Clique para visitar a página do escritor.
O maior (952 páginas) romance da literatura brasileira
Posts / 11/05/2006

Justo agora que a internet tinha nos convencido de que ninguém agüenta ler textos com mais de duas telas, uma blogueira mineira de 35 anos chamada Ana Maria Gonçalves está lançando o maior romance da literatura brasileira de todos os tempos: 952 páginas. Chama-se “Um defeito de cor” (Record, R$ 79,90) e é uma saga daquelas que, nos Estados Unidos, já chegariam às prateleiras com um contrato assinado em Hollywood. Ana Maria cobre oito décadas para contar a vida de Kehinde, capturada na infância no reino do Daomé (hoje Benin), em 1810, e que acaba vindo parar no Brasil como escrava. A ambição do vôo romanesco e a coragem quase agressiva do tijolaço já seriam suficientes para destacar Ana Maria da multidão, mas aqui vai outra notícia espantosa: a moça escreve que é uma beleza, com uma sobriedade, uma segurança e um ajuste sereno entre forma e conteúdo que andam em falta – e como – no mercado. Na orelha, Millôr Fernandes escala o livro entre os melhores que já leu “em nossa bela língua eslava”. E desafia: “Desmintam-me, por favor”. Não, isto aqui não é (ainda) uma resenha: estou no começo de “Um defeito de cor”. Um juízo acabado…

Ana Maria Gonçalves: “O blog me fez escrever”

Vem cá: o livro tinha mesmo que ser tão grande? Não dava para enxugar? – Ele foi bem cortado. Inicialmente, tinha mais de 1.400 páginas. Fiz pelo menos 19 versões do texto e fui tirando várias histórias boas que tinham aparecido na pesquisa, mas que não precisavam realmente entrar. Dava para fazer mais dois livros com o que ficou de fora. Foram dois anos de pesquisa e nove meses escrevendo, de domingo a domingo. Durante todo esse tempo, não fiz outra coisa, foi dedicação integral mesmo. Eu sou publicitária, e quando decidi parar tudo para escrever vendi minha agência em São Paulo e fui para a Bahia disposta a só pesquisar e escrever. Hoje, para conseguir viver assim, estou de volta à casa dos meus pais, em Três Corações (risos). Você tem blog desde 2001. Não é estranho que um escritor da chamada “geração blogueira”, que costuma ser mais afeita ao telegráfico, ao tiro curto, lance um trabalho de fôlego tão longo? – Foi um bom desafio, viu? Eu tinha escrito coisas na adolescência mas depois, no tempo da publicidade, foram muitos anos sem escrever. Quando comecei meu blog, em 2001, é que voltei: o blog me fez escrever. Enquanto…

Um defeito de cor (trecho)
Primeira mão / 11/05/2006

Ana Maria Gonçalves Sentada sob o iroco, a minha avó fazia um tapete enquanto eu e a Taiwo brincávamos ao lado dela. Ouvimos o barulho das galinhas e logo depois o pio triste de um pássaro escondido entre a folhagem da Grande Árvore, e a minha avó disse que aquilo não era bom sinal. Vimos então cinco homens contornando a Grande Sombra e a minha avó disse que eram guerreiros do rei Adandozan, por causa das marcas que tinham nos rostos. Eu falava iorubá e eve, e eles conversavam em um iorubá um pouco diferente do meu, mas entendi que iam levar as galinhas, em nome do rei. A minha avó não se mexeu, não disse que concordava nem que discordava, e eu e a Taiwo não tiramos os olhos do chão. Os guerreiros já estavam de partida quando um deles se interessou pelo tapete da minha avó e reconheceu alguns símbolos de Dan. Ele tirou o tapete das mãos dela e começou a chamá-la de feiticeira, enquanto outro guerreiro apontava a lança para o desenho da cobra que engole o próprio rabo que havia, mais sugerida do que desenhada, na parede acima da entrada da nossa casa.

