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Começos inesquecíveis: Will Self
Posts / 11/03/2007

Bull, um rapaz encorpado e musculoso, acordou certa manhã e não levou muito tempo para se dar conta de que, enquanto dormia, adquirira uma outra característica sexual primária: a saber, uma vagina. A vagina brotara atrás de seu joelho esquerdo, dentro da covinha macia e flexível localizada no ponto onde terminam os tendões. É quase certo que Bull não a perceberia tão cedo, não tivesse ele como prioridade, logo ao despertar, o hábito de se inspecionar, explorando cuidadosamente todas as suas curvas e fendas. Qualquer semelhança com Kafka não é coincidência. Nem plágio. Este é o início do primeiro capítulo, chamado justamente A metamorfose, da novela “Bull, uma farsa”, que compõe com “Cock, uma noveleta” o livro “Cock & Bull – Histórias para boi dormir”, do escritor inglês Will Self (Geração Editorial, tradução de Hamilton dos Santos, 2a. edição, 2002). Em “Cock”, em perfeita simetria, é a protagonista que um belo dia descobre entre as pernas um recém-brotado pau. Satirista feroz e, nos melhores momentos, brilhante em sua mistura de erudição, grosseria e delírio pop, Self, de 45 anos, é um autor bem estabelecido na literatura britânica, mas nunca deu certo no Brasil. Não por falta de tentativas. Além deste…

J.M. Coetzee, um gigante na Flip
Posts / 10/03/2007

O sul-africano J.M. Coetzee, autor da obra-prima “Desonra” (Companhia das Letras), duas vezes ganhador do Booker e prêmio Nobel de literatura de 2003, disse sim aos organizadores da Festa Literária Internacional de Parati (Flip). Será o grande nome do evento. John Maxwell Coetzee, 67 anos completados mês passado, andou freqüentando recentemente o Todoprosa: as notas de 23/2, sobre seu último romance, inédito no Brasil, e 3/3, sobre “Desonra”, ainda estão no ar aí embaixo. Recomendo conferir também seu discurso de aceitação do Nobel, traduzido e publicado por NoMínimo em dezembro de 2003, aqui. Trata-se de uma bela e meio enigmática declaração de amor à literatura, de alta voltagem poética e protagonizada por ninguém menos que Robinson Crusoé. Nascido na Cidade do Cabo e desde 2002 vivendo em Adelaide, na Austrália, Coetzee fez carreira como professor universitário de literatura e vai falar em Parati sobre Samuel Beckett, uma de suas admirações. Além de “Desonra”, um retrato perturbador das feridas sociais sul-africanas que o fim do apartheid não curou, vários de seus livros foram lançados no Brasil: “Elizabeth Costello”, “Vida e época de Michael K.”, “Juventude”, “À espera dos bárbaros”, “A vida dos animais” e “O mestre de São Petersburgo”, todos da…

Somos todos realistas?
Posts / 08/03/2007

A respeitada revista literária “The Believer”, de São Francisco, publica uma tabela universal das escolas literárias desde o realismo do século XIX até hoje (abaixo, clique para ampliar). Parte de um postulado polêmico do ficcionista americano Donald Barthelme (“Creio que todos somos realistas. Não temos outra possibilidade”) para – nas palavras do autor da coisa, Greg Larson – “explorar esse paradoxo”. O rebuscado quadro que Larson nos oferece imagina a literatura ocidental como um único tronco realista com vários galhos. Os nomes cômicos de algumas categorias, como realismo dipsomaníaco (Bukowski) e pós-mortal (Beckett), sugerem que tudo não passa mesmo de uma piada superelaborada. Será? Confesso que fiquei em dúvida. Para ser uma piada completa falta, como direi, graça. E se houver um tiquinho de seriedade no quadro da “Believer”, uma gota que seja, então estamos diante de mais uma prova grotesca da insuficiência dos esquemas totalizantes de pensamento. De uma forma ou de outra, vale como curiosidade. [Via Jean-François Fogel, de El Boomeran(g)]

O outono do patriarca
Posts / 07/03/2007

Normalmente, o Todoprosa não gosta muito de aniversários e outras efemérides, preferindo pretextos jornalísticos menos – por definição – previsíveis. Isso é o normal, mas convenhamos que a palavra “normal” não combina com o colombiano Gabriel García Márquez, que ontem virou oitentão. E vem mais por aí: este ano comemoram-se ainda os 40 anos de “Cem anos de solidão” e os 25 anos de seu prêmio Nobel. Três datas, três links: Aqui, uma simpática galeria do jornal espanhol “El País” mistura fotos antigas e recentes para contar um pouco da vida do escritor. Em inglês, o pungente relato de Simon Romero, correspondente do “New York Times”, sobre as comemorações de ontem na pequena Aracataca, a decadente cidade natal de Gabo e modelo de sua Macondo mítica. A cidadezinha organizou uma parada militar (!), uma missa e uma queima de fogos à espera do homem, que, dizia-se, apareceria a qualquer momento. Apareceu nada: comemorou o aniversário em casa, na Cidade do México. Finalmente, em espanhol, este artigo do escritor argentino Marcelo Figueras, do blog Boomeran(g), tenta relativizar a distância irônica que mantêm do legado gigantesco de García Márquez as novas gerações de autores latino-americanos de língua espanhola.

