Tentar estabelecer relações entre momento histórico-social e literatura é pedir para derrapar em terreno traiçoeiro. Claro que as relações existem, mas jamais serão simples e diretas. É possível que só uma distância mínima de, sei lá, cem anos permita enxergar sem óculos ideológicos mais grosseiros os mecanismos desse relógio. Feita a ressalva, achei inspirador esbarrar hoje, no blog do “Guardian”, com um pequeno artigo (em inglês) de Gary Younge em que, a propósito de celebrar mais uma vez (alguém ainda agüenta isso?) o que teve de revolucionário o ano de 1968, ele se espanta que os reflexos daquela agitação não tenham aparecido de forma fulgurante nos livros dos anos subseqüentes:
…em termos de literatura os anos 70 produziram relativamente pouco que tivesse um grande e duradouro interesse. Será que os 60 deram maior voz a uma geração de escritores – mulheres, de países em desenvolvimento, negros, gays e assim por diante – que ainda precisariam de uma década para amadurecer?
Sim, o cheiro de “estudos culturais” dessas linhas é forte. E também não estou convencido de que, no quadro da literatura internacional, os anos 70 tenham sido tão fracos assim. Se achei o artiguete inspirador foi porque ele me levou a resgatar uma tese jornalística que lancei no blog em setembro de 2006, sustentando para a literatura brasileira uma idéia diametralmente oposta: a de que 1975 foi um ano memorável, aquele em que colhemos nossa última grande safra.
Quem quiser conhecer o argumento pode ler aqui o post, chamado “O ano em que a literatura transbordou”, e a discussão que ele provocou na época entre os leitores. Só adianto que em 1975 saíram “Feliz ano novo”, “Lavoura arcaica”, “Zero”, “O ovo apunhalado”, “A faca no coração”, “A morte de D.J. em Paris” – além de, como lembrou um leitor, ampliando uma lista que eu pretendera restringir à ficção, o maravilhoso “Poema sujo”. E foram terminados outros livros marcantes, que chegariam ao público no ano seguinte: “Reflexos do baile”, “Essa terra” e “A festa” – este, se não tiver a ver com 68, tem pelo menos o maior 69 da literatura brasileira.
Nada disso prova que Gary Younge esteja errado. Ou que eu esteja errado. Não duvido que estejamos errados os dois. Mas é interessante pensar que aquelas relações complicadas a que me referi ali em cima permitiriam tranqüilamente, pelo menos em tese, que a literatura vivesse um ano de ouro no Brasil enquanto atravessava um período de vacas magras no resto do mundo. Por que não? Vale lembrar que hoje, para muita gente, ocorre o inverso.
14 Comentários
Sérgio, vc e Younge estão errados. Ano memorável mesmo foi 2006. Mas, muitos terão que esperar 100 anos para percebê-lo. 🙂
Advogar em causa própria não vale, Cláudio. Mas já que você começou, melhor torcer para que o reconhecimento chegue um pouco mais cedo, não? A posteridade é uma festa para a qual não fomos convidados.
Sinto dizer, mas a sensação que tenho – e que esse tardio obra-oba sobre 68 só vem confirmar – é que o grande legado de 68 foi mesmo um “relaxamento” geral dos costumes e das idéias.
Se isso pe bom no plano comportamental – a partir de então se pode comer a própria namorada, negros e mulheres passaram a ser vistos com outros olhos etc. – no plano educacional, artístico e cultural de um modo geral o “poder jovem” só fez endeusar pessoas e idéias irresponsáveis, irrealistas ou simplesmente irrelevantes.
E aqui ponho, num mesmo balaio, os relativismos lingüísticos que implicam num “vale-tudo” em termos de linguagem, as literaturas lisérgicas de pouco ou nenhum valor artístico, as artes plásticas meramente “performáticas”, etc., etc., etc. Estou com o Nelso Rodrigues, em matéria de “poder jovem”: cresçam, rápida e desesperadamente cresçam, meus bons literatos de 68 e adjacências.
