A palavra composta colarinho-branco, que traduzimos do inglês white-collar, está tão associada à expressão “crime do colarinho branco” que deixa em segundo plano sua idéia de origem, que era simplesmente dividir os trabalhadores em dois grupos: de um lado os colarinhos-brancos, com terno e gravata, alto grau de escolaridade e salários gordos; do outro os blue-collar workers, o pessoal de uniforme, mal remunerado, encarregado de trabalhos braçais. O colarinho-azul não migrou para o vocabulário do português. Ficamos só com o branco mesmo. Esse código de cores é bem americano: em grande parte das empresas daquele país, ao longo do século passado, o nível hierárquico dos funcionários era indicado por jalecos brancos e azuis. No entanto, há quem diga que as raízes são mais profundas. O primeiro registro de white-collar para qualificar o trabalhador de escrivaninha é de 1919 e aparece na obra de Upton Sinclair, autor do livro em que se baseou o filme “Sangue negro”, que valeu a Daniel Day-Lewis o Oscar de melhor ator. Supõe-se, porém, que a palavra tenha influência do colarinho engomado dos clérigos de várias religiões cristãs. Por séculos, foi nesses grupos que a sociedade européia recrutou não apenas sacerdotes, mas a maioria de seus…
O religioso turco Fethullah Gülen venceu a eleição online de mais importante “intelectual público” do mundo, promovida pelas revistas – pesadamente intelectuais e ocidentais – “Prospect” e “Foreign Policy” (via Arts & Letters Daily). Todos os dez primeiros colocados são de países muçulmanos. Só na 11.ª posição aparece o primeiro do Ocidente, Noam Chomsky, vencedor da edição de 2005 do prêmio. Tom Nuttall, editor de internet da “Prospect”, explica em tom meio constrangido (em inglês, acesso gratuito) o que aconteceu: uma intensa e inédita mobilização dos internautas muçulmanos, principalmente na Turquia. O que é um direito deles. Bobagem é ainda promover qualquer tipo de votação “séria” online e esperar que o resultado diga alguma coisa sobre o mundo além de quem tem a mais azeitada máquina de propaganda e a maior disposição para usá-la.
Ela leu: Diana Wurz escreve sustos, mastigando reticências como sucrilhos. Afaga tormentos, faz cócegas nos cânones, soluça anacolutos com uma graça súbita de bailarina imaginária. Humana, eis a palavra. Humanérrima. Em seus contos-relicários de sondar desvãos, de acender o sol, de entesourar momentos, atinge uma materialidade porosa e cheia de reentrâncias, ainda que cuidadosamente depilada, que denuncia sua filiação àquela irmandade de autores esguios que não escrevem com a cabeça, mas com o corpo. No caso de Diana, estreante de rara maturidade, nem mesmo com o corpo inteiro: com partes do corpo, uma unha aqui, ali o mamilo direito, apêndice espremido numa entrelinha, pâncreas fechando a frase com seu inconfundível – molhado, fofo – muxoxo pancreático. À medida que, lenta e viscosamente, escorre o texto, vai se despedaçando a jovem escritora com tal bravura, e com seus nacos pavimentando a auto-estrada do autoconhecimento, que não resta dúvida: Diana Wurz dói. Lateja. Feito uma estrela, se estrelas doessem. Leu, releu, depois devolveu a folha em silêncio ao homem. Ele disse: E aí, cumpri minha parte a contento? Está bem legal. Você acha isso mesmo do livro? Ué, não escrevi? Ela sorriu: Está ótimo. Posso mandar para o editor? Pode, ela respondeu,…
“Tentei ser oswaldianamente pornográfico… folclorizam-me”, diz Xico Sá em seu blog, considerando incompreendida sua participação numa mesa flipesca que, também por causa da licenciosidade do cronista, o Todoprosa achou inesquecível. Só não entendi uma coisa: pornografia oswaldiana é folclore puro, Xico. Folclorizar o quê? Mas para quem não agüenta mais ouvir falar em Flip – eu, por exemplo –, boa mesmo é essa história do blogueiro americano que comprou de uma respeitável senhora um lote de livros usados que o marido lhe deixara de herança e, chegando em casa, descobriu que vários volumes tinham sido escavados por dentro, transformando-se em perfeitos estojos. Até aí, tudo bem. Já vi esse truque no cinema, livros que contêm pequenas garrafas de bebida e até pistolas. Mas os estojos que o blogueiro comprou da boa viúva acomodavam outra coisa: um grande número de polaróides de pornografia caseira, estrelando o falecido, na época bem vivo, com todo tipo de mulher – menos a própria, supõe-se. Esta, presumivelmente avessa à leitura, nunca descobriu o segredo cabeludo, todos aqueles lombos por trás das lombadas. Nada como conhecer a cara-metade.
