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‘Diário da queda’: a ascensão de um autor

25/03/2011

A notícia é boa para aqueles poucos milhares de leitores fiéis de ficção nacional, mas mais importante ainda para os muitos milhares que nem passam perto desse tipo de produto: “Diário da queda”, o quinto romance do escritor gaúcho Michel Laub (Companhia das Letras, 152 páginas, R$ 38,50), é um grande livro. Desafiando o clima volátil deste início de século, com suas novidades que ficam velhas em cinco minutos, a permanência desse romance deve ser garantida por pelo menos dois achados que seriam dignos de nota em qualquer época na literatura brasileira: o personagem tragicômico do sobrevivente de Auschwitz que, feito um Pangloss autista, dedica os últimos anos de vida a escrever o interminável diário de uma realidade edulcorada e perfeita; e a cena de crueldade adolescente protagonizada pelo narrador judeu na festa de aniversário de João, o colega gói e pobre – a queda propriamente dita do título, fulcro da história.

Se os dois elementos, personagem e cena, têm uma pungência e uma reverberação que atestam um salto qualitativo na obra de Laub, é interessante observar como isso se dá no quadro de uma serena continuidade e fidelidade ao próprio estilo. Como quase todos os romances do autor (a exceção é o irregular “O gato diz adeus”, de 2009, com sua narração triangular de um triângulo amoroso), “Diário da queda” tem um narrador adulto em primeira pessoa às voltas com suas memórias, a maioria de infância e quase sempre girando em torno de relações familiares e dores do crescimento, das quais ele precisa extrair sentido antes de avançar com sua vida. Pode-se dizer que no fundo o gênero por excelência de Laub é o Bildungsroman, o romance de formação, mas com feição própria, não-linear. O acerto de contas com o passado se dá numa estrutura circular em que as mesmas poucas cenas são revisitadas à exaustão, ganhando novos detalhes e implicações a cada vez. A investigação é mais moral do que intelectual. O tom é puxado para o pessimista, mas caseiro e enganadoramente menor.

Certa vez, o também gaúcho Mario Quintana cunhou uma definição memorável de estilo: “Deficiência que faz com que um autor só consiga escrever como pode”. Laub é um escritor de rara deficiência, no sentido que Quintana dá à palavra. Desmentindo quem acredita que um estilo só será pessoal se for abstruso e idiossincrático, sua prosa é transparente, feita quase inteiramente de palavras comuns. No entanto, a típica frase laubiana é inconfundível: prolonga-se, esticando o suspense e acumulando momentum com seu comboio de pequenos enunciados, à beira do soluço e da ruptura sintática, antes de explodir num gran finale que – aí está seu achado – nunca conclui nada de uma vez por todas, mas, como um gancho de telenovela, arrasta o leitor para a próxima etapa. É esse artifício que permite a seus narradores voltar obsessivamente às mesmas cenas sem que se instale a monotonia: a cada visita, chegam a uma nova conclusão provisória, destinada a ser retocada mais uma vez adiante. Com perdão da imagem literalmente rocambolesca, a estrutura é cheia de camadas e dobrada sobre si mesma.

Revisito o primeiro romance do autor, “Música anterior”, de 2001, quando ele tinha 28 anos. Começa assim:

Minha mulher não conseguiu ter filhos.

Antes de ouvir a palavra final do médico, antes dos almoços em silêncio e das crises de madrugada, antes de se convencer de que acordar todo dia significaria para sempre um pedaço de pão e o noticiário do rádio, o trânsito e as previsões do economista são as atrações do noticiário do rádio, antes ela ficou sabendo, ainda nem morávamos juntos, ainda nem imagináramos que ficaríamos quase uma década juntos, eu tenho quarenta e três, ela tem trinta e nove, ela ficou sabendo sobre o meu irmão.

Aí está o molde da prosa que agora, dez anos e quatro títulos depois, conduz a bom termo o projeto mais ambicioso de “Diário da queda”:

Não sei se fiz aquilo apenas porque me espelhava nos meus colegas, João sendo jogado para cima uma vez, duas vezes, eu segurando até que na décima terceira vez e com ele ainda subindo eu recolhi os braços e dei um passo para trás e vi João parado no ar e iniciando a queda, ou se foi o contrário: se no fundo, por essa ideia dos dias anteriores, algo que eu tivesse dito ou uma atitude que tivesse tomado, uma vez que fosse, diante de uma pessoa que fosse, independentemente das circunstâncias e das desculpas, se no fundo eles também estavam se espelhando em mim.

Se o risco de uma certa monotonia existe, ele é apenas formal: a certa altura, o leitor de ouvido apurado já espera a frase longa e o adiamento, vírgula a vírgula, do punchline que trará embutida uma nova interrogação. Como ocorre com todo estilo marcante, o perigo do cacoete e do maneirismo está sempre no horizonte, e em certos momentos da leitura me peguei torcendo para que Laub não usasse o truque, para que o economizasse. No entanto, o que ele consegue dizer em seu novo livro com essa mesma voz tem força suficiente para elevar o sarrafo da ficção brasileira contemporânea. Prova de que Vladimir Nabokov era, como sempre, mais provocador do que ponderado ao dizer que “estilo e estrutura formam a essência de um livro; ideias grandiosas são besteira”.

Sem grandiloquência e acomodadas confortavelmente no arco da narrativa, são justamente as ideias grandiosas, no fim das contas, que tornam notável o novo romance de Laub. Cobrindo três gerações, desde a história do avô do narrador em Auschwitz, e apontando com comedida esperança para uma quarta, “Diário da queda” é uma pequena joia ficcional que, ao tratar sem temor ou reverência a pesada herança da literatura pós-Holocausto, adiciona uma dimensão histórica universal à costumeira obsessão do autor com o passado e esmiúça de forma emocionante a lógica da vitimização e sua capacidade de perpetuar iniquidades, num círculo vicioso que só uma decisão pessoal e heroica, equilibrada entre o esquecimento e a lembrança, entre a autoafirmação e o desprendimento, consegue romper. Difícil imaginar começo de ano melhor para a literatura brasileira.

9 Comentários

  • Carlos Goettenauer 25/03/2011em13:27

    Para ser melhor, deveria ser publicado em e-book. Enquanto não sair, não vou ler.
    Abraços!

  • Sérgio Karam 25/03/2011em16:37

    E desde quando um livro melhora ao ser publicado em formato eletrônico?

  • Alderi 27/03/2011em14:57

    nossa que texto legal estou salivando pra ler esse livro e os outros do autor ja faz tempo que não leio ficção nacional e só pela demostração do estilo que você colocou mo seu texto fiquei louco pra ler o livro …Ah e quero o livro mesmo não esse E-book.

  • Sérgio Karam 28/03/2011em16:16

    Putz, fui reler os comentários agora e achei meio esquisito: só pra deixar claro, ao perguntar “desde quando um livro melhora ao ser publicado em formato eletrônico?”, eu não estava me referindo especificamente ao livro novo do Michel, estava fazendo um comentário genérico. Eu ainda não li mas quero muito ler este livro. Nunca é demais fazer esclarecimentos. Abraços pra quem lê isto aqui.

  • Hildebrando 29/03/2011em21:56

    Logo,logo estará na minha ala.

  • Vera Schet 07/12/2011em18:04

    Leitura realmente excepcional!Premio merecido. Grande Michel Laub.