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Entre Narciso e o suicídio, a literatura balança

30/03/2012

O Narciso de Caravaggio (1598-1599)

A literatura é hoje um campo que se questiona de modo histérico, com resultados entre o suicida e o narcísico.

O discurso literário parece sentir, de alguma forma, que perdeu o direito à existência. O que quer que o justificasse perante si mesmo não o justifica mais.

Entre as atitudes que o discurso literário toma diante disso, destaco duas que me parecem especialmente significativas: deitar no caixão e declarar-se morto, como um personagem de Nelson Rodrigues, procedendo então à auto-autópsia; ou, feito uma drag queen de quermesse, se montar inteiro com maquiagem, bijuterias, próteses, piscando muito para o espelho e dizendo: “Eu existo, ói eu ali”.

(Seria interessante – mas foge aos propósitos deste artigo, para não falar da minha competência – investigar o que haverá de analogia estrutural e especularidade simbólica entre duas crises culturais contemporâneas, a “do macho” e a da literatura de ficção.)

A verdade é que, além daqueles que a fazem e da pequena seita que a consome sistematicamente, ninguém no mundo de 2012 está prestando lá uma terrível atenção à ficcão literária, como diriam em inglês – literatura artisticamente ambiciosa, digo eu. A ficção comercial vai bem, mas o público da ficção dita séria míngua ao mesmo tempo que se concentra na metade feminina da população.

Quando morrer a geração de Coetzee, McEwan, Marías, e considerando-se que Bolaño e Wallace apressaram essa parte do processo, é evidente que outros nomes ocuparão seus lugares, mas tudo indica que o campo terá encolhido mais um pouco.

*

A teoria literária que cresceu e envelheceu com o século 20 desempenhou em sua juventude o papel cultural de aliada dessa literatura – uma aliada implicante e reticente, mas ainda não abertamente hostil. A mesma teoria literária chegou ao terceiro milênio convencida do fim da ex-amiga. O fim se daria, ou já teria se dado, pelo esgotamento de seu ciclo histórico. Simples assim.

Tal diagnóstico costuma vir amparado em raciocínios de diversos teores, da filosofia da linguagem (preferência dos mais propriamente teóricos) à sociologia e à política (área do pessoal ligado em estudos culturais), mas tem sempre no subsolo uma espécie de pré-ideia, uma sensação visceral e pouco trabalhada: a de que o presente simplesmente já não cabe nesse discurso. Passou. A pós-modernidade eletrônica planetária está forjando novos vocabulários, novas gramáticas, novas dinâmicas em que a imaginação dos seres humanos futuros vai se espalhar com mais conforto do que na extensão cinza de um Saara de palavras chamado livro. Quando se quer dar um lustro intelectual um pouco maior a esse instinto apocalíptico, afirma-se que a coisa é bem pior até, pois a própria ideia de representação está sendo minada, o que em última análise torna fútil falar sobre categorias como arte ou mesmo sociedade. De uma forma ou de outra, deve-se concordar que a literatura já não serve para nada.

*

Paulinho da Viola canta: tá legal, e tal, mas faça como o velho marinheiro. Aceito o conselho e fico pensando: para que servia mesmo a literatura, antes dessa crise? Não foi a crise desde sempre seu habitat? E não seria a inutilidade fundamental – ou antes a inutilidade de tentar fazer suas utilidades serem utilizadas de modo realmente útil, isto é, a sublime gratuidade do gesto estético – uma de suas características principais, talvez a mais profunda delas?

Porque se a inutilidade for um traço fundamental da melhor literatura, resulta daí que é uma crença ingênua na linearidade da história supor que a obsolescência e o descompasso radical com o espírito do tempo marcarão seu fim – e não um período de excelência e maturidade, cheio de riquezas inéditas.

13 Comentários

  • Arthur 30/03/2012em11:01

    Gosto bastante desse trecho de “A solução final”, de Michal Chabon. Permita-me citar: “No momento do impacto toda a estrutura apodrecida viera abaixo, e foi como se, como senhor Panicker havia lido nas notícias sobre o bombardeio, todas as centenas de ratos vivendo nas paredes do edifício aparecessem, pegos de surpresa e suspensos em suas atividades escusas de costume, até que seus corpos começassem a brotar na terra numa asquerosa cascata cinzenta de ratos. E contudo, como ele também havia lido, de vez em quando essas explosões descobriam cintilações de raro e surpreendente tesouro. Coisas estranhas, delicadas, que estavam ali o tempo todo, desconhecidas, inadvertidas.”

