Minha escala em matéria de relações tradutor-autor oscila entre o zero absoluto, cujo protótipo foi Thomas Bernhard (o tradutor é um ser incompetente que faz um trabalho merecidamente mal pago), e Günter Grass, para quem seus tradutores são, como ele disse algumas vezes, a verdadeira razão para continuar escrevendo. Entre esses extremos eu situaria Salman Rushdie, que jamais interfere nas traduções de seus livros, mas responde em 24 horas qualquer consulta… Rushdie escreveu sobre Hitoshi Iragashi, seu tradutor japonês assassinado: “A tradução é uma espécie de intimidade, uma espécie de amizade, e por isso choro sua morte como choraria a de um amigo”. O resto dos escritores se situa em variadas alturas. Um DeLillo, por exemplo, está perto de Grass; um Kundera, mais próximo de Bernhard, ainda que com pretensões de entender de tradução. O bom artigo do espanhol Miguel Sáenz – tradutor de Grass e Rushdie, sorte dele – é um dos que debatem as agruras da tradução na última edição do suplemento Babelia, do “El País”. O assunto ganhou a capa do caderno, sob o título “O ofício invisível”. Invisível, claro, quando a tradução é boa. A visibilidade do tradutor é inversamente proporcional à qualidade de seu trabalho….
O relançamento de “O nariz do morto” (Civilização Brasileira, 384 páginas, R$ 44,90), livro publicado em 1970 por Antonio Carlos Villaça (1928-2005), dá à cultura brasileira a oportunidade valiosa de repor em lugar menos folclórico o nome do escritor carioca. Embora esse título, que costuma ser considerado seu melhor, tenha dado início a uma série de volumes de memórias como “O anel” e “Monsenhor”, entre outros, Villaça é mais conhecido – sem que para isso seja preciso lê-lo – como arquivo de anedotas dos bastidores da literatura brasileira do século XX, cuja intimidade freqüentou. Não é que tal juízo esteja errado. Apenas não faz justiça a um grande escritor. “O nariz do morto” acompanha a vida de Villaça do nascimento à idade adulta, com foco na inquietação espiritual que o levou a tentar a carreira religiosa, internando-se no Mosteiro de São Bento – apenas para sair correndo de lá, trinta quilos mais magro e mergulhado numa crise existencial que o acompanharia pelo resto da vida. Como monge, Villaça – ou Lelento, ou ainda Sigismundo, máscaras que ele vai assumindo ao longo da história – era um poeta. Como poeta, era monge. Nesse descompasso equilibrou sua vida. O livro foi definido…
Um papagaio francês é o narrador do quinto romance de Luis Fernando Verissimo, “A décima segunda noite” (Objetiva, 148 páginas, R$ 28,90), que chega às livrarias no dia 16 de novembro. Segundo título da coleção Devorando Shakespeare, dedicado a histórias baseadas na obra do dramaturgo inglês, o livro se inspira na comédia “Noite de Reis”. Um dos maiores cronistas da literatura brasileira em qualquer época, Verissimo costuma se sair bem nas narrativas longas – em seu caso, nem tão longas assim –, que só escreve quando lhe encomendam. Foi assim com “O jardim do diabo” (L&PM, 1988), o primeiro e preferido deste escriba, e também com “Gula – O clube dos anjos” (Objetiva, 1999), “Borges e os orangotangos eternos” (Companhia das Letras, 2000) e “O opositor” (Objetiva, 2004). O primeiro título da coleção Devorando Shakespeare foi “Trabalhos de amor perdidos”, de Jorge Furtado. O próximo será “Sonhos de uma noite de verão”, de Adriana Falcão. Abaixo, o trecho inicial de “A décima segunda noite”: Mon Dieu, mon Dieu, um gravador. Deus dos papagaios, me acuda. Já ouvi minha voz gravada. Quase silenciei para sempre. É o som do caldeirão rachado com o qual pretendemos comover as estrelas e só conseguimos…
Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo. Às vezes mal apagava a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: “Adormeço”. O começo inesquecível desta semana foi sugerido pelo leitor Rogério Martins. Talvez as linhas iniciais de “No caminho de Swann”, livro lançado em 1913 pelo francês Marcel Proust (1871-1922), não tenham grande impacto em si, mas entraram para a história por marcarem o início de uma aventura literária em sete volumes chamada “Em busca do tempo perdido” – uma das obras fundamentais do século XX. Numa nota aí embaixo, o bibliófilo José Mindlin confessou ter achado “No caminho de Swann” sonífero quando tentou encará-lo pela primeira vez – para, numa nova tentativa, tornar-se um proustiano de carteirinha. A tradução citada aqui é do poeta Mario Quintana, publicada pela Abril Cultural, sob licença da editora Globo, em 1982.
