Mas se toda a obra de Steinbeck está em catálogo quarenta anos depois de sua morte (em 1968), e apesar da dieta forçada de seus livros imposta a centenas de milhares de estudantes – e da canonização oficial pela Library of America –, por que será que ele está tão decisivamente excluído do mapa literário? Além de Brad Leithauser, que em 1989 publicou uma perspicaz homenagem ao qüinquagésimo aniversário de “As vinhas da ira”, quem nos Estados Unidos o leva a sério hoje, com exceção de meia dúzia de acadêmicos steinbeckianos e alguns entusiastas locais em Monterey? O duro artigo de Robert Gottlieb em “The New York Review of Books” (via Arts & Letters Daily), a propósito da conclusão, pela Library of America, da “consagradora” edição da obra de John Steinbeck, me deixou aqui pensando se algum escritor brasileiro estaria em papel semelhante – ao mesmo tempo literariamente morto e respirando por aparelhos nos currículos escolares. Alguém disse José de Alencar? Tá legal, passa no mínimo perto. Só não vou assinar embaixo com entusiasmo irrestrito por reconhecer meu fraco kitsch e quase lacrimejante por aquela prosa poética de Iracema, “Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia…
A palavra “maiô” parecia destinada a ter sabor nostálgico para sempre. Nome de um traje feminino de banho inteiriço tornado conservador pela explosão mundial do duas-peças, ou biquíni, o maiô nunca desistiu de tentar rentrées periódicas. Foi necessária, porém, uma mudança de praia – ou piscina – semântica para que invadisse triunfalmente o século 21. Não mais como peça feminina, mas unissex. Não mais estrela em passarelas, mas artigo de alta tecnologia no esporte de competição. “Maiô” foi resultado da aclimatação em português, em algum momento da primeira metade do século 20, do francês maillot. A palavra dava conta entre nós dos cada vez mais ousados trajes de banho femininos. Em sua língua original, maillot era um vocábulo vetusto, mas com diferentes acepções. Começara sua carreira no século 16 como sinônimo de cueiro ou fralda, pano de enrolar recém-nascido. Só no início do 19 surgiria a acepção de malha de balé, que, na primeira década do século passado, se expandiu para abarcar trajes colantes de banho. Maillot veio, em última análise, do latim macula, ancestral de “malha” e “mancha”. A adaptação da grafia e o lugar confortável ocupado pela palavra em português nada têm de raros. Inúmeros vocábulos franceses no…
Não sei se o sobrenome tem algo a ver com isso, mas vira e mexe eu preciso tomar a bênção do Nelson. Começou quando publiquei em 2000, no livro “O homem que matou o escritor”, um conto chamado O argumento de Caim, que tem o cara como personagem. O primeiro conto do meu primeiro livro, que bandeira. Angústia da influência? Não, prefiro influência da angústia. Ou só brincadeira, como nesta crônica escrita de encomenda semana passada: . O político sobe ao palco com solene lentidão, acompanhado da mulher. Uma saraivada de flashes torna a cena estroboscópica. Ele pára diante da tribuna de madeira maciça, dá duas pancadinhas para testar o microfone, pigarreia e diz: – Bom dia. Tive experiências extraconjugais. Traí minha mulher e não me orgulho disso. Minha mulher também me traiu. Mas nunca gastamos um centavo de dinheiro público para nosso deleite pessoal. O bordel de high school girls foi pago com meu salário suado, Madame Luba Jones está aí para comprovar. Venho confessar tudo de público antes que… Um murmúrio percorre a platéia composta de dezenas de jornalistas. Bloquinhos, gravadores e câmeras ondulam como um mar revolto. – Quem traiu primeiro? – grita uma moça ruiva na…
