Os Jogos Olímpicos de 2008 serão disputados em Pequim ou em Beijing? Esta promete ser a questão lingüística mais candente do ano que vai começar. Como no caso Birmânia/Mianmar, já abordado aqui, um lado acusa o outro de estar “errado”, mas pouca gente sabe por que pensa assim. Não cabe falar em “erro”, mas em opção. A minha é pela forma consagrada em português há séculos – Pequim. A semelhança com a polêmica birmanesa é superficial. Para que Pequim se visse transmudado em Beijing (e Cantão em Guangzhou, Hong-Kong em Xianggang etc.), não houve a criação de um novo nome. Deu-se apenas, em 1979, a adoção pela República Popular da China – mas não por Taiwan (Formosa) – de um novo sistema de romanização, ou seja, de transliteração do mandarim para o alfabeto latino: o sistema Pinyin. A intenção era boa: acabar com a sopa de letrinhas que corria o mundo. Muitos sistemas vigoraram ao longo da história. O mais influente foi o de Wade-Giles, criado no século 19 e dedicado à anglicização, à adaptação para o inglês, que deu em Peking. (O português nada deve a ele. Pequim já era Pequim desde as grandes navegações.) Ocorre que país algum…
“Estes são os autores americanos mais importantes de todos os tempos”, proclamou há alguns Natais a revista francesa Lire: “Raymond Chandler, Faulkner, John Fante”. Há poucas semanas, Michel Tournier (que não tinha até agora reputação de idiota) elegeu como livro do ano em The Times Literary Supplement o novo romance de Amèlie Nothomb, Ni d’Eve ni d’Adam, que já havia proposto, naturalmente sem sucesso, para o Prêmio Goncourt. Em certo jornal italiano, um célebre crítico de cujo nome não quero me lembrar coroou como melhor livro de 2007 a obra completa de Dario Fo, “o Shakespeare do século 20”, juízo que, se exato, faria de Shakespeare o Dario Fo do século 17. “Sobre gostos não há nada escrito”, escreveu alguém que nunca abriu um suplemento literário. Oscar Wilde argumentou que fazer listas do que se deve ler é uma tarefa inútil ou perniciosa, uma vez que um autêntico apreço pela literatura é sempre questão de temperamento e não pode ser ensinado. Propôs, em vez disso, listas do que não se deve ler: as obras teatrais de Voltaire, a Inglaterra de Hume, a História da filosofia de Lewes… Seguindo seu exemplo, Mark Twain opinou que a melhor forma de começar uma…
Flowerville é um condomínio de luxo, com arquitetura e infra-estrutura modernas, mas comandado por senhor que age como um grande patriarca, um caudilho. O empreendimento só foi possível por causa de uma escusa troca de favores feita durante o governo militar, lembrando de como o capital no Brasil esteve vezes demais ligado ao Estado. Essa mistura de moderno e antigo integra toda a narrativa e, apesar do esforço da cúpula de Flowerville em continuar “saltando à frente” e ignorar os problemas ainda abertos, é o passado que ditará os rumos do enredo. A epígrafe do livro sobre a “máscara de puro sonho” é tirada da série de quadrinhos Sandman, de Neil Gaiman. Mais do que uma citação, a referência simultânea aos quadrinhos e ao universo onírico é incorporada profundamente na linguagem e na história. O grotesco e o absurdo não aparecem como uma exceção, mas como parte do modus operandi de Flowerville. Mais uma vez, tal como a mistura do moderno e arcaico, essa é uma abordagem que serve muito bem para o Brasil em geral, um lugar em que, hora ou outra, recebem-se notícias como uma adolescente encarcerada com homens. Enfim, o absurdo é produto da nossa “maquinaria nacional”,…
Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Ano passado, o conto natalino do blog foi o insuperável “Natal na barca”, de Lygia Fagundes Telles – quem perdeu pode clicar aqui. Este ano é a vez de O peru de Natal, de Mario de Andrade, que já seria ótimo se não tivesse nada além da frase acima.
