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Mia Couto: ‘O outro pé da sereia’
Primeira mão / 21/05/2006

O novo romance do premiado escritor moçambicano Mia Couto, “O outro pé da sereia” (Companhia das Letras, 336 páginas, R$ 43), que acaba de sair em Portugal e chega às livrarias daqui no fim desta semana, une dois momentos históricos – 1560 e 2002 – por meio de uma relíquia que atravessa os séculos: uma velha imagem de Nossa Senhora com o pé quebrado. O sincretismo tecido em torno da santa serve de emblema da história de Moçambique. O trecho a seguir foi retirado do terceiro capítulo e joga o leitor em 1560, a bordo da nau portuguesa Nossa Senhora da Ajuda, que zarpou de Goa com destino à África levando a imagem benzida pelo papa e uma missão: converter infiéis: A vela pincelou de luz a estátua da Santa. Naquele bruxulear, a Virgem parecia animada de vida interior. O padre Antunes certificou-se de que a imagem estava bem apoiada, a salvo dos balanços do mar. Depois, fechou os olhos, deixando-se possuir pelo duplo embalo: da obscuridade e do mar. Acreditava estar dormindo quando um rosto pálido de mulher lhe inundou os sentidos. Era uma jovem despedindo-se na berma do rio Mandovi. Antunes seguia na canoa a caminho da nau…

Porque hoje é sábado
Posts / 20/05/2006

Hoje é o dia que, não se sabe bem por quê, a imprensa de boa parte do mundo reservou para tratar de literatura. Algumas notícias garimpadas por aí: * Toni Morrison, que teve seu romance Beloved (“Amada”) eleito o melhor da ficção americana nos últimos 25 anos (nota abaixo), virá à Flip. A informação está na coluna No Prelo, de Mànya Millen e Rachel Bertol, no caderno Prosa & Verso do “Globo”. Ganhadora do Nobel, Morrison passa a ser assim o primeiro nome estelar garantido em Parati este ano. O caderno traz também uma resenha elogiosa sobre “Mãos de cavalo”, de Daniel Galera – o saldo está melhorando (veja abaixo). * O consagrado escritor angolano Luandino Vieira, que no Brasil é mais citado e estudado na universidade do que propriamente lido, ganhou o prêmio português Camões, informa a Folha de S. Paulo (só para assinantes do jornal ou do Uol). * O caderno Babelia (em espanhol), do “El Pais”, faz um carnaval com o novo romance do peruano Mario Vargas Llosa, que está comemorando 70 anos – a mesma idade de Luandino, embora isso não venha absolutamente ao caso. Tem uma boa entrevista e duas críticas, uma do novo livro,…

Saddam agora tortura o leitor
Posts / 20/05/2006

Leitores com gostos bizarros podem começar a torcer por uma tradução: aquele que é considerado o quarto e último romance escrito pelo ex-ditador iraquiano Saddam Hussein acaba de ser publicado no Japão. Chama-se “A dança do diabo” e é mais ou menos inédito: uma edição de dez mil exemplares freqüentou as prateleiras da Jordânia por um breve período no ano passado, antes de ser recolhida pelas autoridades do país. “A dança do diabo” conta a história de um líder árabe que organiza a resistência de seu povo a uma tentativa de invasão de suas terras por hordas judaico-cristãs – e vence. Consta que Saddam teria pingado o ponto final no livro pouco antes da invasão americana. Saddamistas (epa!) fiéis sentiram falta das cenas de sexo que apimentavam seu romance de estréia, publicado sob pseudônimo no Iraque em 2001. Notícia completa, em inglês, aqui.

O mago não perde a magia
Posts / 19/05/2006

Harry Potter e outros heróis juvenis, livros escritos por líderes religiosos e títulos didáticos lideraram o crescimento do mercado editorial americano no ano passado. Com um salto de 5,9% em relação a 2004, o faturamento total foi de 34,6 bilhões de dólares. O sexto título da série do mago, aqui traduzido como “Harry Potter e o enigma do príncipe” (Rocco), vendeu espantosos 11 milhões de exemplares só nas nove primeiras semanas após o lançamento nos EUA. Leia mais aqui, em inglês, mediante cadastro gratuito.

