Espantosa esta intervenção do escritor e médico gaúcho Moacyr Scliar num festival de literatura no interior de São Paulo, semana passada. Em vez de uma arte fina e difícil, que frustra a maioria dos que nela se aventuram para premiar uns poucos com ouro puro, o diálogo literário, segundo ele, seria enchimento de lingüiça: Para Scliar, o diálogo é apenas um recurso para preencher espaço em uma história. “Quando me deparo com um livro, busco descobrir a quantidade de diálogos que estão ali. Se forem muitos, não acredito que seja um bom livro.” Descartada a possibilidade de que Scliar se referisse aos diálogos de seus próprios livros, caso em que teria um argumento respeitável, resta a conclusão lógica de que, lá de sua tumba em Stratford-upon-Avon, Shakespeare está clamando aos céus: Lord, what fools these mortals be!
Aconteceu de novo. Algum dia um pesquisador terá que investigar por que nós, brasileiros, temos essa incompetência atávica para organizar uma simples venda de ingressos. Quem não tiver paciência para detalhes escatológicos deve pular este post, breve resumo de uma manhã tensa – no fundo besta – de terça-feira. O site da Flip anunciava a venda pela Ingresso Rápido a partir de hoje às 9h. Um amigo que ligou antes dessa hora conseguiu, após esperar numa fila de cinqüenta pessoas, ser atendido – “um momeiinnnto!” – pelo call center da empresa, no (11) 4003-1212. Foi informado de que a venda começaria às 10h e o obrigaram a desligar. Depois disso, claro, só encontrou linhas ocupadas. Observação importante para que o suspense de thriller fique completo: as mesas mais concorridas, como vimos em outros anos, costumam se esgotar em poucos minutos. Nessa situação, cada ligação telefônica que cai é acompanhada de acordes funestos, cada segundo de espera na porta de um servidor superlotado cai como grão de areia na ampulheta do Juízo Final… Àquela altura, o site ingressorapido.com.br não mencionava Flip nenhuma. Não mencionava às 9h. Continuou não mencionando às 10h. Às 10h31, finalmente, apareceu uma página dedicada ao evento. Uma…
O Todoprosa estará na Flip, é claro. Não tendo mais idade para acampar ou dormir no carro, reservou pousada há um mês – no escuro, como sempre. A programação oficial só foi divulgada semana passada e não fez disparar o coração de ninguém, mas sem dúvida é sensata, consistente. Não antecipo nenhuma revelação-com-trombetas do tipo que me emplastrou numa cadeira da Tenda dos Autores ano passado, ouvindo Coetzee ler trechos de Diary of a bad year – sim, fui uma das cinco pessoas que gostaram, e na época expliquei por quê. Mesmo assim, quero ver e ouvir Roberto Schwarz, Humberto Werneck, Martín Kohan, Nathan Englander, Neil Gaiman, Richard Price, Cees Nooteboom e Tom Stoppard. E mais alguma coisa que calhar. (Adendo às 12h23: o cancelamento da participação do historiador inglês Tony Judt tem peso considerável, mas, como se vê, não afeta meus planos.) E só vou perder o bate-bola entre José Miguel Wisnik e Roberto da Matta sobre futebol porque ele foi escalado para os 44 do segundo tempo, digo, 17h de domingo, quando Parati já terá sido desertada por quase todo mundo que trabalha para ganhar a vida e correrá sobre as ruas de pés-de-moleque, arrastando filipetas de festinhas…
Domingo é dia de relembrar o inesquecível. Este post foi publicado pela primeira vez em 23/6/2006. * O maxilar de Spade era largo e ossudo, seu queixo era um V muito pronunciado, abaixo do V mais suave formado pela boca. As narinas se arqueavam para trás para formar um outro V, menor. Os olhos amarelo-cinzentos eram horizontais. O tema do V era retomado pelas sobrancelhas um tanto peludas que se erguiam a partir de duas rugas gêmeas acima do nariz adunco, e o cabelo castanho-claro tombava – de suas têmporas altas e retas – em uma ponta, por cima da testa. De modo bem ameno, ele parecia um satã louro. Disse para Effie Perine: – O que é, meu bem? O início de “O falcão maltês” (Companhia das Letras, tradução de Rubens Figueiredo, 2001), obra-prima lançada em 1930 por Dashiell Hammett (1894-1961) e fortíssimo concorrente ao título de maior romance policial da história, marca o momento – não desprovido de choque – em que a descrição da literatura realista encontra o grafismo econômico dos gibis.