Fundir literatura e internet – uma fusão profunda que use as ferramentas digitais para revolucionar o próprio modo de narrar e não apenas para divulgar textos lineares – é, para muita gente, uma obsessão. É possível que esse caminho acabe levando cedo ou tarde a uma obra-prima. Embora eu não consiga ver o texto-texto se tornando obsoleto, nada impede que novas formas de contar histórias ganhem vida própria, sem precisar tomar o lugar das já existentes. O certo é que as freqüentes tentativas de acelerar essa fusão in vitro têm sido, na melhor das hipóteses, esforçadas. A última é um projeto inglês chamado We tell stories (Nós contamos histórias), patrocinado pela Penguin. Seis jovens escritores foram convidados a criar, ajudados por programadores de games, “web-histórias” inspiradas em livros tradicionais. A primeira experiência já está no ar: assinada por Charles Cumming, chama-se The 21 steps e se baseia no livro “Os 39 degraus”, de John Buchan, que Hitchcock transformou num filme homônimo de 1935. Se eu gostei? Longe disso: achei canhestro, tatibitate e colossalmente chato. É claro que novas formas de narrar criam novos tipos de leitores e, bem, eu jamais serei um deles. Mesmo assim The 21 steps deixa a…
…quando se trata dos textos canônicos da moderna ficção científica, e da assombrosa geração de proféticos inovadores formada por seus contemporâneos – Isaac Asimov, Robert A. Heinlein e Ray Bradbury – os escritos do Sr. Clarke eram os mais bíblicos, os mais prontos a amplificar a razão com a convicção mística, os mais religiosos no sentido mais amplo da religião: especular sobre começos e fins, e como fazemos para ir de uns aos outros. Demoro um pouco a saber o que fazer dessa observação de Edward Rothstein em seu artigo sobre Arthur C. Clarke (1917-2008) no “New York Times” (em inglês, acesso gratuito). Passada a surpresa inicial, ela me ajuda a acertar contas com minha própria admiração adolescente – esquecida por décadas, mas essas coisas não morrem – por um escritor cujas fabulações me pareciam, naquele tempo, infinitamente superiores ao lirismo piegas de Bradbury e ao vale-tudo imaginoso, mas meio tosco, de Asimov. Paro por aqui as comparações, reconhecendo os limites estreitos de minha erudição no gênero. No meu caso, a paixão pela FC arrefeceu com a idade adulta, e o que dela restou já tinha migrado para as graphic novels quando chegou a vez de minha própria geração revolucionar…
Como ocorre nos engarramentos, que se espalham rapidamente embora sua origem nem sempre seja fácil de determinar, a idéia de que os carros retidos num congestionamento de trânsito estão presos como o líquido numa garrafa, ocupando todos os espaços e condenados a sair lentamente, por um gargalo estreito, é uma metáfora que se espalhou pelas línguas latinas ali pelo início do século passado. Provavelmente jamais saberemos com certeza qual foi o país que, diante daquele efeito colateral do desenvolvimento urbano, usou primeiro a imagem da garrafa (palavra antiqüíssima, vinda ao que tudo indica do árabe). O certo é que a idéia existe também no francês embouteillage, no espanhol embotellamiento e no italiano imbottigliamento. Todos eram termos existentes desde o século 19 em sua acepção literal de “ato de meter em garrafas”, mas passaram a fazer hora extra como sinônimo de tráfego lento ou bloqueado quando os automóveis começaram a se popularizar. Os primeiros registros desse uso em francês datam dos anos 1920. Um pouco antes, por volta de 1917, começara a fazer sucesso no inglês a expressão traffic jam, que carrega o mesmo sentido e evoca imagem semelhante: a palavra jam tem entre suas acepções a de atochar, comprimir algo…