No dia em que for contada a história da crise econômica que, com maior ou menor força, aflige hoje o mundo inteiro, é provável que o primeiro capítulo seja dedicado a um calote, ou melhor, um megacalote: o das hipotecas subprime no mercado imobiliário dos EUA. Caída a primeira peça do dominó, os efeitos seguintes foram – estão sendo – complexos demais para resumir numa palavra, mas uma coisa é certa: o calote sempre volta a aparecer. Quando a disparada da inflação faz muita gente descobrir que calculou mal sua capacidade de endividamento, por exemplo. A peça de dominó do parágrafo acima não está ali por acaso. É controversa a origem de calote – palavra antiga, registrada em português desde 1771, segundo o Houaiss –, mas a tese mais provável sustenta que ela veio do francês culotte. Não o calção, mas um velho termo do jogo de dominó que, como afirma o etimologista Antônio Geraldo da Cunha, designava “as pedras com que cada parceiro fica na mão, por não poder colocá-las”. A relação do culotte lúdico com a dívida não paga parece forçada à primeira vista, mas não é tanto assim. O calote pode ser entendido como o entulho que…
A Flip 2008 teve altos, baixos e, sobretudo, médios, mas termina como um bom filme hollywoodiano: deixando no freguês a impressão de que, se a redenção do herói é possível, então existe justiça no mundo. O que, como se sabe, é apenas uma ilusão, mas disso também se vive. Se o colombiano Fernando Vallejo, rei dos marqueteiros, tivesse conseguido roubar a cena de um escritor sério como o holandês Cees Nooteboom, na tarde-noite de sábado, o mundo estaria perdido. Ele bem que tentou, dizendo asneiras do tipo “toda literatura escrita em terceira pessoa é mentirosa; como o narrador pode saber o que se passa na cabeça de alguém?”. Nooteboom não perdeu tempo com isso: “O escritor é um mentiroso por natureza”. No fim Vallejo foi reduzido ao seu verdadeiro tamanho, e o sábado pôde caminhar para a apoteose da aula de Stoppard, que apresentei abaixo. O domingo também teve sua nota redentora. A mesa sobre futebol, compartilhada pelos dois intelectuais brasileiros que dedicaram mais horas de reflexão ao assunto, Roberto da Matta e José Miguel Wisnik, foi uma espécie de confraternização final que ajudou a borrar com o diluidor da “paixão nacional” a geografia política de um evento que, mais…
Depois de Luiz Melodia chamar a Flip de “Flic”, foi a vez de Luis Fernando Verissimo, em sua primeira frase da conversa com Tom Stoppard, ontem à noite, chamá-la de “Clip”. Ao contrário do músico, o escritor percebeu imediatamente o erro e se corrigiu. Cáspite! Coincidência, com certeza. Contudo, cabe a conjetura: e se a letra cê estiver cavando um convite para o convescote?
Vou resumir aqui, mais em espírito que literalmente, o que foi a aula dada pelo dramaturgo inglês Tom Stoppard na mesa mais nobre da Flip, a das 19h de sábado. Aula? Sim, foi nisso que consistiu a primeira metade do programa, quando, depois de apresentado por Luis Fernando Verissimo, Stoppard pediu licença para ficar em pé no palco e passou a se dirigir diretamente ao auditório lotado, expondo uma espécie de cartilha de princípios artísticos. O segundo ato da peça, se assim podemos chamá-lo, em que o autor de The Coast of Utopia respondeu perguntas do mediador e da platéia, foi irregular, como costumam ser essas coisas. Mas a aula foi ótima. Stoppard dividiu o que entendemos por texto “bem escrito” em duas categorias: o que revela um poder magistral de manipulação da língua, no modo como as palavras se organizam, por assim dizer, arquitetonicamente, para expressar do modo mais eloqüente possível uma idéia forte; e aquele que, embora repleto de lugares-comuns e fórmulas convencionais, usa-os com tamanha precisão e em contextos tão perfeitos que tira deles o máximo de expressão artística. A primeira categoria é, naturalmente, aquela que costuma ser compreendida pela maior parte das pessoas como a mais…
A coisa mais notável sobre Tom Stoppard (deixando de lado toda essa história dele ser um gênio e tal) é que ele é vinte anos mais velho, e tem o mesmo cabelo que eu! Neil Gaiman, estrela da mesa de 11h45, sobre Tom Stoppard, estrela da mesa de logo mais, em seu blog pessoal (dica de Marcelo Tas). Ter se dado bem nos bastidores da Flip com Stoppard, um sujeito que ele quer ser “quando crescer”, é apenas um dos assuntos relacionados com o Brasil que Gaiman aborda. Parece estar adorando tudo.