O livro-sensação da Feira de Frankfurt, “Les bienveillantes” (“As benevolentes”), escrito em francês pelo americano Jonathan Littell, 38 anos, teve seus direitos de publicação nos Estados Unidos vendidos para a HarperCollins por US$ 1 milhão – notícia completa aqui, mediante cadastro gratuito. O romance, um tijolo de quase mil páginas, tem um narrador peculiar: ex-oficial nazista da SS, sem um pingo de arrependimento, homossexual. Na França, vendeu 280 mil cópias em um mês e meio. O sucesso inesperado obrigou a editora Gallimard a remanejar parte do papel que estava reservado para as reedições de Harry Potter. A obra está sendo disputada por quatro editoras brasileiras. O nome da vencedora deve sair na semana que vem. Em conversa com o Todoprosa, um dos editores que participam do leilão se referiu ao livro de Jonathan Littell – filho do escritor de espionagem Robert Littell – como “obra-prima”.
Shakespeare não seria blogueiro por estar muito ocupado, e Jane Austen por não entender a tecnologia, mas Daniel Defoe e George Orwell postariam (sim, há que se usar a palavra justa) uma nota atrás da outra, alegremente. O exercício, bobo mas divertido, sobre como se comportariam os clássicos da literatura inglesa na era da internet é feito pelo jornalista Robert McCrum no novo e vitaminado blog de livros do “Guardian” – que deu uma repaginada geral na sua versão online e merece uma visita. Fiquei pensando em quem, na história da literatura brasileira, teria aderido à blogagem se ela estivesse ao seu alcance. Machado de Assis, provavelmente sim, para comentar com ironia e fino texto os acontecimentos da Corte – mas teria que ser um blog pago, amadorismo não. Amador, e amantíssimo, seria Mario de Andrade, autêntica lenda na web: blogueiro caudaloso, incansável nos posts e generoso na troca de mensagens com dezenas de leitores simultaneamente. Oswald começaria bem, espirituoso, sucinto, mas dificilmente sustentaria o esforço por um prazo longo: depois de três meses e meio sem renovação, tiraria o blog do ar. Graciliano e Rosa? Acho que não. O alagoano passaria uma violenta descompostura no primeiro comentarista que o…
A língua portuguesa, hoje, não corresponde à realidade de todos os países lusófonos. Há grandes diferenças entre o português de Portugal e o português do Brasil. Anteontem, eu estive na casa do cônsul de Portugal, em um jantar para um escritor português, José Rodrigues dos Santos. Era um evento para quatro, cinco pessoas apenas. E eu passei o jantar inteiro sem conseguir entender quase nada do que o escritor falava. Felizmente, a Maria Adelaide Amaral estava sentada ao meu lado e traduzia para mim o que ele dizia. Nunca achei certa a posição do Oswald de Andrade, que dizia: “Não li e não gostei”. Isso é uma coisa que não tem propósito. Eu li um livro de Paulo Coelho para poder dizer que li e não gostei. Paulo Coelho está para a literatura como o bispo Edir Macedo está para a religião. Nos anos 40, resolvi ler Proust. E esbarrei naquela dificuldade: páginas e páginas sem um parágrafo. Não consegui captar o interesse e o valor do texto proustiano. E uma noite, em casa de um amigo do Rio, encontrei o Tristão de Athayde, Alceu de Amoroso Lima, um dos introdutores de Proust no Brasil, nos anos 20. A conversa…
O Festival Paris Beckett 2006-2007, que começou no mês passado e vai até junho do ano que vem, comemora o centenário do nascimento do autor de “Esperando Godot” (1906-1989) com um riqueza de atividades – veja aqui o site oficial do projeto, em francês – capaz de matar de inveja os habitantes de ecossistemas culturais como o nosso, em que são escassos dois fatores abundantes por lá: dinheiro para atividades artísticas e respeito pelo patrimônio cultural. Só para dar uma idéia: todas as 19 peças escritas por Samuel Beckett estarão em cartaz na cidade. Isso mesmo, todas. E o homem nem era francês, era irlandês, embora tenha adotado Paris e o idioma francês a partir do fim dos anos 1930.
De vez em quando, roubo uma nota que, se eu bobeasse, acabaria no blog do meu amigo Luiz Antonio Ryff, caçador de bizarrices. Esta é uma delas. Na Cidade do México, que não fica atrás do Rio ou de São Paulo quando se trata de criminalidade, policiais estão sendo submetidos a uma reciclagem originalíssima: cursos de literatura e aulas de xadrez. “O princípio é que um policial com boa cultura estará numa posição favorável para ser um policial melhor”, declarou ao jornal “The Guardian” (acesso livre aqui, em inglês) o chefe de segurança pública José Jorge Amador.