Entrou no ar neste fim de semana o site da segunda edição da Copa de Literatura Brasileira. Como um dos jurados deste ano, tive direito a voto, mas nem por isso me considero suspeito para elogiar a lista dos dezesseis concorrentes, que me parece sensata, eclética e representativa. Não faltará quem torça o nariz, alegando que a literatura brasileira não produz dezesseis bons romances por ano. Concordo. Mas o que importa é que os livros realmente relevantes estão lá. E se a Copa for tão divertida quanto a do ano passado, terá valido a pena. * Muito bom o texto do crítico Alcir Pécora na “Folha” de sábado (só para assinantes) sobre o livro de contos “Putas assassinas” (Companhia das Letras), de Roberto Bolaño: De repente, percebe-se que a paisagem é de horror, na iminência tensa de um desastre. A natureza do desastre é potencializada na injustiça e crueldade da América Latina, acumulada sobre um fundo primitivo de traição, dor e vingança. A violência contra mulheres, índios, velhos e crianças são evidências da devastação em curso, mas não é para os políticos que Bolaño aponta em primeiro lugar o dedo acusador, e sim para a cumplicidade que a literatura estabelece…
Um novo livro do amazonense Milton Hatoum é sempre uma notícia a ser festejada. Foram poucos desde que ele estreou em 1990 com “Relato de um certo Oriente”: até este “Órfãos do Eldorado” (Companhia das Letras, 112 páginas, R$ 29) eram apenas três romances, todos de alguma forma substanciais, carnudos no vocabulário e na simbologia, com algo de amazônico e transbordante em sua fé na arte de narrar – “como os romances de antigamente”, ouvi certa vez de um leitor, e era elogio. Aliada ao talento de Hatoum, a falta de pressa se traduziu num padrão de qualidade elevado que o transformou em bicho-papão de prêmios literários. Com justiça. No novo livro, lançado apenas três anos depois de “Cinzas do Norte”, os temas habituais de Hatoum – o território conflagrado das relações familiares, a paisagem amazônica como pano de fundo e metáfora de um profundo desencanto, o acerto de contas com um passado perigoso que a memória busca mas teme empreender – são retomados em chave diferente. Novela curta, escrita por encomenda para uma série internacional sobre temas mitológicos, “Órfãos do Eldorado” se deixa ler velozmente e com prazer. Só no fim é que me vi às voltas com uma…
Os brasileiros que se queixaram de ter sido chamados de “cachorros” por agentes da imigração espanhola podem ter cometido um erro de tradução. Foi o que argumentou na terça-feira, em reunião com membros da comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado, o embaixador da Espanha no Brasil. “Cachorro em espanhol é diferente, significa filhote”, afirmou Ricardo Peidró. Mais uma exibição do velho esporte diplomático do “nó em pingo d’água”? Sim e não. A distinção não deve ser suficiente para amenizar a dor de quem se viu barrado injustamente no aeroporto, mas o fato é que, do ponto de vista lingüístico, esta curiosidade se impõe: Peidró está certo sobre a assimetria semântica de “cachorro” nos dois lados do Atlântico. Além da Espanha, Portugal também usa o termo apenas para animais filhotes. Do latim catulus (filhote de cão), com o acréscimo da terminação basca orro, foi no português brasileiro que o significado de “cachorro” se expandiu até se confundir com o de cão (em espanhol, perro). Isso parece ter obedecido a razões de religiosidade ou superstição: como “cão” é um dos nomes do diabo, a idéia era evitar seu uso. E daí? Bem, uma conseqüência dessa distinção é que, da…
Autores como Guimarães Rosa, quando morrem fisicamente, morrem também literariamente. O Rosa não vai durar muito tempo, ele hoje só é lido nas universidades. Porque ele saiu dos trilhos, exagerou. Aconteceu isso também com o Mário de Andrade que, quando escreveu “Macunaíma”, queria ser o Dante da língua portuguesa. Quem me chamou a atenção para isso pela primeira vez foi o Graciliano Ramos. É possível saber tudo de língua e nada de literatura? A entrevista do “imortal” Evanildo Bechara ao “Jornal do Brasil” (acesso livre) revela um gramático de 80 anos que, em suas idéias sobre o idioma, conserva-se surpreendentemente jovem e arejado – bem mais que a maioria dos jornalistas de 30 que eu conheço. Motivo de festa maior que este, só o fato de Bechara não ser crítico literário.
