Cansado de experiências de criação literária online? Eu também, um pouco, mas isso não quer dizer que não haja formatos novos por descobrir. Um dos mais curiosos estreou esta semana: o site Estrangeiros, uma idéia da escritora brasileira Daniela Abade, reúne sete autores – além da própria Daniela, a argentina Florencia Abbate, a austríaca Claudia Chibici-Revneanu, o italiano Max Mauro, o canadense David McGuire, o australiano Matt Rubinstein e o mexicano Gonzalo Soltero. Em cinco idiomas, cada um com o seu, e sem tradução, eles escrevem posts fictícios sobre cidades situadas no país de um dos colegas. Cidades que nunca visitaram. Daniela, autora do romance “Crônicos” (Agir), tem experiência nesse tipo de invenção. Ficamos amigos em 2004, durante a ambiciosa, divertida (para nós com certeza, mas acho que também para os leitores que entraram no clima) e absurda Cadeia de Palavras.
Para não mudar de assunto, aí vai o pequeno texto que escrevi para o belo livro de arte “O futuro do livro – sessenta visões”, que comemora os 60 anos da Ipsis Gráfica e Editora e que está sendo lançado hoje em São Paulo. Os exercícios de futurologia feitos por nomes como Milton Hatoum, Luis Fernando Verissimo, Marçal Aquino, Muniz Sodré, José Mindlin, Ziraldo, Gilberto Gil e Heloísa Buarque de Hollanda, para citar uma pequena fração da turma de convidados, acabam montando um painel de pontos de vista que faz justiça à polêmica suscitada pela nota aí embaixo. Quem, depois daquele post, quiser ler a seguinte historinha como uma prova de minha irremediável indecisão diante do tema, pode. O argumento é de ficção científica, mas não inverossímil: certo dia, um Grande Pulso Eletromagnético varre a Terra. Vem do espaço, o Pulsão, como logo fica conhecido, talvez provocado por algum evento cósmico de escala inconcebível como o espirro de uma estrela mil vezes maior que o Sol – jamais teremos certeza. Uma das razões pelas quais jamais teremos certeza é que o Pulsão, ao lamber nosso planeta e seguir viagem infinito adentro, apaga num segundo toda a memória digital acumulada pela…
Que editores e livreiros percam o sono, é compreensível. Mais difícil é entender o nervosismo que domina o debate entre simples leitores sobre “o fim do livro impresso”. O clima costuma ficar tenso dos dois lados da linha que, numa simplificação caricatural, divide a humanidade entre os deslumbrados da eletrônica e os luditas de Gutenberg. Embora seja cedo para dizer se a engenhoca chamada Kindle será mesmo um marco na história da leitura, é certo que o livro impresso em papel, um achado tão genial que há cinco séculos se mantém inalterado na essência, está à espera de seu próprio iPod. Encontrado um suporte prático e popular, a leitura mergulhará numa era inevitável: a da transferência de bibliotecas inteiras para discos minúsculos. Questão de tempo – as vantagens são grandes demais. Isso não quer dizer que o livro como o conhecemos vá desaparecer. Na pior das hipóteses, deve ter sobrevivência garantida como objeto fetichista de consumo sofisticado, convivendo com os Kindles da vida pelos próximos séculos. Para desfazer um equívoco comum nessa discussão – o de que a era eletrônica decretará o fim da própria idéia de “livro” – a história da palavra é instrutiva. “Livro” vem do latim liber,…
O lançamento do livro de memórias “Pugnus” faz do professor Cecilio Giovenazzi, 78 anos, renomado latinista da Unicamp, nada menos que “o maior memorialista do onanismo no Ocidente”, nas palavras do crítico Teodoro Spitz: Dono de uma memória digna de desafiar a do caipira de Borges, e com a vantagem de borrifar perfeitas citações em latim pelo caminho, esse escritor profundamente original nos brinda com relatos épicos de uma vida dedicada ao squirt-n-spurt. Tão ricos são os episódios em detalhe, circunstância, iluminação, grau de intumescimento, têm as cenas um tal rendilhado de sentimentos e sensações que fazem empalidecer, por infantil ou tosco, o mais impudente cronista de bacanal. Na multiplicidade de sessões febris ambientadas em banheiros, cozinhas, salas de estar, cabines telefônicas, elevadores, escadas de serviço, confessionários – ou mesmo, temerariamente, ao ar livre, em praças, parques, piscinas, terrenos baldios, ruas desertas de madrugada, no meio da multidão –, o que em todos esses cenários se conta é uma bela história de amor-próprio. Os jorros reflexivos de Giovenazzi atingem insuspeitada altitude filosófica. “Então me digam que metáfora do solitário, pungente, imaginoso ofício de escrever pode, nesta vida cachorra, superar o velho manutigium?”, perora o autor. Um livro seminal. De Spitz…