Foi perfeita a mesa que reuniu Neil Gaiman e Richard Price. Além da qualidade da obra dos dois e da lucidez com que falam dela, acho que algumas questões de formato, digamos assim, ficaram bem claras. Em primeiro lugar, mesas com três convidados não funcionam. Dois é o número ideal para que cada um tenha tempo de dar o seu recado. Um, se o cara for uma grande estrela, tudo bem. Três é demais. Segundo: o mediador é mais importante do que parece. Marcelo Tas desempenhou seu papel com rara competência. Conhecia a obra dos entrevistados, mas, nem tímido nem exibido, entendeu que não estava ali para defender uma tese de doutorado, mas para apresentar um pequeno show ao vivo. O timing de televisão ajudou. Terceiro: a química entre os convidados costuma ter muito de imponderável, mas não precisa ser encontrada em grandes questões políticas ou existenciais. A discussão sobre a técnica do diálogo, por exemplo, bastou para que Price e Gaiman, tão diferentes, encontrassem solo comum suficiente para garantir à mesa uma certa coerência. “O diálogo real é um pesadelo num livro, como um mau filme de Andy Warhol. Bom diálogo é diálogo falso”, disse Price, jogando uma pá…
O americano David Sedaris encerrou a programação de sexta-feira da Flip dando o que pensar. Depois da mesa gelada sobre uma certa (e nebulosa) “estética do frio”, Sedaris, mestre naquele tipo de humor bem americano em que o sujeito ri cruelmente de si mesmo antes de rir dos outros, conseguiu soar simpático até quando disse que, no Brasil, tinha dois desejos: comer carne assada em espadas (espetos de churrasco) e ver macacos. Fez o público flipesco dar gargalhadas com o absurdo da vida e sair de coração aquecido para disputar a cotovelaços lugares em restaurantes lotados e agüentar o serviço baiano que a cidade oferece por preços tão nova-iorquinos quanto a estrela da noite. Depois de uma quinta-feira dominada por Ovalle, fica a pergunta: só o humor salva?
O caderno de anotações estava aberto no meio da mesa. Tinha só uma frase escrita nessas duas páginas que ficavam à vista. Dizia: “A partir de que idade se pode comesar a torturar uma criança?” O fortíssimo começo de “Duas vezes junho” (Amauta Editorial, 2005, tradução de Marcelo Barbão), do argentino Martín Kohan, que comprei ontem na tenda montada pela Livraria da Vila em Parati, fez crescer meu interesse pela mesa que começa daqui a pouco (e que terá ainda Nathan Englander e Vítor Ramil). A novela de Kohan aborda a violência da ditadura argentina de forma original já a partir de seu começo estarrecedor: o erro de ortografia representado por “comesar”, uma bobagem, será prontamente corrigido; a barbaridade demencial, mas ao mesmo tempo burocrática, de torturar um recém-nascido para obrigar sua mãe a falar, não.