‘Mãos de cavalo’: parem as máquinas!
Resenha / 18/05/2006

Entre “críticas” que raramente são mais que resenhas apressadas, notinhas em blogs e entrevistas oba-oba, tudo emparedado por sólidos muros de silêncio comodista da universidade, volta e meia eu me vejo intrigado e perplexo com a recepção dada a nossos livros pela elite cultural brasileira – aquela fatia fina da população que se interessa por literatura a ponto de perder seu tempo escrevendo ou lendo sobre um assunto tão, hmmm, inútil. Não me refiro apenas ao modo como as relações de amizade e compadrio se sobrepõem freqüentemente aos critérios estéticos – isso é assunto velho, e talvez não possa ser diferente num mundinho tão pequeno e de ar tão viciado. Quando falo em perplexidade, penso mais na forma como certos juízos se espalham rapidamente, sem contraditório, numa inércia em que a baixa média geral de leitura parece se mesclar ao medo de contrariar o bando. Isso gera maluquices, distorções e injustiças que, até certo ponto, sempre fizeram parte do jogo. Verdade – literatura não é para quem tem pele sensível e desiste fácil. Meu temor é que, a partir de um determinado ponto, as maluquices geradas por nossos mecanismos falhos de avaliação e difusão de novidades literárias tenham o poder…

O livro, a árvore e o deserto
Posts / 18/05/2006

Tenha um filho, escreva um livro e plante uma árvore, diz a velha receita da realização pessoal. Fórmula segura para que seu filho acabe lendo num deserto. A editora Random House (do supergrupo de comunicação alemão Bertelsmann) anunciou a meta de usar em seus livros 30% de papel reciclado até 2010 – hoje a proporção é de 3%. Segundo os cálculos da empresa, o novo patamar corresponderá à salvação de 550 mil árvores por ano. A notícia está aqui, em inglês, mediante cadastro gratuito. Enquanto isso, no Brasil, a discussão engatinha, a ponto de ter sido notícia, ano passado, a edição “ecologicamente correta” de “As intermitências da morte”, de José Saramago, pela Companhia das Letras. Por exigência do autor português, alinhado com uma campanha do Greenpeace, o livro foi o primeiro no Brasil a ganhar o selo internacional FSC, que atesta o cumprimento de boas normas ambientais – não necessariamente o uso de papel reciclado. A questão da reciclagem é complicada. Por um lado, o custo de produção sobe. Por outro, abre-se para a promoção do livro um terreno de marketing que tende a ter cada vez mais ressonância, até num país ambientalmente atrasado como o Brasil. Nem é preciso…

Literatura até debaixo d’água
Posts / 17/05/2006

Uma inutilidade engraçadinha? Uma genial preparação para o aquecimento global? Uma das últimas novidades tecnológicas no mercado editorial é o livro à prova d’água, com páginas plastificadas e encadernação resistente à umidade. Assim é apresentada uma coletânea de “contos praieiros” chamada The beach book (“O livro da praia”), da editora americana Melcher Media. Embora se trate de literatura séria – Gabriel García Márquez, Isaac Bashevis Singer e Jeffrey Eugenides são alguns dos autores –, é inegável que o principal atrativo do livro é mesmo seu suporte físico. Mas um cliente da Amazon que o comprou alerta: “O tamanho é o de uma brochura normal, mas ele é muito mais pesado. Não é do tipo que se consegue segurar com uma mão só”.

A era dos superlivros
Posts / 16/05/2006

O mundo vai ser cada vez mais de Paulo Coelho e cada vez menos de Paulo Mendes Campos. Sempre foi assim, mas o abismo entre o livro como objeto comercial e o livro como objeto cultural está se alargando. Em edição recente do ótimo caderno literário do jornal espanhol “El Pais”, o “Babelia”, um artigo de Esther Tusquets analisa a participação cada vez maior que os títulos de altíssima vendagem, apoiados em esquemas caros de propaganda, têm no bolo do mercado editorial. O que vale para a Espanha, no caso, vale para o mundo inteiro – e mais ainda para países como o Brasil, onde é mais baixo o nível médio de educação. O artigo (acesso livre, em espanhol) não vai muito além de apontar o dedo para problemas que todos conhecemos bem, mas o faz com bom poder de síntese. Abaixo, os argumentos principais: No plano individual e no nível de um país, a moda é inversamente proporcional à cultura: quanto maior é a base cultural, menor é a força da moda, que se torna avassaladora se a referida base for ínfima. O que ocorre no âmbito da leitura? Creio que aí as conseqüências do predomínio desmesurado da moda…

