Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; aquela foi a idade da sabedoria, foi a idade da insensatez, foi a época da crença, foi a época da descrença, foi a estação da Luz, a estação das Trevas, a primavera da esperança, o inverno do desespero; tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós, íamos todos direto para o Paraíso, íamos todos direto no sentido contrário (…) Eis o melhor dos começos, o pior dos começos: o começo de “Um conto de duas cidades”, lançado em 1859 por Charles Dickens (Nova Cultural, 2002, tradução de Sandra Luzia Couto).
Porque muitos que são leterados não sabem treladar bem de latim em linguagem, pensei escrever estes avisamentos para ello necessários. Primeiro, conhecer bem a sentença do que há de tornar, e poê-la enteiramente, não mudando, acrescentando, nem minguando alguma cousa do que está escrito. O segundo, que não ponha palavra latinadas nem doutra linguagem, mas todo seja em nosso linguagem escrito, mais achegadamente ao geral bom costume de nosso falar que se pode fazer. O terceiro, que sempre se ponham palavras que sejam dereita linguagem, respondentes ao latim, não mudando umas por outras, assi que onde el disser per latim “escorregar”, não ponha “afastar”, e assi em outras semelhantes, entendo que tanto monta uma cousa como a outra; porque grande deferença faz pera se bem entender, serem estas palavras propriamente escritas. Em homenagem à seleção treinada por Felipão, que encara neste sábado a Inglaterra, vai aí um fragmento delicioso – e cheio de verdade, é só prestar atenção – do “Leal Conselheiro”, clássico do português medieval escrito por um rei de verdade, D. Duarte (1391-1430), que carrega pela história afora o simpático epíteto de “primeiro filósofo da saudade”. O fragmento foi colhido no livro “Era Medieval”, de Segismundo Spina, primeiro…
Reproduzo abaixo a mensagem que acabo de receber de Fernando Monteiro, escritor pernambucano citado semana passada aqui no Todoprosa, na nota “É claro que nossos netos vão rir”, por conta da apresentação interneticamente tosca de um folhetim de sua autoria no site do jornal paranaense “Rascunho”. A mensagem repete em linhas gerais os argumentos de um dos editores do jornal, Luís Henrique Pellanda, já publicados aqui: o trabalho em questão foi concebido para publicação em papel, o site é só um subproduto disso – traduzindo, ninguém está ligando para o que vai ao ar no “Rascunho” digital e eu não deveria ligar também. O que, na minha opinião, é confissão de culpa e não atenuante. De novidade, a mensagem do autor do folhetim traz uma crítica genérica e um tanto difusa ao próprio meio eletrônico e aos “debates” (aspas de Monteiro) que ele propicia. Pois é em benefício do debate (sem aspas) que a mensagem de Fernando Monteiro vai aqui na íntegra, sem edição, o que dificilmente ocorreria no espaço contado da imprensa de papel. E também porque, no fim das contas, suas palavras ajudam a entender por que seu folhetim, mesmo tendo caído na rede, se recusa tão obstinadamente…
As pinturas religiosas do século XIV foram as primeiras a retratar cenas de danação em que pessoas acima do peso vagavam pelo Inferno, condenadas a saladas e iogurte. Os espanhóis eram particularmente cruéis, e durante a Inquisição um homem podia ser condenado à morte por rechear um abacate com siri. Nenhum filósofo chegou perto de resolver o problema da culpa e do peso até que Descartes dividiu mente e corpo em dois, para que o corpo pudesse se empanturrar enquanto a mente pensava: “Quem se importa, esse não sou eu”. A grande questão filosófica continua sendo: se a vida não tem sentido, o que fazer a respeito da sopa de letrinhas? Deu para reconhecer o estilo? O trecho foi retirado de um livro inédito de um dos maiores filósofos da história, o “Livro de dieta de Friedrich Nietzsche”, cujo manuscrito foi descoberto recentemente em Heidelberg por Woody Allen – ou pelo menos é esse o ponto de partida da crônica de humor filosófico (em inglês) que ele publica no último número da “New Yorker”.