Da novela que estorricou o ex-presidente da casa, Renan Calheiros, à que terminou com a derrota do governo na votação da CPMF, a sombra do Senado estende-se, comprida, sobre o ano de 2007. A palavra é derivada do latim senatus, “conselho de anciãos”, o que torna o Senado parente de vocábulos respeitáveis como senhor e sênior, mas também de termos menos lisonjeiros, como senectude e senilidade. O Senado brasileiro comemorou 180 anos em 2006. A origem da idéia de que os idosos, mais sábios, são indicados para guiar a coletividade perde-se no passado. Rafael Bluteau, patrono dos dicionaristas da língua portuguesa, registrou no início do século 18 que “os egípcios e os persas, à imitação dos hebreus, compuseram o seu Senado de homens velhos, e os lacedemônios e cartaginenses observaram esta circunstância tão rigorosamente que, entre eles, para chegar a ser senador, era preciso ter chegado aos sessenta anos de idade”. (Talvez fosse uma boa idéia, não? Renan, que em setembro fez 52 anos, nem teria pisado naquele carpete azul. Brincadeiras à parte, o “conselho de anciãos” ficou no passado: no Brasil, a idade mínima para que alguém se candidate ao Senado é de 35 anos, enquanto para a Câmara…
Prólogo: peço desculpas se esta nota vem meio em cima do laço, mas, caso seja tarde para municiar as compras de Natal, acredito que pelo menos as listas de livros para as férias ainda estejam, no geral, abertas à negociação. Não sei se os seis romances abaixo são “os melhores do ano” – existirão mesmo tais coisas? Só posso garantir que são, em minha imodesta opinião, os melhores que li e comentei no blog. Nessa retrospectiva 2007 garimpada nos arquivos do Todoprosa, basta clicar no título para ler uma pequena resenha, publicada aqui na época do lançamento, além de, na maioria dos casos, um trecho da obra. O filho eterno, de Cristovão Tezza. Na praia, de Ian McEwan. As Benevolentes, de Jonathan Littell. A cada um o seu, de Leonardo Sciascia. O sol se põe em São Paulo, de Bernardo Carvalho. Arthur & George, de Julian Barnes.
Não há razão alguma para pensarmos que a leitura e a escrita estão à beira da extinção, mas alguns sociólogos especulam que ler livros por prazer será um dia o território de uma “classe leitora” especial, em grande medida como ocorria antes do advento do letramento em massa, na segunda metade do século XIX. Mas, eles advertem, a leitura provavelmente não mais recuperará o prestígio que vinha com a exclusividade; poderá acabar se tornando “um passatempo cada vez mais esotérico”. … Numa visão mais ampla, não é o abandono da leitura que precisa ser explicado, e sim o fato de que sejamos sequer capazes de ler. “O ato de ler não é natural”, Maryanne Wolf escreve em “Proust and the Squid” [“Proust e a Lula”, atenção para o artigo feminino], um relato sobre a história e a biologia da leitura. Amantes da leitura que tenham problemas cardíacos ou qualquer tipo de hipersensibilidade nervosa devem evitar este artigo (em inglês, acesso gratuito) de Caleb Crain na revista “New Yorker”, a propósito de um livro sobre a história da leitura. Não pela platitude de que “o ato de ler não é natural” (o mesmo pode ser dito de escovar os dentes, usar…
A palavra “greve”, aquilo que o bispo Luiz Flávio Cappio voltou a fazer, vem – como tantas inconveniências, diria um ultraconservador – do francês. Sua história começa no século 12 com o vocábulo grève, “praia, terreno de areia ou cascalho à beira-mar ou beira-rio”. Antes de adquirir seu sentido político, a palavra passou a batizar uma praça de Paris, à beira do Sena, que por ter piso arenoso e sem calçamento era chamada de Place de Grève (hoje Place de l’Hôtel-de-Ville). Segundo o Houaiss, o local era “ponto de reunião de trabalhadores e operários sem emprego ou descontentes com as suas condições de trabalho; daí a expressão faire grève (1805)” – isto é, “fazer greve”, já então com o sentido de interromper coletivamente o trabalho como forma de protesto ou reivindicação, que mais tarde seria ampliado para outras modalidades de recusa, entre elas a greve de fome. E por que os trabalhadores se reuniam naquela praça? Explica Márcio Bueno, autor do bom livrinho “A origem curiosa das palavras” (José Olympio): “Nesse local funcionou durante muito tempo a Bolsa do Trabalho, órgão encarregado de cadastrar desempregados”. O primeiro registro de “greve” em português é de 1873, mas até as primeiras décadas…
Ao trazer o mineiro Luiz Vilela no entrevistão do Paiol Literário e o gaúcho Sergio Faraco na seção Dom Casmurro, com a íntegra do conto “O céu não é tão longe”, a edição de dezembro do “Rascunho” junta dois dos maiores contistas brasileiros vivos. Ambos são leitura mais recomendável que nunca neste momento de vale-tudo estético e inflação contística galopante, em que qualquer texto cotó vem tirando onda de “conto”. Nenhuma palavra dos editores indica que, ao juntar os dois mestres, o jornal curitibano quis fazer uma homenagem a essa brilhante geração de contadores de histórias – Faraco nascido em 1940, Vilela em 1942. Mas fez, e isso basta.