O paraíso de cada um
Posts / 16/05/2006

Acho que “O Paraíso é bem bacana” é um livro que tem tudo, todos os ingredientes para despertar interesse na Europa, principalmente na Alemanha. O Brasil ainda está meio na moda por lá, é ano de Copa do Mundo, e se discute o islamismo o tempo todo. Eu estava todo feliz com isso, fazendo planos, imaginando polêmicas internacionais. Mas, depois, percebi que, se o livro acontecer mesmo na Europa, pode ser que minha cabeça fique a prêmio, embora eu tenha uma profunda simpatia pela causa política dos muçulmanos. Do escritor André Sant’Anna em entrevista ao Portal Literal, revelando um misto de medo e desejo de que seu romance “O Paraíso é bem bacana” (Companhia das Letras, 452 páginas, R$ 51), sobre um jogador de futebol brasileiro que vai jogar na Alemanha e acaba virando homem-bomba, o transforme no Salman Rushdie tupiniquim.

Alain de Botton e a AAPC
Posts / 16/05/2006

O escritor suíço (radicado em Londres) Alain de Botton, autor de “Como Proust pode mudar sua vida” (Rocco), praticamente inventou um novo gênero literário, a auto-ajuda podre de chique (AAPC). A AAPC permite ao cidadão fazer aquela leitura utilitária típica da auto-ajuda mais rasteira – “como este livro pode me melhorar?”, pensa, calculando o custo-benefício de cada volume – e ao mesmo tempo desfrutar de uma sensação de refinamento intelectual que apaga qualquer culpa que tal pedestrianismo pudesse causar. Em termos comerciais, a AAPC é coisa de gênio. Como leitura, há quem goste. Não é o caso da crítica Rachel Aspden, da revista New Statesman (acesso livre, em inglês). O último livro do autor, “A arquitetura da felicidade”, um passeio pela história da arquitetura em busca daquilo que pode – claro – melhorar a nossa vida, é recebido por ela a golpes de marreta: “(O livro) é como um capuccino plastificado da Starbucks: consiste de 65% de banalidades acachapantes apresentadas sob uma espuma de polissílabos alatinados”.

O pau de Updike em Houellebecq
Posts / 15/05/2006

Enquanto os fãs brasileiros do escritor francês Michel Houellebecq aguardam o lançamento por aqui de seu quarto romance, “A possibilidade de uma ilha” – ficção científica sobre uma religião que vende vida literalmente eterna, fazendo cópias clonadas em série de seus fiéis –, talvez ajude a matar o tempo ler o que escreve sobre a edição americana do livro o escritor John Updike. A crítica (acesso livre, em inglês) está na última edição da revista “The New Yorker”. Preparem-se que lá vem paulada – assim caminha a literatura em países pouco inclinados ao morno compadrio em que nos espojamos: Para descrédito de Houellebecq, ou pelo menos em prejuízo de seu romance, todo o seu meticuloso ódio a – e estridente impaciência com – a humanidade em seus tradicionais sentimentos e ocupações o impede de criar personagens dotados de conflitos e aspirações com os quais o leitor se importe. O herói habitual de Houellebecq, cujo monopólio de auto-expressão suga a maior parte do oxigênio da narrativa, se apresenta sob uma de duas formas: um eremita consumido por tédio e apatia ou um inflamado astro pornô. Em nenhum dos dois papéis ele solicita – ou recebe – muita simpatia. Quem quiser ver…

Carpinejar, discípulo de Artur da Távola
Posts / 15/05/2006

Este blog, fiel a seu nome, não discute poesia. Fabrício Carpinejar, o talentoso e festejado poeta gaúcho de 33 anos que escreveu, entre outros livros pelo menos interessantes, “Um terno de pássaros ao sul” e “Cinco Marias”, pode ou não ter sua importância exagerada pelo momento pouco exuberante da poesia brasileira – isso não vem ao caso. O certo é que nada me preparou para o choque de encontrar nas suas crônicas, reunidas no volume “O amor esquece de começar” (Bertrand Brasil, 288 páginas, R$ 35), o trabalho de um desenvolto seguidor de Artur da Távola. Entre o livro de Carpinejar e um Távola clássico como, digamos, “Do amor – Ensaio de enigma”, as diferenças são adjetivas ou nem isso. Por exemplo, qual dos dois escreveu, com rima involuntária e tudo, que “no momento em que a gente ama, é difícil não sentir timidez ao mostrar a nudez. Quem não tem vergonha não ama”? E quem disse que “a mulher que perdeu o seu amor é alguém com óculos de ver eclipse na alma. Fica com olhar de rinoceronte e olho de cambaxirra”? Um deles escreveu que “o casado não suporta fazer relatórios de onde vai e quando volta. O…