A triste história da plagiária de Harvard
Posts / 10/05/2006

A história de Kaavya Viswanathan, estudante de Harvard de 19 anos que foi do paraíso ao inferno editorial em poucos dias por conta de uma série de acusações – todas fundadas – de plágio, não comoveu a imprensa brasileira. Normal: Kaavya, que até poucas semanas atrás era festejada por seu primeiro romance chick lit (de literatura para moças, no estilo de Bridget Jones), não teve tempo de ser conhecida pelo leitor brasileiro. A autora que primeiro a acusou de copiar passagens de dois livros seus, Megan McCafferty, também não é ninguém por aqui. Se é normal que o caso, fora uma notinha ou outra, tenha passado em branco no Brasil, não deixa de ser, ao mesmo tempo, uma pena. Primeiro porque a história é pungente em si: Kaavya, garota linda, tinha fechado com uma grande editora um contrato para dois livros no valor de meio milhão de dólares – nada menos. Depois de recolher o livro sob suspeita, How Opal Mehta got kissed, got wild, and got a life, a princípio para “revisá-lo”, a editora Little, Brown & Company anunciou na semana passada que não haveria uma nova edição. Anunciou também que o contrato estava cancelado. Supõe-se que o meio…

A opinião de Fred Flintstone
Posts / 10/05/2006

Talvez seja exagero atribuir ao caso de Kaavya Viswanathan qualquer importância maior do que a de uma história triste sobre uma moça sem caráter, mas pelo menos um subproduto brilhante a polêmica já gerou: o texto humorístico de Larry Doyle publicado no último número da revista “The New Yorker”, intitulado How Fred Flintstone got home, got wild, and got a Stone Age life. Trata-se de uma alucinada colagem de pastiches de trechos famosos da literatura, tirados de autores como Poe, Dickens, Nabokov, com os versos da musiquinha de abertura dos “Flintstones” de entremeio. A graça do jogo (só para quem lê inglês, infelizmente) é desvendar o maior número possível das referências usadas por Doyle.

Corra que a Flip vem aí!
Posts / 09/05/2006

O romancista americano (filho de nigerianos) Uzodinma Iweala, de apenas 24 anos, mais recente atração internacional confirmada na Festa Literária Internacional de Parati, de 9 a 13 de agosto, é um autor inédito no Brasil. Não por muito tempo: a Nova Fronteira prevê lançar em julho, às vésperas da festa, o livro com o qual Iweala estreou há dois anos, “Feras de lugar nenhum”. O caso é semelhante ao do veterano inglês Benjamin Zephaniah, inédito até que a Companhia das Letras publique, também em julho, o infanto-juvenil “Gangsta rap”. Será que toda essa correria para publicar desconhecidos (desconhecidos aqui) indica que a Flip está com dificuldade para fechar seu elenco internacional? Não seria surpresa – as edições anteriores foram tão vorazes nesse aspecto que não sobraram muitos nomões no caderninho. Isso não quer dizer que Iweala e Zephaniah sejam fracos ou que desembarcarão em Parati a bordo de alguma cota racial – ambos são negros. Nada disso: “Feras de lugar nenhum”, história de um menino africano transformado em matador por uma guerra civil, foi recebido calorosamente pela crítica internacional. E Zephaniah é uma figuraça, um agitador performático que pode até vir a perder todo o sentido na tradução, mas não…

Literatura é coisa de homem, diz feminista
Posts / 09/05/2006

Dando uma olhada na programação do festival de literatura de Hay, no País de Gales – aquele que serviu de inspiração para a nossa Flip –, não demoro a encontrar minha atração preferida: uma conferência da feminista australiana Germaine Greer. No próximo dia 27, sábado, ela examinará “a literatura como construção masculina, e a poesia, especialmente, como uma ‘forma espetacular de exibição de macheza’”. E mais: a intelectual quer descobrir “que estratégias podem adotar as leitoras e escritoras quando confrontadas com uma linguagem desse tipo, que ‘as objetifica completamente’?” A primeira e urgente estratégia seria, provavelmente, pedir com gentileza a dona Germaine que fosse catar little coconuts. E que, enquanto estivesse a catá-los, aproveitasse para refletir sobre algumas posições bizarras que vem adotando nos últimos tempos, e que causam mais estragos à imagem das mulheres do que cem gerações de poetas priápicos barbudos. Como sua defesa intransigente da mutilação genital feminina, com o argumento de que as sociedades africanas em que ela é praticada lhe atribuem um peso cultural que nós, ocidentais, não temos o direito de julgar. Aquela conversa mole de relativismo cultural, pois é. Substância literária eu não garanto, mas querem esquentar o debate nacional? Ainda dá tempo…

Para a ficção ficar mais científica
Posts / 09/05/2006

“Escritores de ficção científica não sabem nada”, declarou certa vez Philip K. Dick. No entanto, sendo um escritor de ficção científica, é possível que ele não soubesse nada. Por via das dúvidas foi criado na Inglaterra o SciTalk, um inacreditável serviço online de aconselhamento científico gratuito a autores que queiram criar coisas como universos paralelos habitados por mutantes com o sexo entre as sobrancelhas, mas deixando a imaginação trabalhar sobre fundamentos físicos e químicos sólidos. Está certo que o gênero de Fausto Cunha, Jorge Luiz Calife e – às vezes – Braulio Tavares está longe de ser o preferido dos escritores brasileiros, mas nunca se sabe quem pode fazer bom uso da dica. Um regime de mais pósitrons e menos pose até que não nos faria mal.

