Assim eu vou acabar acreditando que Jorge Luis Borges está neste momento, em algum daqueles tempos bifurcantes que ele adorava, morrendo de rir. Além do caso científico da mulher com memória perfeita que o personagem Funes antecipou em mais de meio século (veja a nota abaixo), existe também a tese de que o escritor argentino lançou pistas proféticas sobre o genoma humano no mesmo livro de 1944, “Ficções”, no conto “A biblioteca de Babel”. Coisa de literato? Não. A tese – brincalhona, claro, mas ótima – é defendida com elegância na revista “Ciência Hoje” por um cientista, Sérgio Danilo Pena, professor titular do departamento de bioquímica e imunologia da UFMG. Vale a pena conferir aqui.
Como não tenho a memória perfeita de Irineu Funes, sei apenas que estava no México a trabalho, cobrindo a Copa do Mundo que seria vencida de forma acachapante pela Argentina de Maradona, quando recebi a notícia da morte de Jorge Luis Borges. Lembro-me de ter ficado triste, o que é uma memória óbvia. Se tivesse uma fração do dom de Funes – personagem de “Funes, o memorioso”, um dos melhores contos de “Ficções” (1944), provavelmente o melhor livro de Borges –, estaria escrevendo agora sobre tudo o que tornou aquele 14 de junho um dia sem igual, como todos são: temperatura, forma das nuvens, quanto tempo se passou – certamente uma vida, mas isso também é óbvio para quem conhece o México – entre a encomenda da ensalada de guacamole e sua chegada à mesa, a cor do cardápio, o comprimento da saia da morena sorridente na mesa ao lado e as letras de todas as canções com que os mariachis torturaram o jantar. Tudo isso está perdido para sempre. Só sei que estava no México, me esforçando para falar espanhol dia e noite, quando o argentino que era meu herói literário naquele tempo morreu. Entenderam? Eu falava espanhol, e…