O livro de Self
Posts / 14/05/2006

Mais uma atração pinçada no programa do Festival de Hay, no País de Gales (veja nota sobre a outra abaixo, “Literatura é coisa de homem, diz feminista”). Esta é diferente porque o interesse que me despertou exclui por completo a ironia: o alucinado escritor inglês Will Self, um satirista atormentado que merece o meu respeito, está lançando um novo romance chamado The book of Dave (“O livro de Dave”). O argumento é promissor: na Londres do futuro, após a devastação provocada por uma enchente, os sobreviventes encontram os escritos desconexos de um motorista de táxi do passado e, com base nessas “escrituras”, fundam uma religião.

Deus não está morto
Posts / 14/05/2006

O que é a religiosidade? Aonde nos levará? O livro de Will Self citado na nota acima não é a única evidência de que os rumos do planeta nos últimos anos estão levando a literatura a atacar novamente a questão de Deus – uma questão que, pelo menos desde o século 19, parecia enterrada. Para a melhor literatura, com raríssimas exceções, Deus era aquele que estava morto – ponto. Não mais. Basta ver que o tema da última edição da Granta, a melhor revista literária do mundo, é God’s own countries, “Os países de Deus”. O foco é mais em política do que em religiosidade, claro. Mas sem entender o que, no homem, anseia pela divindade não se chega a lugar nenhum nessa conversa. (Na internet é possível ler apenas uma parte da edição, mas um pedaço da “Granta” vale por pilhas de revistas que circulam por aí.)

O melhor dos EUA em 25 anos
Posts / 13/05/2006

O editor de livros do “New York Times”, Sam Tanenhaus, fez uma enquete (acesso mediante cadastro gratuito) com centenas de escritores, editores e críticos americanos para descobrir “a melhor obra americana de ficção publicada nos últimos 25 anos”. Ganhou Beloved (“Amada”), de Toni Morrison. Publicado no Brasil ainda nos anos 80 pela Nova Cultural, com tradução de Sarah Kay Massaro, hoje este que costuma ser considerado o melhor livro da primeira escritora negra a ganhar o Nobel virou raridade por aqui. Em seguida, na lista do NYT, vieram “Submundo”, de Don DeLillo (Companhia das Letras) e Blood Meridian, de Cormac McCarthy.

Sai Silvestre, entra Sandra
Posts / 12/05/2006

O programa “Espaço Aberto Literatura”, da GloboNews, vai ao ar neste momento com uma novidade interessante. A repórter Sandra Moreyra conduz a entrevista (no caso, com José Castello, que fala de seu livro sobre João Cabral de Mello Neto) no lugar de Edney Silvestre. Sandra é de uma ilustre dinastia de letrados cariocas, neta de Álvaro e filha de Sandro, e fica bem naquela cadeira. Não deve ocupá-la por muito tempo, porém: Silvestre está ausente porque cobre férias no escritório da Globo em Nova York, e, ressalvada uma mudança de planos, reassumirá o programa dentro de um mês.

Ele superou Dan Brown, mas não existe
Posts / 12/05/2006

O romance mais vendido hoje na livraria virtual Amazon, Bad twin, foi publicado na semana passada e logo deslocou o fenômeno “O código da Vinci” para o segundo lugar. A façanha é ainda mais respeitável porque o thriller de Dan Brown, além de ter sua própria história de sucesso, está turbinado no momento pela propaganda do filme nele baseado. Nada disso, porém, é o mais importante no caso de Bad twin. O que torna o livro um caso realmente único é o fato de seu autor, Gary Troup, não existir – ou melhor, só existir como personagem de ficção. Troup é um dos passageiros que não sobreviveram à queda do avião no seriado de TV “Lost”. Na história, o manuscrito de Bad twin foi encontrado entre os destroços e lido por um dos sobreviventes. A diferença entre Gary Troup (anagrama de “Purgatory”, como alguns fãs de “Lost” não demoraram a descobrir) e outros autores de mentira – aquele “lourinho/lourinha” que andou pela Flip ano passado, por exemplo – é que o jogo ficcional, no caso do personagem de “Lost”, é assumido. Leva a questão da autoria para um terreno que a obsessão pós-moderna com a história-dentro-da-história ainda não tinha ousado…