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Entrevista com Silvério Sombra, o ‘Raduan sem Lavoura’ (II)

10/09/2012

'Amolação interrompida' (1894), de Almeida Júnior

Esta é a segunda e última parte da entrevista que fiz com o ex-escritor Silvério Sombra, que há sete anos abandonou as lides literárias para criar galinhas num pequeno sítio chamado Itaguaí. A primeira parte pode ser lida aqui.

A mulher feia que a juventude embeleza é uma metáfora da sua própria obra? Ou da literatura em geral?

– (risos) É a metáfora de uma metáfora. Uma metáfora para acabar com todas as metáforas. Tudo é metáfora nesse negócio, vê só que porcaria. Demorei a entender o que estava errado. Que tinha alguma coisa errada, tinha. Aquela não era a minha turma. Entrei nesse negócio perseguindo uma miragem, como imagino que todo mundo entre. Um dia lá, perdido na infância, um Robinson Crusoé qualquer, uma Emília, um Zezé do Pé de Laranja Lima puxa um neurônio pra cá, outro pra lá, uma sinapse nova faz zapapof e aí já viu, está feito o estrago. O coitado vai passar o resto dos seus dias perseguindo uma coisa que não sabe direito o que é, querendo fazer parte daquilo. Nesse caminho ele muda de gosto, renega o passado, refina, escolhe a dedo uma meia dúzia de desafetos, quase sempre fica bastante besta, mas a miragem vai ser até o fim aquela dos tempos de moleque. Até aí, beleza. Eu podia ter ficado nessa, bem feliz ou não tão infeliz, até morrer, se não fossem as companhias.

Você se refere às companhias editoriais?

– Não, me refiro às companhias. Ao resto do pessoal. A literatura é uma festa estranha com gente esquisita, como diz o Raul Seixas.

Renato Russo.

– Ou isso. Festa estranhíssima com gente esquisitaça. Vermes e vermífugos, ególatras, mercenários, doentes, pavões sem mistério nenhum, urubus, hienas, águias de olho furado, comerciantes frios, menininhos lânguidos e ciumentos, meninas de olhar duro, uma gente sem alma e com idade emocional de nove anos. Um dia eu olhei para aquela fauna, depois pro espelho. Me lembrei com clareza de doer da minha miragem inaugural, que era uma beleza de miragem, e de repente entendi. Foi um choque, viu? Fiquei de cama duas semanas, quase morri. Mas foi o que me salvou.

O que você entendeu?

Silvério Sombra não respondeu logo. Teve um acesso de riso, depois um acesso de tosse. Acendeu com um pedaço de lenha o cigarro de palha que tinha apagado entre seus dedos, murmurando para si mesmo palavras incompreensíveis, e fumou em silêncio por alguns minutos. Um cheiro delicioso de alho frito subia do caldeirão de Mirtes. Reformulei a pergunta:

Que revelação foi aquela que o chocou?

– Temos mesmo que falar disso, né? Que seja. Lembro que eu estava lendo o último artigo de um crítico da moda, esqueci o nome dele, nem sei se escreve ainda. Era um sujeito que via a literatura como um vírus para o leitor hipocondríaco: suas imagens ficavam todas no campo da derrubação, da febre, da maleita, do balbucio tiritante. O texto do cara tinha uns arrepios de moçoila virgem encoxada por um estranho corpulento no ônibus lotado. Parei de ler aquilo com engulhos e abri o livro de uma professora famosa, que dizia umas coisas mais viris, mais assertivas, só que eu não entendi uma palavra. Ela falava em variáveis estocásticas e dissonâncias anticontemporâneas, enrolol puro. Quer dizer: num caso eu entendia tudo, mas passava mal; no outro eu queria gostar, mas aquilo não fazia sentido nenhum. Esse momento foi decisivo. O processo da minha iluminação com certeza vinha de longe, mas foi ali que eu entendi. Descobri que a minha única salvação era tomar a maior distância possível daqueles dois. Se eles moravam no Brasil, então eu ia morar na China. Aí vim.

Mas nesse caso seu sítio não deveria ter um nome chinês? Por que Itaguaí?

– (risinho envergonhado) Ah, isso foi a minha concessão final à literatura. Meu aceno de adeus. Itaguaí é a cidade onde fica o hospício do grande Simão Bacamarte, meu último herói. Feito ele, eu também comecei achando que loucos eram os outros, que eles é que não entendiam a literatura. Até descobrir que estavam todos certos, os vermes e as hienas, a águia cega, os pavões sem mistério, os urubus, não era possível que estivessem todos errados. Mas se a literatura era aquilo que eles diziam que era, então o louco, lógico, era eu. É por isso que “Raduan sem Lavoura” é um bom apelido, mas “Alienista sem Machado” é melhor. Você escolhe. Não estou nem aí. Essa galinha ao molho pardo da Mirtes está cheirando bem, não está? Eu convidaria você para almoçar, mas o caminho de volta é longo, melhor picar logo a sua mula.

7 Comentários

  • Marcelo ac 10/09/2012em15:29

    Esse cara também tá me parecendo o Jeca Tatu, não é não????
    Valeu demais, principalmente pela primeira parte, que não deveria ter
    sido desmenbrada, mas por força dessa editoração…
    Um abraço, Marcelo

  • Thiago Maia 10/09/2012em18:41
  • Afonso 11/09/2012em14:16

    “Maravilhosa fauna humana que vive como os cães” (FP). Bem, cedo ou tarde acabamos por ter essa revelação. Ou não passamos de Jecas se pavoneando nos salões literários? Que remédio!? Ótimo texto…
    Abraço.

    • sergiorodrigues 11/09/2012em17:13

      Valeu, Afonso e Marcelo. O Silvério não liga a mínima, mas eu fico contente que tenham gostado da entrevista.

      Obrigado pelo link, Thiago. Philip Roth tem um ótimo ponto, existe mesmo uma estranha arrogância wikipediana ganhando corpo. Mas bem que ele podia ter enxugado a carta, não?

      Abraços a todos.

  • Nagib Rocha 12/09/2012em18:40

    Ridendo castigat mores… Adorei o texto Sérgio! Sou da terrinha e leciono – tenho me perguntado se isso é possível – Literatura no CSM. É um grande prazer te acompanhar semanalmente.
    Abraço.

    • sergiorodrigues 14/09/2012em13:20

      Olá Nagib, como vai? Obrigado. Também é um prazer ter você aí na escuta. Boa sorte na batalha. Um abraço.