Terminei de ler “As Benevolentes” (Alfaguara, tradução de André Telles, 912 páginas, R$ 79,90) no sábado, mas até agora há pouco, como uma jibóia que tivesse engolido um boi, fui incapaz de escrever uma única linha sobre o tijolaço de Jonathan Littell. Impossível negar que se trata de um grande livro, um livro perturbador e sobretudo relevante – talvez o adjetivo mais caro que a prosa de ficção, empurrada a contragosto para uma zona de frivolidade, possa almejar hoje em dia. Como sempre, destrinchar por que é assim será tarefa mais difícil do que simplesmente enunciá-lo. Tão difícil quanto compreender por que, com tanto a seu favor, o romance atola antes de se tornar uma obra-prima. O narrador Maximilien Aue, oficial SS que participa de momentos cruciais do extermínio de judeus na Segunda Guerra Mundial, não cabe no figurino arendtiano da “banalidade do mal” (aliás, segundo ele mesmo, tampouco Adolf Eichmann, personagem importante do livro – mas essa é outra história). Nem tão eficiente como funcionário, embora cheio de fé nacional-socialista, também não parece que precisasse do empurrãozinho do regime nazista para acabar comprando um camarote no Inferno. Aue não é um homem comum, o pacato pai de família que,…
“Tupi or not Tupi, that is the question.” A provocação lançada pelo escritor modernista Oswald de Andrade em seu “Manifesto antropófago”, de 1928 – uma brincadeira com o “ser ou não ser” de Hamlet – tem ressonâncias profundas na história do Brasil. Mais profundas do que podem parecer neste início de milênio em que Tupi, para a maioria dos brasileiros, é pouco mais que o nome indígena de um campo da Petrobras na Bacia de Santos, onde foram encontradas reservas que podem transformar o Brasil em exportador de petróleo. As reservas vocabulares deixadas pelo tupi no português brasileiro também são vastas, estimadas em torno de dez mil palavras. O tronco tupi compreende dez famílias lingüísticas que ainda sobrevivem espalhadas pela América do Sul, com maior concentração no Brasil. Durante os primeiros séculos da colonização portuguesa, porém, sua vitalidade impressionava. Na vertente tupinambá, da família tupi-guarani (da qual se tornaria uma palavra sinônima), o tupi teve sua gramática sistematizada pelos jesuítas. Depois de incorporar traços da cultura invasora, deu origem às “línguas gerais”, as mais faladas no dia-a-dia da colônia: a paulista, disseminada pelos bandeirantes, e a amazônica, também chamada nheengatu (“língua boa”) ou tupi moderno. As línguas gerais foram declaradas…
Na linguagem comum, as palavras “referendo” e “plebiscito” são sinônimos, mas há uma diferença nem tão sutil entre essses dois instrumentos da chamada democracia direta. Segundo a legislação brasileira, no plebiscito submete-se ao voto popular uma questão antes que ela ganhe forma de lei, ou seja, “com anterioridade a ato legislativo ou administrativo”. Exemplo: a votação sobre o sistema de governo brasileiro prevista pela Constituição de 1988, realizada em 1993 e vencida pela república presidencialista, foi um plebiscito. No referendo, ao contrário, a consulta se dá após a tramitação de uma matéria, como última instância. Dessa forma, uma decisão prévia pode ser ratificada ou rejeitada na íntegra ou em parte. Como ocorreu na consulta popular de 2005, em que a população repeliu o artigo do Estatuto do Desarmamento, aprovado pelo Congresso, que proibia a comercialização de armas de fogo. Essa distinção não é suficiente para eliminar o fato de que nunca foi pacífico o que diferencia um plebiscito de um referendo, mas ajuda a entender por que vem sendo chamada preferencialmente de referendo a consulta à população venezuelana sobre as mudanças constitucionais talhadas para dar superpoderes ao presidente Hugo Chávez. Ainda assim, o parentesco profundo entre as duas palavras fica…
Começou muito bem a semana: o Flamengo em terceiro lugar no Brasileirão e “As sementes de Flowerville” nas semifinais da Copa de Literatura Brasileira.
Norman Mailer morreu hoje, de falência renal, aos 84 anos. “Se ele nunca chegou a conseguir produzir o que chamava de ‘o livrão’ – o Grande Romance Americano – não foi por falta de tentativas”, anota o obituário do New York Times (em inglês, mediante cadastro gratuito).