    O final do teu texto me pareceu tão esperançoso quanto. Gostei bastante. Abraço!

    • sergiorodrigues 30/03/2012em11:12

      Valeu, Arthur. Gosto de Chabon e gostei da citação. Um abraço.

  • Arthur 30/03/2012em11:02

    Michael* Chabon. 🙂

  • Diego 30/03/2012em14:58

    Vejam o post da Lorena Miranda, no AdHominem, que aborda este assunto de uma maneira magistral: http://www.adhominem.com.br/2012/03/donzela-enjeitada.html

  • Afonso 30/03/2012em15:55

    Aí vc lê num portal “livros que você deve ler para ficar rico”
    http://economia.ig.com.br/financas/meubolso/livros-que-voce-deve-ler-para-ficar-rico/n1597563724993.html – mas não se trata disso (que faz mais ricos quem os produzem…), e sim de outra riqueza… esta sim, escondida em recôndito “inadvertido” até então. Esperemos.

  • Gledson 02/04/2012em10:58

    Era pra ser polêmico? Não foi, exatamente porque versa sobre literatura.
    Era pra ser crítico? Não foi. Foi, antes, degradante e tendencioso.

    Não sabe o que é literatura, pra que serve, se ja foi útil? Saia da internet, não va ao clube, esqueça o happy hour com aquele bate-papo fútil e competitivo… SE ABSTRAIA DO MUNDO E LEIA FLAUBERT!

    E se o mundo se esqueceu da importância e da utilidade da Literatura, não a culpe: Culpe o mundo.

    A Literatura fez a sua parte durante toda a história da humanidade: Edificou artística e filosoficamente os vários caminhos que tomou o pensamento humano nesse planeta.

    Se em menos de duas décadas gerações se degradaram e uma outra já nasceu intelectualmente imbecil, não é culpa de Voltaire, Ezra Pound, do Trovadorismo, da Renascença… Esses formam o “paideuma” , estão no subconsciente mais arraigado até do homem ocidental mais decadente que se deixou corromper pelas coisas que o texto acima julga como “úteis e inteligíveis” .

    • sergiorodrigues 02/04/2012em11:48

      Gledson, sua mensagem me deixou mais taciturno que Aquiles no começo da guerra de Troia, mais casmurro que Bentinho, pensando onde foi que eu errei para ser treslido de forma tão avassaladora. O pior é que desta vez nem dá para botar a culpa na ironia, pois ironia não há nesse artigo. Só posso lhe recomendar uma nova leitura. Um abraço.

  • Luis 03/04/2012em01:14

    Concordo plenamente. Mas algo me diz que um evento avassalador está para acontecer na literatura, e ele ocorrerá aqui no Brasil, mais especificamente em São Paulo.

  • Marcelo Candido 03/04/2012em14:31

    Sérgio, também temo que o espaço esteja se reduzindo e as pessoas não se dêem conta do que estão perdendo em sentido, ou do conforto com a falta de sentido. A literatura séria serve para expandir um tanto o universo do leitor, talvez para direções em que ele não podia imaginar ou planejar, acho que sempre haverá espaço porque chega um momento da vida em que se deve decidir: ou continua no vazio ou em sua direção, ou se combate o incômodo que ele causa, por mais que seja um combate infrutífero. Para mim, produzir ou consumir literatura é não se acomodar diante da possível mesmice coletiva, se ela for inevitável, que pelo menos seja individual…

  • santanowiski-SP 10/04/2012em05:00

    O último parágrafo dessa matéria é de singeleza cristalina. Ele é foda!

  • Rogério 17/04/2012em17:59

    gostei do teu site/blog, apesar de não concordar com algumas coisas; vou guardar no meu Favoritos pra ler outra hora o resto do site pois é muita coisa para ler. Voltarei sempre.

  • SERCEL PIRANI 18/01/2014em20:47

    Quando jovem eu era um lindo narcisista, agora olho no espelho e vejo um velho feio e narcisista intelectual, mudei de vaidade, sou escritor.