Cony inédito: e a Madre Teresa, hein?
Primeira mão / 08/05/2006

Excelente notícia: Carlos Heitor Cony, um dos poucos escritores propriamente ditos da Academia Brasileira de Letras, comemora seus 80 anos (completados dia 14 de março) lançando romance novo, o primeiro desde 2003. Chama-se “O adiantado da hora” (Objetiva, R$ 32,90) e quando sair, no próximo dia 18, promete causar algum escândalo. Nada que se compare ao caso das caricaturas de Maomé – o catolicismo é bem mais flexível, afinal. Flexível mas nem tanto: vale lembrar a recente tempestade de protestos que desabou sobre os falos desenhados com terços pela falecida artista plástica Márcia X., e que fez o Centro Cultural Banco do Brasil cancelar a mostra “Erotica”. Acontece que Cony, um ex-seminarista que já decretou, pela boca de um personagem do romance “Informação ao crucificado” (1961), que “Deus acabou”, continua afiado em sua tensão espiritualidade x anticlericalismo. “O adiantado da hora” é uma farsa furiosa, de humor escrachado e absurdo, em que Madre Teresa de Calcutá, beata a caminho da santificação, torna-se personagem de uma tórrida cena de sexo – mas talvez tudo não passe de mentira de um certo Seabra… O adiantado da hora (trecho) Ninguém sabe por que nem quando o chamavam de Seabra – nem ele, que…

Futebol, literatura e caneladas
Posts / 08/05/2006

O caderno Prosa & Verso, do “Globo”, aproveita a proximidade da Copa do Mundo para pôr novamente na roda uma velha discussão: por que o futebol do Brasil nunca encontrou uma representação literária à altura de sua exuberância? (Re)lançada a questão, alguns craques consagrados foram convidados a comentá-la. E protagonizaram um festival de matadas na canela de fazer inveja ao Íbis. Para o crítico literário Silviano Santiago, “o imaginário sobre futebol no Brasil é um espaço tão complexo, tão amplo e tão multifacetado que é quase impossível uma obra de ficção apreendê-lo. Nunca o imaginário do artista esteve à altura do imaginário do povo”. Soa bonito, mas deixa no ar algumas perguntas incômodas: se a presença anêmica da arte de Ronaldinho Gaúcho na literatura brasileira se explica pelo excesso de complexidade do nosso “imaginário sobre futebol”, onde estão os grandes romances brasileiros sobre esportes de imaginário mais pobre como vôlei, basquete, automobilismo, bocha, badminton – qualquer um? E cadê as belas obras de ficção futebolística produzidas em países de literatura mais desenvolvida e futebol menos acachapante? “Febre de bola”, do inglês Nick Hornby? Aquilo é memorialismo, não ficção. E eu disse “belas obras” – não bonitinhas ou passáveis. O antropólogo…

Esportes coletivos não dão liga?
Futebol & literatura , Posts / 08/05/2006

Impossível levar essa discussão sobre futebol x ficção a sério sem ampliar o quadro e tentar entender as relações entre os mundos esportivo e literário de forma mais geral. Não fiz nenhum estudo aprofundado – isso aqui é um blog, os estudos aprofundados ficam do outro lado da rua –, mas os dois universos parecem, com as exceções óbvias da crônica esportiva e de alguma poesia, manter relações frias. E não ficarei surpreso se, dos poucos exemplos de casamento feliz, a maioria envolver esportes individuais e não coletivos. Pense no que representa o halterofilismo para um conto extraordinário como “A força humana”, de Rubem Fonseca; a natação para o alter ego de Fernando Sabino em “O encontro marcado”; a tourada para o Ernest Hemingway de “O sol também se levanta”. O esporte como microcosmo da luta do homem – frágil, só, patético, magnífico – contra o mundo hostil. (Só depois de citar de memória esses três exemplos me dou conta de que dois deles falam de atividades que nem são consideradas propriamente esportivas.) Talvez seja difícil dar conta, literariamente, de trivialidades como o 4-3-3 e a disputa de pênaltis. Isto é, sem quebrar o encanto.