Kundera e a cilada do Machado anônimo
Posts / 06/03/2007

Uma das armadilhas favoritas do antiintelectualismo – doença crônica da nossa cultura; a outra é o intelectualismo – foi reeditada pela “Folha de S. Paulo” alguns anos atrás, ao submeter anonimamente às principais editoras do país um conto de Machado de Assis como se fosse de um autor inédito em busca de publicação. Tempos depois o repórter recebeu, previsivelmente, algumas cartas de recusa e – oba, escândalo! – uma coleção de silêncios glaciais. Ahá. Quer dizer que nosso sistema de avaliação de mérito literário está montado sobre pressupostos hipócritas? Então o grande Machado de Assis, despido de seu nomão, vale tanto quanto um pobre coitado qualquer? Tinham razão os Titãs quando cantavam que “ninguém sabe nada”? Blá, blá, blá. Bem, os Titãs sempre têm alguma razão. Que uma dose de hipocrisia entra nesse jogo, não dá para negar. O problema é que o truque que supostamente a denunciaria não denunciava nada. Graça jornalística à parte, a armadilha usada pela “Folha” era desonesta, mais afeita à mistificação do que à desmistificação que fingia abraçar, como uma seqüência de dribles para o lado no meio-de-campo. Por quê? Simples: porque qualquer autor que escrevesse hoje, vírgula por vírgula, como Machado de Assis –…

Com a palavra, os escritores cubanos
Posts / 04/03/2007

Medo do futuro? Imagine! Creio que dificilmente ficaremos em situação pior do que já estivemos. Só pode ser pior uma guerra, e não creio que isso ocorra de jeito nenhum. Seria bom haver uma transição, e que ela se desse com a menor violência possível. Me eduquei na escola comunista, me pintaram um futuro soviético maravilhoso e aí está o que aconteceu. Este país está esgotado e cansado, está apodrecido, esta é a palavra. Quando ouço intelectuais daqui ou de fora falarem da revolução cubana, não sei do que estão falando. Nasci em 1972 e conheci a era soviética e a queda do muro de Berlim. Em Cuba houve um pouquinho de abertura em matéria de direitos civis e um grande desastre econômico. Mas para mim isto aqui é uma ditadura estabelecida e agonizante, não vejo nada de revolução nisso. O “Babelia”, suplemento literário do jornal espanhol El Pais, um dos melhores do mundo no gênero, foi à Feira do Livro de Havana ouvir escritores cubanos sobre o clima na ilha neste momento de indefinição, expectativa, medo e algum otimismo inaugurado pela doença de Fidel Castro. O depoimento acima, de Ena Lucía Portela, considerada uma das grandes revelações da ficção…

Começos inesquecíveis: J.M. Coetzee
Posts / 03/03/2007

Para um homem de sua idade, cinqüenta e dois, divorciado, ele tinha, em sua opinião, resolvido muito bem o problema de sexo. Nas tardes de quinta-feira, vai de carro até Green Point. Pontualmente às duas da tarde, toca a campainha da portaria do edifício Windsor Mansions, diz seu nome e entra. Soraya está esperando na porta do 113. Ele vai direto até o quarto, que cheira bem e tem luz suave, e tira a roupa. Soraya surge do banheiro, despe o roupão, escorrega para a cama ao lado dele. “Sentiu saudade de mim?”, ela pergunta. “Sinto saudade o tempo todo”, ele responde. Acaricia seu corpo marrom cor-de-mel, sem marcas de sol, deita-a, beija-lhe os seios, fazem amor. E já que andamos falando do homem, vai aí o começo do tétrico romance “Desonra”, obra-prima do escritor sul-africano J.M. Coetzee (Companhia das Letras, 2a. edição, 2003, tradução de José Rubens Siqueira). O professor universitário David Lurie, personagem solitário, orgulhoso e triste, logo vai descobrir – a um preço alto – que não resolveu tão bem quanto imaginava “o problema de sexo”.

Quem não pode faltar na Flip?
Posts / 02/03/2007

Não tenho procuração do novo diretor de programação da Festa Literária Internacional de Parati, meu vizinho Cassiano Elek Machado, para fazer esta consulta, mas é melhor assim. A montagem daquele elenco é um exercício de vida real sujeito a tantas limitações e percalços (o único nome já confirmado oficialmente é o de Dennis Lehane, autor de “Sobre meninos e lobos”) que, para quem tem esse privilégio, ficar no terreno do desejo puro vale mais a pena. Sendo assim: Que escritores de ficção – brasileiro e estrangeiro – você gostaria de ver tropeçando naquele calçamento absurdo dentro de quatro meses, de 4 a 8 de julho? Um breve histórico de ausências e presenças pode ajudar na escolha – afinal, só vale sugerir quem ainda não passou por lá. João Ubaldo Ribeiro ia, mas desistiu na última hora. Carlos Heitor Cony, por problemas de saúde, também. Rubem Fonseca não costuma ir a lugar nenhum – isto é, em território nacional. Raduan Nassar e Dalton Trevisan, menos ainda. Luis Fernando Verissimo foi, mas um problema de família o obrigou a sair antes da hora. Philip Roth nunca encontra espaço na “agenda”, que é basicamente caseira. J.M. Coetzee mora do outro lado do mundo…