Entrevistando Luis Fernando Verissimo ao lado de Valéria Lamego num dos encontros do Circuito Cultural Banco do Brasil, quarta-feira à noite, no belo centro de artes Dragão do Mar, em Fortaleza, arranquei do homem um pequeno furo de reportagem que, tendo escapado ao faro da imprensa cearense, destaco aqui para que não se perca: aos 71 anos, com três milhões de exemplares vendidos de meia centena de títulos, Verissimo está escrevendo seu primeiro romance espontâneo. Convém explicar: até hoje, o maior cronista brasileiro vivo lançou cinco narrativas longas, entre a novela e o romance. O primeiro desses livros – e para mim o melhor – é “O jardim do diabo”, de 1988, comentado aqui no blog. O último, “A décima segunda noite”, do ano passado – idem. A faixa de qualidade desses exercícios, todos com um pé na literatura policial e o outro num certo jogo intertextual brincalhão, vai do brilhante ao no mínimo divertido. Mas todos nasceram de encomendas – o primeiro da agência de publicidade MPM, os demais de editoras. É a primeira vez que Verissimo se dedica ao gênero sem ser, digamos, coagido. Para quem costuma dizer que não é bem um escritor, que prefere desenhar e…
Entre todas as histórias possíveis, certamente já terá acontecido alguma como esta. Um rapaz de dezessete anos, viciado em drogas (já chegou a roubar e prostituir-se para comprá-las) e com pretensões rimbaudianas a poeta maldito, tem um ciúme doentio da mãe divorciada, principalmente de um caso que ele desconfia que ela mantém com um homem muito mais jovem. Uma noite, a vê chegar em casa parecendo ligeiramente alegre de bebida, e com ares de quem veio de um encontro amoroso, usando uma blusa decotada e saia justa. Enquanto ela se despe em seu quarto, ele ali entra, abruptamente, vestido apenas com uma bermuda, e observa o sutiã vermelho e a calcinha preta que ela usa. – Isso é roupa de vagabunda. – Não fala assim da sua mãe. Ele puxa o corpo dela para si e o aperta: – Quem sabe você faz comigo também? E já que a seção entrou definitivamente na era do conto, aí vai o início do espantoso Um conto nefando?, um dos mais surpreendentes do excelente “O vôo da madrugada” (Companhia das Letras, 2003), de Sérgio Sant’Anna.
O futebol internacional se profissionalizou de tal forma que a segunda Copa do Mundo que o Brasil sediará, em 2014, deve ter pouco em comum com a primeira, de 1950, vencida pelo Uruguai – principalmente no resultado da final, espera-se. Entre essas diferenças, uma das mais curiosas está à vista de todos: se naquele tempo a Copa era uma copa propriamente dita, em 2014 não será mais. Convém explicar. Como anda na moda em certos círculos agarrar palavras pelo pé da letra, pregando-se a substituição de expressões legítimas como “risco de vida” (por risco de morte) e “greve de fome” (por greve de comida), é de admirar que ainda não tenham disparado o alarme: no reino do literalismo, faz tempo que a Copa do Mundo é uma ficção. De fato, Copa-copa era no tempo da Jules Rimet, quando a taça tinha a forma de uma taça, na qual se podia até beber champanhe. E bebeu-se mesmo: na comemoração do título de 1958 na Suécia, a Jules Rimet passou de boca em boca. Quem recorda é Pelé no livro que lançou ano passado (“Pelé, a autobiografia”, editora Sextante). Acrescenta que limitou-se a assistir: aos 17 anos, estava abaixo da idade legal…
No recém-lançado “Vira e mexe, nacionalismo” (Companhia das Letras, 248 páginas, R$ 45,50), a melhor coleção de ensaios literários brasileiros que leio em muito tempo, Leyla Perrone-Moisés reflete a certa altura sobre a curiosa semelhança, quase ponto a ponto, entre os argumentos de Machado de Assis e Jorge Luis Borges em seus textos teóricos sobre (e contra) o nacionalismo literário – respectivamente, “Instinto de nacionalidade” (1873) e “El escritor argentino y la tradición” (1956). Não à toa, os dois universais escritores latino-americanos são também os mais universalistas (“devemos pensar que nosso patrimônio é o universo”, escreveu Borges) e sofreram, ambos, ataques pesados por uma suposta deficiência de “cor local”. Escreve Leyla Perrone-Moisés: Tanto Machado de Assis como Borges são demasiadamente lúcidos para aceitar a nacionalidade como uma essência ontológica. Perfilado por detrás da persona do Conselheiro Aires, tão finório quanto este, o romancista brasileiro encara o problema com ironia (…) Ambos os escritores são finos cultores da ironia, justamente aquela que falta aos nacionalistas; uma falta de ironia decorrente de sua incapacidade de distanciamento e de seu apego a uma mitologia metafísica que conduz à guerra, ou simplesmente ao ridículo. Num momento em que as metrópoles culturais renovam pela cartilha…