A palavra milícia ganhou projeção nacional depois que membros de um desses grupos torturaram jornalistas no Rio de Janeiro. No entanto, séculos antes de adquirir o sentido hoje dominante no Brasil – grupo de policiais dedicados à atividade criminosa de vender segurança em áreas abandonadas pelo Estado –, a milícia brotou da mesma fonte belicosa, mas respeitável, que daria em termos como militar e militante. A família saiu da raiz latina miles/militis, isto é, soldado, por meio de militia (serviço militar, campanha). O primeiro registro de uma acepção que diferenciava milícia e Exército apareceu no francês do século 17: milice ganhou o sentido suplementar de “tropa de cidadãos recrutada para reforçar as forças regulares em caso de necessidade”. A palavra ainda não estava associada ao crime: as milícias se punham a serviço dos militares de carreira. Esse sentido chegou poucos anos depois ao inglês militia. Em português, no início do século 18, o pioneiro “Vocabulário Português e Latino”, de Raphael Bluteau, retratava uma abertura semântica semelhante: “Gente miliciana é a gente bisonha, e soldados de ordenança, em que entram sapateiros, alfaiates e outros oficiais mecânicos”. (Bisonho, no caso, é recruta, soldado inexperiente.) A reputação da palavra ficou muito comprometida em…
O André Gonçalves sugere um excelente tema de debate: Como disse, está havendo o Salão do Livro, aqui em Teresina. E 9 entre dez “escritores” reclamam da falta de apoio, da falta de incentivo, etc, etc, etc. Pergunto: até que ponto é obrigação/responsabilidade do Estado ou da iniciativa privada bancar/financiar livros (considerando-se que 90% deles, eu inclusive, ou mais, sejam de interesse único e exclusivo do autor e sua família, ou fruto de vaidade, ou qualidade literária sofrível)? Como incentivar novos escritores? Concursos premiam um de cada vez, e olhe lá. Enfim, qual o papel do Estado nisso tudo? Bem, se acreditar que isso pode ser um bom tema, ótimo. Senão, ao menos pode-se discutir por aqui. Isso me fez lembrar de um link sugerido ontem na caixa de comentários do post da “Granta” por outro leitor: uma reportagem do “Jornal do Brasil” de três semanas atrás – que tinha me escapado por completo – sobre as insatisfações que começam a pipocar no bonde literário da Petrobras, o mais gordo e populoso do país. O tema, que a partir deste momento está aberto para debate, é controverso. Vou gostar de ler as opiniões dos dois lados. Mas não digam que…
“Devil May Care”, o novo romance de James Bond escrito por Sebastian Faulks, tornou-se o livro de ficção de capa dura de venda mais rápida na história da Penguin, com a marca de 44.093 exemplares nos quatro dias desde que o título chegou às prateleiras. Os números se seguem a uma campanha promocional de proporções comparáveis às de “Harry Potter”, inclusive, na fase pré-lançamento, com notícias do trabalho de Sebastian Faulks como dublê de Ian Fleming publicadas em todos os maiores jornais. Confesso que não poderia estar menos interessado no livro de Faulks. Mas a notícia (acesso livre, em inglês) é representativa da nova ordem que há alguns anos se anuncia no mundo editorial. Neste tempo, uns poucos livros recebem de seus editores um tratamento de marketing até então dispensado apenas a certos filmes de Hollywood. Os outros 99,88% disputam as migalhas e um cada vez mais improvável papel de azarão. A comparação com Harry Potter deve ser feita com muita cautela: o último livro da série do mago vendeu 3 milhões de exemplares em seu primeiro fim de semana. Apesar de infinitamente mais modesto, o caso da nova aventura de James Bond acrescenta um dado instrutivo ao panorama ao…
Qualquer um que acompanhe com um mínimo de atenção a literatura brasileira sabe que o escritor mato-grossense Manfredo Faustini se especializou em escrever sobre o Tinhoso nas mais variadas formas: mulheres, crianças, capitalistas, políticos, animais, espíritos, todas as suas engenhosas histórias giram em torno de personagens que se revelam diabólicos em algum momento. O sucesso de público e crítica veio depressa. Um dia um amigo lhe perguntou como era possível que, com todos os demônios, ele nunca tivesse escrito nada sobre o tema do escritor que vende a alma ao Rabudo em troca de glória. Faustini desconversou, contrariado. O amigo estranhou: achava a idéia soberba, tinha antecipado uma reação bem diferente. E Faustini deve ter ficado irritado mesmo, porque depois disso a amizade deles esfriou e não demorou a morrer.
A discrepância aparentemente aberrante da comparação entre o escritor e o jogador de futebol contém nela mesma o xis do problema: ambos são necessários para que se formule a trama de um país mal letrado e exorbitante, cuja destinação passa pelas reversões entre a “alta” e a “baixa” cultura, pelo confronto e pelo contraponto das raças, pela palavra e pelo corpo, e cuja “formação” não poderia se dar apenas na literatura: o ser brasileiro pede minimamente – para se expor em sua extensão e intensidade – a literatura, o futebol e a música popular. (Aliás, uma certa intangibilidade enigmática, comum aos dois, pode ser reconhecida também em João Gilberto.) Se Machado de Assis tornou-se quase inseparável – depois da interpretação de Roberto Schwarz – do equacionamento das “idéias fora do lugar”, isto é, dos desnivelamentos e disparates entre a escravidão cotidiana e a pretensão universalizante do liberalismo burguês que pautou as nações modernas, o futebol brasileiro e Pelé são inseparáveis do “lugar fora das idéias”, o vetor inconsciente por meio do qual o substrato histórico e atávico da escravidão se reinventou de forma elíptica, artística e lúdica. Os ensaios de fôlego que compõem o recém-lançado “Veneno remédio: o futebol e…
A retrospectiva desta seção está aqui todo domingo. Este post foi publicado pela primeira vez em 17/9/2006. * Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo. Um dia a dúvida tinha que aparecer nesta seção: será que o começo de “Pedro Páramo” (Record, 2004, tradução de Eric Nepomuceno), romance publicado em 1955 pelo mexicano Juan Rulfo (1917-1986), só é inesquecível porque o livro todo é? Ou existirá alguma coisa na primeira linha dessa obra-prima da literatura latino-americana que a faria reverberar mesmo sozinha, no ar seco de um México mítico, sustentada entre o tema ancestral da busca do pai e a sonoridade estranha de nomes como Comala e Páramo?