A cidade natal do colombiano Gabriel García Márquez, a pequena Aracataca, que ele pôs no mapa, não quis sair de casa para lhe retribuir o favor: num plebiscito realizado domingo passado, uma alta taxa de abstenção – leia-se indiferença – impediu que o nome da cidade fosse trocado para Aracataca-Macondo, em referência à localidade fictícia onde se passa a trama da obra-prima de García Márquez, “Cem anos de solidão”. Dos 22 mil eleitores da cidade, apenas 3.600 apareceram para votar, abaixo da metade do mínimo necessário. Notícia completa, em inglês, aqui. Moral da história? Talvez esta: o brilho da literatura, por mais forte que seja, costuma perder quando confrontado com o sol a pino da vida mundana. Ou ainda: a cidade está ressentida porque faz duas décadas que o escritor não a visita. Ou não, nada disso: rebatizar o lugar como Aracataca-Macondo era uma idéia de jerico mesmo.
“Fui dar em Budapeste graças a um pouso imprevisto, quando voava de Istambul a Frankfurt, com conexão para o Rio, mas a impecável companhia aérea, além de não ter culpa pelo transtorno, ainda nos hospedou em um hotel de primeira qualidade no aeroporto aquela noite – grande Lufthansa.” *** “– Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Mas só comecei a acertar mesmo quando troquei o velho trabuco por esta Taurus aqui, arma de grande maravilha. O senhor espie. Ahã.” *** “Quando Ismália enlouqueceu, Pôs-se na torre a sonhar… Viu uma lua no céu Viu outra lua no mar. O doutor que a atendeu Não tardou a receitar Óc’los da Ótica Fiel Pra vista dupla acabar.” *** “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria. Se os tivesse, não hesitaria em escolher o conforto e a segurança da Maternidade Nossa Senhora do Bom Parto, que tem convênio com todos os planos de saúde.”
O product placement, mais conhecido no Brasil como merchandising, é tão comum no cinema e na televisão quanto atrizes siliconadas. Parece que já passamos da fase de debater a ética da coisa, que de alguma forma se naturalizou: afinal, o personagem tem que tomar uma cerveja naquela cena, não tem? Está no roteiro. Então por que não fazer da cerveja uma Bohemia e descolar uma grana que – naturalmente – será reinvestida em prol da qualidade artística do produto final? Hein, hein? (Um espírito-de-porco pode argumentar que, uma vez começado esse jogo, é inevitável que mais e mais personagens virem enxugadores de cerveja, mesmo que sejam atletas de ponta em véspera de Olimpíada, mas ninguém vai lhe dar ouvidos.) Na literatura é diferente: a jogada ainda provoca escândalo, como se viu depois que dois autores americanos de livros juvenis, Sean Stewart e Jordan Weisman, admitiram ter reescrito as frases em que mencionavam o batom e outros produtos de maquiagem usados por uma personagem num livro recém-lançado, Cathy’s book, para encaixar as marcas registradas da grife Cover Girl. Imoral? Onde vamos parar? A escritora Jane Smiley publicou no “Los Angeles Times” um artigo em que troca de saída esse enfoque chocado…
Seleção brasileira de autores que escreveram sobre futebol, escalada pelo craque botafoguense Sérgio Augusto para o Portal Literal: Paulo Barreto; Coelho Neto, José Lins do Rego, Octávio de Farias e Vinicius de Moraes; Paulo Mendes Campos, Nelson Rodrigues e Décio Almeida Prado; Mario Filho, Edilberto Coutinho e Luis Fernando Verissimo.