Entre na sua livraria de sempre. Uma bancada estará provavelmente inundada de tons pastéis, letras bordadas e títulos que falam de compras, sapatos e mamães apetitosas: é o canto das meninas. Outra mesa exibe cores agressivas e capas que mostram helicópteros, soldados, lasers e caveiras – o canto dos garotos. Fico exausta só de olhar para isso – será que os hábitos de leitura de homens e mulheres cabem em clichezinhos tão banais? Por que, oh, por que qualquer mulher moderna compraria um livro com uma capa lilás? O blog de literatura que Ceri Radford mantém no site do jornal inglês “Daily Telegraph” vale uma visita. O olhar da moça tem freqüentemente uma candura que faz falta nesse mercado povoado de gente calejada que finge que já leu tudo, que nada mais é motivo de espanto. Ceri preserva uma qualidade fundamental em qualquer repórter, a capacidade de estranhar. Embora pareça, nessa nota ela não está falando de literatura infantil ou infanto-juvenil. Está falando de certos tipos popularíssimos – mais febrilmente consumidos lá do que aqui, é verdade – de ficção para adultos. As raízes dos clichês que deprimem a blogueira são profundas: a nota me fez lembrar que, criança, eu…
“Conhecimento do Inferno” (Alfaguara, 248 páginas, R$ 37,90), o terceiro romance lançado pelo escritor António Lobo Antunes, em 1980, fecha uma trilogia que começou a chegar ao Brasil com a publicação, pela Objetiva, de “Memória de elefante” e “Os cus de Judas”. Como a dos outros dois, a narrativa de “Conhecimento do Inferno” é conduzida por um psiquiatra, veterano da guerra colonial em Angola, aqui num longo monólogo interior enquanto viaja de carro por Portugal. O contraste entre o tempo exíguo em que se passa a “ação” e o tempo dilatado da memória do protagonista representa um desafio técnico que a prosa de Lobo Antunes vence com um pé nas costas. Prosa que é, em si, o próprio livro, a literatura inteira desse autor de 64 anos que, para muita gente, era mais merecedor do Nobel do que seu conterrâneo José Saramago. Não vou entrar nesse Fla x Flu, aliás besta. Mas não há dúvida de que a escrita de Lobo Antunes, exaltadamente poética, caudalosa e rigorosa ao mesmo tempo, tem uma beleza plástica que às vezes, em meio a certas páginas, dá uma vontade danada de sair por aí gritando que estamos diante do maior escritor vivo da língua….
E já que estamos no labiríntico assunto de Borges (nota abaixo), uma notícia sensacional: está prestes a chegar às livrarias o que o jornal “Clarín” apresenta como o acontecimento literário do ano na Argentina. E não só na Argentina, observa Jean-François Flogel em seu blog no site Boomeran(g). Trata-se do minucioso e, parece, indiscretíssimo diário em que o escritor argentino Adolfo Bioy Casares (1914-1999), amigo e parceiro literário de Jorge Luis, registrou a convivência dos dois de 1947 a 1986, quando Borges morreu. A reportagem do “Clarín” sobre o lançamento pode ser lida aqui, mas os trechos do livro, adiantados na revista do jornal, “Ñ”, não estão disponíveis na internet. Graças a Flogel, aqui vai um deles, que mostra os dois escritores numa venenosa conversa de comadres sobre o Nobel em outubro de 1956 – cedo demais para que Borges, que jamais ganhou o prêmio, pudesse ser acusado de estar ressentido com a Academia Sueca: Borges me disse: “Deram o prêmio Nobel a Juan Ramón Jiménez”. BIOY: “Que vergonha”. BORGES: “…para Estocolmo. Primeiro Gabriela, agora Juan Ramón. São melhores para inventar a dinamite do que para dar prêmios”. BIOY: “De qualquer modo, Juan Ramón é muito melhor que Gabriela Mistral….
