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Enfim, uma ótima conversa sobre literatura

11/08/2006

O debate de alto nível sobre o fazer literário desembarcou em Parati com um dia de atraso, mas compensou a demora com a qualidade da conversa. Aconteceu na primeira mesa de hoje, que reuniu o francês Olivier Rolin, o peruano Alonso Cueto e o gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil. A erudição articulada do português Mario de Carvalho (“Um deus passeando pela brisa da tarde”), ontem à noite, havia brindado a Flip com frases antológicas como esta: “Os livros não acabam. Nós os abandonamos”. Mas, no caso da mesa de Carvalho, dividida com o mexicano David Toscana, não chegou a haver propriamente um bate-bola. Os dois são distintos demais, faltou uma base comum de referências.

Hoje foi diferente. O tema eram as relações entre “Prosa, política e história”. Podia ter dado em nada, ou em bem pouco, como costuma acontecer nos casos em que o tema é tão genérico que deriva para clichês vazios como “por que escrever?”, “de onde vêm suas idéias?” e coisas do gênero. Podia, mas não foi o que ocorreu.

Graças principalmente a Rolin, autor de “Tigre de papel” (Cosac Naify), apresentado no Primeira Mão mão aqui do Todoprosa, e a Cueto, cujo “A hora azul” acaba de ser lançado no Brasil (Objetiva), o que o público acompanhou foi um papo inteligente, bem informado, claro e ao mesmo tempo profundo sobre as relações entre história inventada e história factual, e o papel dos escritores como testemunhas de seu tempo, criadores de uma memória que, justamente por ser ficcional, desvenda para a posteridade um certo espírito de época que vai além do plano material de que os historiadores dão conta. Essa versão dos escritores é mais poderosa do que pode parecer. Como resumiu Alonso Cueto: “Ricardo III não foi tão mau quanto Shakespeare o descreveu. Mas não importa, o rei que nos ficou foi o do dramaturgo, e não o dos historiadores”.

Dando sustentação às reflexões de Rolin e Cueto, dois livros que tratam de forma romanesca períodos politicamente explosivos da história recente: o radicalismo do movimento estudantil parisiense em torno de 1968, na obra de Rolin, e o Peru no auge do poder do Sendero Luminoso, no romance de Cueto.

Abaixo, um resumo da conversa em frases dos dois.

OLIVIER ROLIN: O romance não tem uma lição política a dar, mas ele nos permite entender o que não vivemos, sentir o que não tivemos a oportunidade de sentir. E depois fazer dessa experiência o que quisermos… É preciso haver uma memória do mundo, para que a humanidade não recaia na infância a cada novo nascimento. A literatura é um dos meios de cumprir esse papel. Acho que o escritor tem a responsabilidade, o dever moral de falar sobre o seu tempo, para que a sua experiência vivida não morra com ele… A História, na melhor das hipóteses, vai nos dizer o que aconteceu, talvez por que aconteceu. Mas nunca como, do ponto de vista humano, aquilo aconteceu. Nem todos os historiadores do mundo jamais poderão entender por que uma pessoa pertenceu à extrema esquerda em 68, ou por que alguém foi da Resistência – ou, pelo contrário, colaboracionista – na Segunda Guerra. A literatura pode entender, a literatura entende.

ALONSO CUETO: Romances dizem meias verdades exageradas em dobro. Sociedades e indivíduos têm caixas de Pandora em que se escondem dor, injustiça, violência, para que eles possam continuar vivendo. São reservas de injustiça e miséria que o jornalismo está começando a esquecer que tem o papel de revelar. Tudo hoje parece voltado exclusivamente para que as pessoas sejam funcionais, produtivas, vivam em harmonia… A arte narrativa se tornou quase o único lugar em que essas zonas de sombra podem hoje ser devassadas… A Inglaterra do século XIX que conhecemos é a de Dickens, não a dos historiadores. Isso se deve ao poder da palavra, ao poder da linguagem… Os escritores têm sempre a última palavra.

Uma observação final: o debate teria ido mais longe se Assis Brasil, que gosta de ambientar seus romances no passado remoto, tivesse formulado melhor sua defesa do romance histórico sobre épocas que o autor não viveu. É evidente que tal defesa pode ser feita, e com excelente argumentos, contra a exclusividade do material vivido que pregam Rolin e Cueto. Mário de Carvalho fez isso ontem, falando de “Um deus…” (também apresentado aqui no Primeira Mão), passado na Lusitânia do século II. Infelizmente, o romancista brasileiro não foi além de um protesto emburrado: “O que importa é se é literatura ou se não é”.

4 Comentários

  • Writing Ghosts 11/08/2006em18:56

    a capacidade de “mudar” a História oficial, com a inserção de valores e dramas pessoais no enredo dos grandes acontecimentos, tem sido posta de lado ou mesmo descartada, por aqueles que costumam registrar “com independência” os fatos ocorridos.

    há que se revalorizar esse poder, outrora tão em evidência. não apenas para “humanizar” nosso olhar sobre o passado, mas até mesmo para o cercear (a este poder), em certa medida: quando ainda é usado, cada vez mais, embora sem o conhecimento de seu público, que sofre passivamente dessa influência, por meio de produtos ditos culturais mas que carregam tremendas cargas de doutrinamento político.

  • Writing Ghosts 11/08/2006em19:00

    porque a ferramente é eficaz, e disso não se trata: o uso em favor de distorções totalitaristas, evidentemente encobertas, é que deve ser posto à crítica lúcida e consciente do prato que come.

  • Fred Gomes 12/08/2006em00:46

    É que o Assis Brasil é burro… Burro de doer.

  • Mazi 12/08/2006em18:22

    O Mário de Carvalho foi a melhor surpresa da Flip até agora, simpático e disposto a falar da quase renegada literatura.