“Memória do fogo” (Objetiva, 128 páginas, R$ 27,90), de Ronaldo Monte, é o terceiro título da coleção Fora dos Eixos, que já lançou “O vôo da guará vermelha”, de Maria Valéria Rezende, e “Voláteis”, de Paulo Scott. A coleção pretende, nas palavras escolhidas pela editora, “buscar a qualidade literária fora do eixo Rio/São Paulo”. O ponto de partida é lá um tanto questionável: as idéias de centro e periferia andam embaralhadas pela internet, e a velha convicção de que existe um mundão de talento inexplorado fora do “eixo” anda cada vez mais parecida com um mito. Mesmo assim o resultado da coleção tem sido mais que animador. “Memória do fogo” não é um livro fácil. Regionalista e intimista ao mesmo tempo, tem uma prosa de alta densidade poética dentro da qual a narrativa avança com lentidão de sonho. Vale a pena embarcar na viagem porque Ronaldo Monte, nascido em 1947, psicanalista alagoano radicado em João Pessoa, tem voz própria e um admirável domínio da linguagem. Qualidades incomuns dentro ou fora dos eixos. Foi então que viu pela primeira vez o que nunca queria ter visto. Via as pessoas por dentro. Não as suas carnes, não as suas tripas, não seus…
O maxilar de Spade era largo e ossudo, seu queixo era um V muito pronunciado, abaixo do V mais suave formado pela boca. As narinas se arqueavam para trás para formar um outro V, menor. Os olhos amarelo-cinzentos eram horizontais. O tema do V era retomado pelas sobrancelhas um tanto peludas que se erguiam a partir de duas rugas gêmeas acima do nariz adunco, e o cabelo castanho-claro tombava – de suas têmporas altas e retas – em uma ponta, por cima da testa. De modo bem ameno, ele parecia um satã louro. Disse para Effie Perine: – O que é, meu bem? O início de “O falcão maltês” (Companhia das Letras, tradução de Rubens Figueiredo, 2001), obra-prima lançada em 1930 por Dashiell Hammett (1894-1961) e fortíssimo concorrente ao título de maior romance policial da história, marca o momento – não desprovido de choque – em que a descrição da literatura realista encontra o grafismo econômico dos gibis.
Nos primeiros anos do século XX, escritores de grande importância no cenário intelectual do Rio de Janeiro deram vez a uma discussão que até hoje parece merecer nossa curiosidade. Com grande interesse, eles tentavam responder à seguinte questão: era o Brasil um país de leitores? O famoso cronista João do Rio, que costumava flanar pelas ruas da capital federal em busca de temas cotidianos e ao mesmo tempo provocantes para suas colunas nos jornais, dizia, ao observar o intenso movimento das livrarias e o número cada vez maior de mercadores ambulantes de livros, que o Brasil, de fato, lia. Inconformado com a análise do colega, Olavo Bilac, poeta, cronista e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, discordava veementemente. Usando como prova os dados censitários que denunciavam o alto índice de analfabetismo em todo o país e a constante queixa de romancistas eminentes que mal conseguiam esgotar a primeira edição de suas obras, Bilac deixava clara sua opinião: o Brasil não lia, pela “razão única e terrível de não saber ler”. Assim começa o bom livrinho “O livro e a leitura no Brasil” (Jorge Zahar Editor, 76 páginas, R$ 22), da cientista social Alessandra El Far, lançamento da coleção…
Um dos editores do jornal literário “Rascunho”, Luís Henrique Pellanda, me envia uma mensagem cordial para defender a publicação – sem a menor pinta, digamos, internética – do folhetim de Fernando Monteiro, que critiquei na nota abaixo. “O projeto que nos foi apresentado pelo Fernando não era o de um romance online, mas o de um folhetim a ser publicado em papel”, explica Pellanda. “A publicação do material no site do jornal é uma conseqüência do que é publicado mensalmente no ‘Rascunho’, e serve como registro e consulta aos leitores que perderam capítulos anteriores. Ou seja, o Fernando não buscava desenvolver, para este projeto, uma linguagem específica para a sua publicação na internet.” Muito bem. Imaginei mesmo que fosse o caso, sendo o “Rascunho” eletrônico um mero espelho do jornal de papel, mas vale usar o clichezão – caiu na rede, é peixe. A crítica continua de pé e pode até ser reforçada, estendendo-se à internet brasileira como um todo: com exceções raras, ainda nem chegamos à fase de tentar tornar a rede algo mais do que um depósito de textos. Temos cabeça de papel.
Quem gostou da solução encontrada pela Slate para publicar um romance online (nota abaixo) pode achar instrutivo conferir um exemplo de como não fazer isso, acessando o livro que o escritor Fernando Monteiro tem soltado em capítulos no “Rascunho”, o jornal literário paranaense.