Palavrinha adorável, “grátis” nunca saiu de moda, mas alguns anos atrás pouca gente teria sido capaz de prever que a internet a transformaria em carro-chefe. Mera – e antiga, já registrada em 1502 – transposição para o português do latim gratis, é derivada do adjetivo latino gratus, que tem sentido ativo (“que agrada, que delicia”) e passivo (“agradecido, reconhecido”). A gratuidade traz do berço, portanto, a idéia de que aquilo que é oferecido livre de custo busca agradar, é um favor, geralmente em reconhecimento ao valor de alguém. O que significa dizer que, do outro lado do balcão, de frente para o grátis, existe sempre uma pessoa que deve se sentir grata. A ambivalência ativo-passivo se transmitiu a outros termos da família: olhando bem, é possível ver a presença do mesmo “grat” latino na gratificação e no agradecimento, ou seja, dando conta tanto do que agrada quanto de quem, sendo agraciado, demonstra gratidão. Engraçado? Juro que esse grande congraçamento de palavras aparentadas, talvez gracioso para uns, mas certamente uma desgraça de etimologista doido para outros, não está aqui gratuitamente, só para fazer graça. As palavras grifadas no parágrafo anterior – algumas, como “grátis”, vindas diretamente do latim, enquanto outras se…
O que mais nos deve inquietar no chamado “escândalo dos escritores Jerominho” não é saber que eles – todos os sete – se sujeitaram a este triste papel, assinar seus nomes numa literatura que, se tem um autor, esse autor só pode ser o falecido Jerônimo Mayrink. Como se sabe, os escritores Jerominho, cujos nomes a recente notoriedade do caso me dispensa de declinar, compraram – por dez mil dólares a unidade – um produto anunciado aos sussurros no submundo literário como espetacular, uma espécie de pedra filosofal dos escritores. A coisa cheirava a picaretagem de longe, só que, surpreendentemente, funcionou: até o escândalo estourar, todos os clientes de Jerônimo Mayrink eram vistos como autores sérios, entrevistados por jornais e TVs, fartamente lidos – isto é, lidos no clubinho dos leitores de ficção nacional, uma turma que poderia fazer assembléia numa Kombi, mas essa é outra história. Batizado de MUSA (Mayrink’s Ultimate Simulator of Authorship), o programa podia não ser barato, mas mostrou-se genial. Essa máquina de escrever ficção usa algoritmos para “alterar” a prosa de autores consagrados, embaralhar frases, trocar palavras-chave, fundir dois ou mais textos, enfim, promover uma remixagem geral. “É mais ou menos como preparar um carro…
Lendo o Babelia (em espanhol, acesso gratuito), encontro uma reveladora entrevista de Ian McEwan: “Muitos acreditam que o romance perfeito é ‘Madame Bovary’. Eu o reli há dois anos e pensei: não é. ‘Madame Bovary’ morreu. (…) Dizem que quando Emma morre, Flaubert chorou. Agora entendo por que não gosto. Ele estava envolvido demais com a história. Deveria ter permanecido muito mais frio, distante, com algo de gelo”. Meu susto nada tem a ver com a frieza que o escritor inglês confessa. Mais prosaico, deve-se ao fato de que só agora On Chesil Beach está chegando ao efervescente mercado editorial espanhol, oito longos meses depois de dar as caras por aqui. A propósito: para McEwan, o romance que mais se aproxima da perfeição é “Ana Karenina”. * Lendo o Prosa & Verso (só para assinantes), o susto é com as seguintes palavras do jornalista José Castello sobre a novelinha “A morte e a morte de Quincas Berro D’Água”, de Jorge Amado: “jóia até hoje desprezada que, lançada seis anos antes de ‘Cem anos de solidão’, de Gabriel García Márquez, antecipa o realismo mágico”. Hein? Promovido abruptamente de maior nome da “escola” que se costuma chamar de realismo mágico a seu…