Em 658, o pequeno reino de Lu Xian Xu, o Sábio, ao norte do Rio da Fertilidade, foi invadido pelos mongóis. Os mongóis eram terríveis. Depois de reduzirem a papa os campos de arroz do povo de Xian Xu, queimaram suas vilas, uma a uma, e chegaram por fim à cidade real. A bela Tsuido Hen consistia apenas no palácio do monarca cercado de ruas labirínticas, e os mongóis entraram pisoteando com seus cavalos peludos o labirinto, que era de papel e bambu, e foram direto ao palácio. Puseram-se então a destruí-lo, como haviam feito com colheita, crianças, adultos, cidades, esperança.
Enquanto seu palácio ardia, Xian Xu, o Sábio, entrou nos aposentos de suas onze esposas e, anunciando a derrota, ordenou que o seguissem. Pegariam a passagem secreta – a última esperança. Arrastando aquela cauda de mulheres assustadas, Xian Xu venceu o corredor com passos apressados e abriu de par em par as portas do salão abobadado da Grande Biblioteca, um aposento de vitrais altos e piso de mármore onde se assentava o xadrez das prateleiras repletas de arcanos teológicos e criacionistas, poéticos e terapêuticos, morais, filosóficos, míticos e cômicos.
O Sábio avistou então Suri Kuoda, o jovem bibliotecário, espanando poeira de uns volumes grossos. Sorriu. A esperança tinha mesmo muitas vidas.
– Você vai na frente – disse.
Salvando Suri Kuoda, Xian Xu dava-se conta de repente, salvava tudo. A memória prodigiosa do bibliotecário levaria consigo a Grande Biblioteca, ou pelo menos a melhor parte dela: os poemas eróticos de Tsi Eh, as anônimas Revelações Azuis, toda a hermenêutica de Lishmura. Os mongóis trovejavam perto dali. Uma pedra atingiu um vitral, abriu-lhe um dente. Tendo Suri Kuoda a seu lado e as onze esposas em seu encalço – era um estranho séquito o que fugia pela biblioteca, rumo ao alçapão atrás da última prateleira, de onde dariam nos subterrâneos inexpugnáveis – Lu Xian Xu ia ferido, triste como um viúvo, mas sereno e orgulhoso. A inestimável cultura de seu povo teria um futuro.
Estavam a poucos passos do alçapão quando ouviu-se um grito bestial, e um homem pendurado numa corda atravessou um dos vitrais, espatifando-o. Só então o futuro ficou claro para Xian Xu, e não era o que ele tinha imaginado. O mongol, careca como um ovo, depois de cair de pé no parapeito, tirou arco e flecha e zum, tuc, de repente tinha um pedaço de pau espetado no coração de Suri Kuoda.
Lu Xian Xu viu a ponta da flecha saindo das costas do bibliotecário e compreendeu. Mandando suas esposas imitá-lo, sentou-se no meio do corredor de livros, no mármore frio, de pernas cruzadas, e esperou a morte.
11 Comentários
não entendi o significado desse texto, sérgio?
existe entrelinhas ou não existe entrelinhas e apenas o fato?
Ecoando Borges…
Concordo, Borges na cabeça…
Beleza, Sérgio!
Em tempo: acabo de saber pelo twitter da FLIP que Carlos Fuentes cancelou sua vinda à festa. Nada relacionado à gripe suína, segundo os organizadores. O escritor alegou razões pessoais.
Este é novo. Muito legal. Gostei pacas!
Concordo com os amigos mais acima: ecoando Borges…
Ah! A biblioteca de Babel… tão fantástica.
Feliz a Civilização cuja memória dependia do prodigioso célebro de um único bibliotecário!
Nossa triste civilização jamais terá um fim glorioso como o glorioso fim do pequeno reino de Lu Xian Xu, hoje completamente esquecido, não fosse essa pequena crônica dos seus momentos derradeiros, um inestimável tesouro arqueológico que o Sérgio trouxe a lume.
A memória da nossa triste civilização está espalhada por milhares de computadores mundo afora. Ainda que tivéssemos a sorte de seremos invadidos pelos mongóis (hipótese lamentavelmente remota), esses bravos guerreiros seriam insuficientes para dar conta da monumental tarefa que seria destruir tantos servidores, onde estão os registros dos grandes monumentos da nossa civilização.
Por isso (ó tristeza), perdurará por todo eternidade a lembrança do Axé Music, das banalidades expostas no Twitter, da estátua do Borba Gato, dos vexaminosos livros do André Sant’Anna, das letras do Lenine, do rock progressivo, da poesia do Arnaldo Antunes, da voz do Chico Buarque, da horrenda arquitetura do prédio do Masp, da reforma ortográfica… (a lista é infinita).
Não me resta senão convocar minhas 52 esposas para o ritual coletivo da morte.
Rafael, resta outra coisa também: escrever “cérebro”, em vez de “célebro”.
Sou fã dos sobrescritos do Sérgio. E mais fã ainda do seu gosto literário e da iniciativa deste blog. Mas esse texto, sinceramente, achei fraco.
É forçar a barra demais entrar no coro do “Borges”.
Abs.
Por que célebro está elado?
Não entendi.
Borges? Vocês estão brincando….
Não sei nem porque existe o coro do Borges. É Sergio Rodrigues e pronto. Já não basta? Acho que é Sergio ecoando Sergio e achei um saboroso pedaço de literatura. O único o problema é ser pedaço. Eu queria mais.
grande abraço, Sérgio (não Borges).