Devo à conjunção de um espelho e uma enciclopédia o descobrimento de Uqbar. A primeira frase de ?Tlön, Uqbar, Orbis Tertius?, o primeiro conto da coletânea ?O jardim de caminhos que se bifurcam?, lançada em 1941, resume Jorge Luis Borges. Ou pelo menos o Borges dos labirintos, da erudição absurda, lúdica e ardilosa, dos tempos paralelos ? tudo aquilo que daria origem ao borgianismo. O livro ganhou três anos depois o acréscimo de outros contos fundamentais, entre eles ?Funes, o memorioso?, e o nome de ?Ficções?. O melhor título do escritor argentino, na minha opinião. (Cito aqui a tradução que consta das ?Obras completas?, editora Globo, 1998, mas com uma liberdade: no título do livro, prefiro ?caminhos? a ?veredas?, que pode até ser uma tradução mais precisa do original senderos, mas soa meio pesado.)
…a muitas outras pessoas, as possibilidades de se tornarem leitoras foram decididamente vedadas por nosso mundo volúvel e cínico – um mundo aturdido pelo botão de fast-forward, um mundo que iguala o estar quieto no seu canto com o não-ser, um mundo cujos habitantes sentem uma raiva lancinante de alguma coisa sem nome que lhes falta. “Eu não leio ficção”, as pessoas me dizem, normalmente num tom que beira o acusatório. “Isto é, nos dias de hoje, não é só um punhado de sujeitos usando a linguagem para tentar parecer inteligentes?” Sim, é exatamente isso! “Mas eu encontro a mesma coisa, e com mais rapidez, num blog. Ou no meu cabeleireiro.” O trecho acima faz parte de uma das respostas do escritor russo-americano Gary Shteyngart ao seu colega, este americano por inteiro, Walter Kirn, no bom debate encomendado aos dois pela revista eletrônica Slate sobre “O Romance, 2.0” – ou seja, o futuro da forma por excelência da literatura de ficção na era da internet. Ambos são jovens ou quase isso – Shteyngart na casa dos 30, Kirn na dos 40. Cada um escreveu três artigos curtos, em forma de carta dirigida ao outro, e a coisa toda tem momentos…
Esse premiado anúncio (via Gawker) da agência de publicidade milanesa Saatchi & Saatchi para uma liquidação da rede de livrarias Mondadori – tudo com 30% de desconto, claro – é a prova de que as campanhas de “incentivo à leitura” não precisariam ser a chatice que são.
Como Drummond mirando com perplexidade as pernas dos transeuntes, qualquer um que acompanhe de perto o volume de lançamentos editoriais tem vontade de gritar de vez em quando: “Para que tanto livro, meu Deus?”. Às vezes – nem sempre – é possível surfar a avalanche no contrafluxo e recuperar novidades de ontem ou anteontem. Nos últimos meses, dois lançamentos nacionais que passaram em branco por aqui, e pela maior parte da imprensa cultural, ficam ao mesmo tempo acima – na qualidade literária – e abaixo – no marketing literário – da média dos dias que correm. Em outras palavras, são boas dicas de leitura. “A solidão do Diabo”, de Paulo Bentancur (Bertrand Brasil, 352 páginas, R$ 45), é uma alentada coletânea de 59 contos – necessariamente desiguais, dada a quantidade – que, no entanto, encontram sua unidade no difícil artesanato de uma linguagem madura, econômica, reminiscente do bom conto brasileiro dos anos 60 e 70. A originalidade do livro aparece quando essa simplicidade enganadora, sugestiva de penosos trabalhos de reescritura que infelizmente andam fora de moda, é posta a serviço de uma liberdade narrativa de um tipo difícil de encontrar na literatura contemporânea – um tipo capaz de enfileirar no…
Metade da Turquia comemorou o Nobel de Orhan Pamuk, enquanto a outra metade ficou arrasada com a consagração internacional de um sujeito que é considerado traidor da pátria – leia mais sobre as reações, em inglês, aqui. Parece saído de um livro de Pamuk esse embate de consciências irreconciliáveis num país que, até por razões geográficas, para não mencionar as históricas, se estica sobre o abismo entre Ocidente e Oriente. O problema – para todo mundo, claro, mas primeiro e principalmente para quem tem um pé de cada lado – é que o abismo está se alargando nestes nossos “tempos catastróficos”, como anotou Margaret Atwood num emocionado artigo para o jornal inglês “The Guardian”. A escritora canadense afirma não conceber hoje, por essa razão, um Nobel de literatura mais importante do que Orhan Pamuk. Tudo isso me fez pensar na recente polêmica provocada por um acadêmico iraniano radicado nos EUA, Hamid Dabashi, professor de literatura da Universidade de Colúmbia, ao atacar com violência a escritora Azar Nafisi, autora do best-seller “Lendo Lolita em Teerã” (editora Girafa, 2004). O livro trata, a seu modo, do mesmo choque cultural que alimenta a obra de Pamuk. Escreveu Dabashi: “Lendo Lolita em Teerã” é…