Pronto, aconteceu: a Flip 2008 teve sua primeira mesa para ser lembrada por muitos anos. “Você estava naquela mesa do Ovalle?”, muita gente perguntará ano que vem, dedicando então, em caso de resposta negativa, um olhar de pena ao interlocutor. E por que foi tão boa a tal Conversa de Botequim entre Humberto Werneck e Xico Sá, com mediação de Paulo Roberto Pires? Bom, qualquer tentativa de dissecar friamente esses momentos de alegria, e ainda por cima no calor da hora, é arriscada. Mas vamos lá: Para começar foi seguramente a mais engraçada de todas as que já vi em Parati. A mais desaconselhável para menores de dezoito anos também. Xico Sá, cronista famoso pela verve, começou pegando um pouco pesado nos palavrões para os padrões flipescos, e um bom punhado de sobrancelhas erguidas refletia o temor de que aquilo pudesse desandar. Não desandou: decolou. Jayme Ovalle tem muito a ver com isso. O personagem-tema do livro de Werneck, “O santo sujo” (mais sobre ele aqui), é uma figuraça que por si só estimula o clima de conversa vadia. E o autor, jornalista de renome, se revelou um exímio contador de casos. Mineiramente elegante, com um humor mais baseado no…
O escritor colombiano Fernando Vallejo, cujas opiniões contra tudo o que aí está são uma chatice abominável, deu sorte. Como fala baixo, num espanhol enrolado, e não havia tradução simultânea, a entrevista coletiva que deu hoje na Flip foi tão pouco compreendida pela maioria dos repórteres presentes que ele pôde se safar sem um arranhão quando foi além da chatice habitual, entrou pelo terreno da teratologia e, irritado, lamentou a libertação de sua compatriota Ingrid Betancourt. Prisioneira na selva, segundo ele, ela era “menos uma praga para nosso país”.
Na já tradicional mesa dos “novos autores”, sempre a primeira de quinta-feira, terminada há pouco, o mediador João Moreira Salles se confessou em grande dificuldade para encontrar o “mínimo denominador comum” entre quatro escritores que, além de terem estilos diferentes, nem mesmo no tempo de carreira se parecem: de um lado Michel Laub e Adriana Lunardi, quase veteranos com seus três livros cada um, e do outro os calouríssimos Vanessa Barbara e Emilio Fraia, autores de “O verão do Chibo” (Alfaguara), um romance escrito, coisa rara, a quatro mãos. Um dos pontos de contato que Moreira Salles descobriu entre eles – além de gozações como “sobrenomes iniciados por consoantes” – me chamou a atenção: todos têm bem-sucedidas carreiras paralelas à literatura, Adriana como roteirista de TV, os outros três como jornalistas. Pode parecer a maior das banalidades, mas numa mesa de novos e seminovos achei muito significativo. Talvez indique que está passando aquele sarampo neo-romântico que acometeu muita gente nos últimos anos: tratar a literatura como se ela simplesmente devesse ao escritor sua subsistência, ainda que precária, e que qualquer desvio dessa rota é uma sórdida traição à arte.
Luiz Melodia fez um showzaço ontem à noite em Parati, misturando sambas antigos com sucessos de seu próprio repertório. Pouca gente se animou a mexer as cadeiras, apesar da banda afiada: intelectual é fogo. Mas o coro de centenas de vozes da platéia nos primeiros versos de “Estácio, holly Estácio” compensou. Para ser tudo perfeito, só faltou Melodia acertar o nome da festa, que chamou, repetidas vezes, de “Flic”. Uma espécie de Flip com soluço.
A Flip começou cabeçuda, densa, talvez um pouco fria, com a conferência do crítico Roberto Schwarz sobre “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, o homenageado da festa este ano. Schwarz é um analista brilhante da obra machadiana, ponto. A leitura que faz do velho Joaquim Maria como o mais ácido crítico das relações de dominação de um país patriarcal e escravocrata é tão luminosa que, para mim, mais do que jogar novas luzes sobre o autor, ajuda a espantar as próprias sombras de irrelevância que costumam rondar a literatura. Mas quem já leu seus dois livros essenciais sobre o tema, “Ao vencedor as batatas” e “Um mestre na periferia do capitalismo”, não encontrou muita novidade na mesa terminada agora há pouco. A não ser, talvez, quando Schwarz terminou a leitura de seu ensaio e passou a responder perguntas da platéia. O clima de improvisação fez bem à noite. É interessante sua tese de que a virada ocorrida no conceito de Machado, de jóia do conservadorismo brasileiro a autor subversivo, coincidiu com o golpe militar de 1964, quando, na opinião dele, os últimos resquícios do otimismo modernista foram soterrados e “todo mundo perdeu a ilusão com a elite brasileira”. De repente,…