Foi no verão de 1994, já faz agora mais de seis anos, que ouvi falar pela primeira vez do fuzilamento de Rafael Sánchez Mazas. Três importantes acontecimentos tinham então acabado de se produzir em minha vida: meu pai havia morrido, minha mulher me abandonara e eu abandonara minha carreira de escritor. Minto. Dessas três ocorrências, as duas primeiras eram exatas, exatíssimas; a terceira não era tanto assim. Na verdade, minha carreira de escritor nunca decolou; portanto, dificilmente poderia tê-la abandonado. Grande parte do apelo do romance “Soldados de Salamina”, sucesso internacional do espanhol Javier Cercas (Francis, 2002, tradução de Wagner Carelli), está no seu jeito – despretensioso só na aparência – de alternar constantemente o foco entre a História (mundial) e uma história (pessoal). O efeito ganha profundidade ao longo de 240 páginas, com outro par de opostos – realidade e ficção – para complicar. As primeiras linhas do livro expõem todo o projeto como miniatura.
Apesar dos gráficos que lhe dão um ar intimidador, o futurismo é uma ciência tão inexata em matéria econômica quanto no futebol. Sim, o dólar pode estar se aproximando do fim de seu ciclo como âncora cambial da economia mundial, mas também pode estar atravessando uma turbulência passageira. Quem sabe? O mergulho na origem da palavra revela pelo menos uma verdade: também do ponto de vista lingüístico, nada é eterno, tudo tem começo e – naturalmente – fim. Sinônimo universal de dinheiro para várias gerações, moeda mitológica que, sobretudo desde o fim da Segunda Guerra Mundial, está na base das relações de amor e ódio travadas entre o império americano e o restante do mundo, o dólar dos EUA inspirou o batismo da moeda de uma penca de países, da Austrália ao Zimbábue. Diante de tal exuberância, é fácil esquecer que há mais de dois séculos ele nasceu humilde, da costela de outra unidade monetária. O ancestral mais antigo de dollar é o alemão taler, moeda cunhada com prata das minas da cidade denominada Vale de São Joaquim, na região da Boêmia, a partir do início do século 16. Hoje a cidade fica na República Tcheca e se chama Jáchymov,…
Quem não gosta de João Stepanides é um jumento. Quem leva Manoel Tibúrcio a sério é uma anta. Quem nunca leu Carmen Clara é uma ameba lobotomizada. Quem não gosta de Manoel Tibúrcio sabe menos que a idiota da Carmen Clara. Quem leva João Stepanides a sério não vale o que come. Tibúrcio leva Stepanides a sério, logo merece morte lenta e excruciante. Stepanides não tem o menor respeito por Tibúrcio, mas comeu Carmen Clara. (E quem não?) Nenhum dos animais acima mencionados chega aos pés de Bill Chakapov.
A primeira edição da Copa de Literatura Brasileira terminou hoje com a vitória de “Música perdida”, de Assis Brasil, sobre “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, por 9 x 5 – placar de futebol de areia. É que, pelas regras da final, todos os jurados das rodadas anteriores têm direito a voto. Confiram lá. Entre os muitos temas de discussão que a brincadeira deixa no ar, um dos mais interessantes é esta (aparente) contradição: a vitória de um romance clássico, para muita gente até conservador (não o li), numa competição off-off organizada por jovens blogueiros. Será que daqui a pouco surgirão teorias sobre os romances “copeiros”, aqueles que por terem uma personalidade menos agressiva, menos crivada de arestas, acabam se dando bem numa competição mata-mata? Quaisquer que sejam as conversas que a Copa já inspirou e ainda vai inspirar, das mais relevantes às mais tolinhas, não tenho dúvida de que estamos diante de uma das melhores notícias surgidas ultimamente no front sonolento do debate literário brasileiro. Vida longa a ela.