Se os anos 60 produziram alguma coisa relevante em termos artísticos, não me parece resarazoado observar que foi por obra de autores que àquela altura já eram adultos (ou seja: amadureceram nos anos 40 e 50). Se os 70 foram uma porcaria artística – uma era “disco” – é porque então já se tratava da produção dos jovens (agora adultos) de 68, que tinham mais gogó do que palavra.
Caramba, perdoem os brutais erros de datilografia acima. Não revisei o texto antes de postar.
Sérgio, conhece um livro da Flora Sussekind chamado “Literatura e Vida Literária”? Ela faz uma análise muito interessante da literatura brasileira durante o período da ditadura e ressalta, logo no início, justamente essa multiplicidade literária do período (que normalmente o pessoal coloca no mesmo balaio, dizendo que o autor ‘fez assim por causa da censura da época’, o que é uma explicaçãozinha curinga pra qualquer coisa de qualquer autor). Um trabalho crítico dos mais interessantes sobre o período.
Obrigado pela dica, Leandro.
1968 foi melhor, para mim. bem, eu nasci, né?
sem querer ser chato, vou discordar (um pouco, apenas) do Chato: não creio que o que veio nos 70 seja, apenas, uma porcaria. talvez, mais porcarias visíveis, por termos mais acesso às porcarias. ou não. creio que daqui a vinte anos, nem mais 100, por conta da evolução das formas de comunicação e difusão, a gente possa descobrir o realmente é bom ou não. enfim. só.
A velha questao das assimetrias generacionais…. nunca acreditei muito nisso de geracoes e canones literarios…e talvez por isso nao aguente mais esse papo de 68. So quem nunca assitiu a nenhum filme do Dennys Arcand eh que insiste na ideia chata do ponto zero da geracao 68.
Mas, a grande lembranca de Drumond, Fonseca, Santanna e Nassar eh importante para recordar como a decada posterior foi um tanto timida em termos de revelacoes literarias.
P.S. o raio x que o Sussekind faz do pai escrevendo na varandola gabinete e do oportunismo do Paulo Coelho da formacao do jornal do hospital psiquiatrico eh biliatico, ironicamente fino e divertidissimo.
saiba Sérgio, que também não me esqueceram aquelas distópicas ‘sementes’, representantes de uma nova abordagem literária, apresentadas aos nossos ‘tristes trópicos’ naquele mesmo ano.
à festa da posteridade, sendo sincero, pouco me interessa o convite: estaría impossibilitado de comparecer, não é mesmo?
as da atualidade (o chamaremos ‘reconhecimento’), penso, merecem, antes de tudo, nossa desconfiança, é uma faca de dois gumes. basta, penso, o reconhecimento (mútuo e secreto) entre a dificuldade de um texto parido e o esforço do autor, não acha?
É isso aí, Cláudio. Se quiser fazer um artigo defendo o ano de 2006, prometo não polemizar com você. Tem também o “Mãos de cavalo”. Abs!
Sergio, falando de um assunto que volta e meia aparece no Todoprosa – o fim do livro tal como o conhecemos hoje, que tal dar uma olhada no artigo de Luiz Schwarcz da Companhia da$ Letra$, no site da revista Época
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI4537-15273,00-O+QUE+IMPORTA+SAO+AS+LETRAS.html
Bom link, Alejandro, valeu.
Sérgio, 2006 foi o ano que tive meu primeiro conto publicado (São dois em livros de coletâneas), então eu voto nele também. Mas acho que o melhor ainda está por vir.
Achei interessante seu artigo sobre a literatura dos anos 68, 75 e 2008. Realmente, tentar associar a literatura ao momento históric-social é uma faca de dois guems eu diria. Ao tentar fazer um paralelo seguindo esta linha incorremos num erro: o de engessarmos a obra e acabarmos por torná-la “obsoleta” -não encontro palavra apropriada, usemos essa num sentido mais strictu. A literatura dos anos 60 e 70, épocas obscuras como os porões dos quartéis, não podem ficar presas somente a este fio, ela é muito mais do que isso…cabe a nós descobrirmos o “mais” que ela tem…Abraços