Vai chegando ao fim a publicação, pela revista eletrônica Slate, do folhetim (a palavra se refere à publicação em série, não ao estilo) The Unbinding, de Walter Kirn, que estreou em março. Kirn é um autor com alguma estrada, embora pouco conhecido no Brasil, e merece uma visita – é grátis. Não tanto pelo romance em si, ambientado num futuro próximo e montado como uma colagem de e-mails e trechos de diários eletrônicos, entre outros fragmentos. Confesso que não me interessou terrivelmente. Mas o modo como é apresentado, sim. Absolutamente legível, com navegação fácil entre os capítulos, possibilidade de escolher a cor do fundo entre preto e branco e outras boas sacadas. A própria Slate – que é suspeita, claro – anuncia a iniciativa como a mais significativa desde que Stephen King “testou o meio no ano 2000, publicando um romance online chamado The Plant”. Não deu muito certo, como se sabe, mas isso teria ocorrido porque “os leitores foram prejudicados pelo acesso discado. Mas a supremacia da banda larga e o crescente conforto com a leitura online tornam possível a publicação de um romance como The Unbinding”, conclui a Slate. Eu sei que estamos engatinhando nessa área. É muito…
Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho. Dirigi-me a alguns amigos, e quase todos consentiram de boa vontade em contribuir para o desenvolvimento das letras nacionais. Padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira aceitou a pontuação, a ortografia e a sintaxe; prometi ao Arquimedes a composição tipográfica; para a composição literária convidei Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do Cruzeiro. Eu traçaria o plano, introduziria na história rudimentos de agricultura e pecuária, faria as despesas e poria o meu nome na capa. “São Bernardo” (1934), de Graciliano Ramos (39a edição, Record, 1983).
A lista de sugestões de livros para as férias de verão (deles), publicada no fim de semana pelo “Financial Times”, faz um bom retrato da atual configuração, digamos, geopolítica da literatura mundial – na qual o Brasil vai mal, mas vai mal demais. É importante ressalvar que a qualidade não tem necessariamente a ver com isso. E que listas como essa do FT – dividida por áreas geográficas, simulando as viagens que o leitor poderá fazer em pessoa quando as férias chegarem – não passam de bobagens de interesse meramente jornalístico. Mesmo assim, diz muito sobre a predisposição dos leitores do hemisfério Norte, que quarenta anos atrás mal podiam esperar o próximo lançamento latino-americano, o fato de a categoria “Américas Central e do Sul” ter apenas dois títulos, contra sete (sete!) da África, quatro do Oriente Médio e quatro da China. Ainda bem que, dos dois gatos pingados latino-americanos, um é brasileiro: City of God, de Paulo Lins. Mas não vamos nos iludir: o livro só foi parar lá por causa do sucesso do filme de Fernando Meirelles.
Atendendo a pedidos, seguem os dois parágrafos iniciais de uma das crônicas sem título de Campos de Carvalho em “Cartas de viagem e outras crônicas” (veja a resenha na nota abaixo). Qualidade à parte, não é um trecho típico do estilo do autor. Este, para quem não conhece, está bem resumido na frase inicial de “A dama no paquete”, do mesmo livro: “A bicicleta é um boi volátil cujo epicentro se situa sob o esfíncter anal do pedalante”. Resolvi destacar o texto abaixo porque o olhar que se poderia chamar de “social”, no sentido mais atual e penetrante que se dê à palavra, chama atenção em quem foi estigmatizado como alienado pela esquerda. Em outro ponto do livro, diz Campos de Carvalho: “Não sou um animal político, para espanto e escândalo de muita gente. Em compensação eu me escandalizo justamente com a sua politização, que é como eles chamam a sua mania de catequizar e sobretudo de se deixar catequizar”. Sou um crápula. A mulher grávida de muitos meses carregando a enorme trouxa de roupa na cabeça, pobre a mais não poder e com um menino ao lado também equilibrando o seu volume. Chove e no chão escorregadio o menino…