegou a Simone de Beauvoir ( Jesus, logo quem! ) jogou um manto em cima dela e disse: – Se vira, agora você é Maria, Mãe do Filho de Deus! – Que reponsa! Até senti pena da alma existencialista da Beauvoir. Resumo: Não comprarei o livro. abs.

    • sergiorodrigues 18/08/2013em12:07

      Interessante o seu ponto de vista, Alexandre, ainda que, a meu ver, equivocado na origem. Vejo o livro de Tóibín como pura fantasia literária, sem maior compromisso com a consistência histórica do que o que tem com os dogmas cristãos. A ideia é justamente dar voz a uma mulher que, por ser submissa, não tinha voz. Afirmar que isso é absurdo porque quem não tinha voz não pode ter voz é uma tautologia que deixa de pegar o espírito da coisa. No mais, é uma tremenda injustiça sugerir que a prosa fina e contida de Tóibín, de evidente honestidade literária, passe perto de clichês feministas. Um abraço.

  • Lucas 18/08/2013em12:51

    É de dá pena essas pessoas que não tem criatividade e se reutilizam de coisas sacras e santas para poder se promover. Corrompendo as coisas.

    LITERATURA, NEM CABE AQUI NEM LICENÇA POÉTICA

    só blasfêmia, não é fanatismo, é realismo. Heresia pura.

    E olha que sou até ateu!! Acho que se fosse não fosse só teria isso para quem participou

    Perdoe eles não sabem o que fazem só acham que sabem!!!

  • Lucas 18/08/2013em13:02

    Sim e esse Alexandre que publicou esses comentários mais tolos e crotos ainda superficial respaldo históricos

    Vc não estava nem lá, Tem quase escassa referências, E mesmo assim se tivesse .Seria até indelicado e contestável suas colocações sobre o perfil e predicativos de Maria Jesus e outras pessoas.

    Coração dos outros é terra que não se anda, Ainda mais de Jesus pois não há nada mais fluivel, permeável e volúvel que a psique ,mente e coração humanos.

    Inválido quase todo seu comentário e acho até grosseiro Comprem o livro leiam criticamente e absorvam o que realmente vale a pena ser absorvido.

    E olha que sou ateu !!! Dá é pena de vcs !!!!

  • Pedro Paulo 18/08/2013em14:36

    Vou comprar.

  • Daniel Peccini 18/08/2013em15:19

    Em nenhum momento o NT retrata Maria sem pecado. Um artigo cheio de lugares comuns. Maria silenciosa? Ao contrario. Basta ler sobre as bodas de Canaa. abraço

  • Lu 18/08/2013em15:40

    Tipo de livro, papel higiênico, que carregamos na mala, para economizar volume.
    Lixo!
    Mente deturpada.

  • luizfernando 18/08/2013em16:41

    Uma das maiores virtudes de um escritor é a imaginação. Portanto um escritor de estofo não precisa usar uma imagem pronta, e que tem dono, a da SANCTA MATER DEI, MARIA, para fazer ficção. Sempre acabará em uma coisa pobre e desrespeitosa. muito feio, ainda mais considerando que a Irlanda é Católica.

  • jotabe 18/08/2013em17:43

    O Testamento de Maria não é o único livro de ficção sobre textos tidos como sagrados. O Evangelho segundo Saramago, O Código da Vinci e mesmo a série Cavalo de Tróia são publicações que não têm compromisso nenhum com o que a religião e a fé guardam como sagrado. O objetivo dessas publicações e dos respectivos filmes é exclusivamente o lucro. Não há fidelidade com os evangelhos e a aceitação e o sucesso ficam por conta do público, agnósticos ou ateus.

  • Felipe Holloway 18/08/2013em18:44

    Cara… São sérios, aqueles dois comentários ali?

    O_O

  • denny doherty 19/08/2013em08:34

    Não se trata de um livro herético. É blasfêmico.

  • Cronos 14/09/2013em21:09

    A incansável cruzada dos filhos das trevas para desmontar a obra de Deus acaba por justificar a existência do tribunal do santo ofício.
    Esse livro é mais uma prova de que satanás jamais se dará por vencido.

  • movb 16/09/2013em16:31

    Triste é notar que essa porcaria de literatura apelativa ainda arregimenta adeptos o que equivale dizer, sim, que a porta do inferno esta aberta.