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Começos (ainda) inesquecíveis: Albert Camus

Logo depois de seu primeiro aniversário (hoje está perto de completar dois anos e meio), o blog zerou uma dívida importante. Post publicado em 23/5/2007: * Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: “Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames”. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem. O Todoprosa completou um ano no início deste mês e paga agora uma dívida que tem a mesma idade: foi nas férias, pensando na vida, que me ocorreu o absurdo (palavrinha apropriada) de ainda não ter publicado nesta seção o primeiro parágrafo de “O estrangeiro” (Record, tradução de Valerie Rumjanek), novela lançada em 1942 pelo escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960). Parece que todo esse atraso teve algo a ver com a determinação de fugir do óbvio ou coisa parecida. Desculpa porca. Mais do que proporcionar ao leitor um começo realmente inesquecível, o narrador Mersault, ao anunciar a morte de sua mãe em tom tão frio, está escrevendo a epígrafe de uma época que ainda é a nossa.

Candidato
A palavra é... / 30/08/2008

A palavra “candidato” vem do latim candidatus, termo derivado do adjetivo candidus, que significa, segundo o Houaiss, “branco, alvo, cândido; vestido de branco; radioso, brilhante; belo, formoso; sereno; feliz, ditoso”. Embora todo esse leque de conotações positivas fosse obviamente bem-vindo, o sentido de candidatus nasceu literal: queria dizer apenas vestido de branco. Aqui estamos na fronteira entre a política e a moda: na Roma Antiga, os aspirantes a qualquer cargo público só se apresentavam diante dos eleitores metidos em togas imaculadamente alvas. O costume, tão arraigado que passou a nomear os próprios políticos em campanha, foi analisado da seguinte forma no início do século 18 por Rafael Bluteau, em seu Vocabulário Português e Latino, o primeiro grande dicionário da língua portuguesa: “Candidato – Assim chamavam antigamente em Roma àqueles que pretendiam ser eleitos às dignidades, porque estes tais vestiam de branco, como se quisessem mostrar a candideza do seu ânimo na sua pretensão, dirigida só ao bem público; ou também porque queriam dar a entender que não fundavam nos seus merecimentos, mas na bondade e virtude dos que haviam de eleger, o sucesso da pretensão.” Já começado o século 21, Márcio Bueno, autor de A origem curiosa das palavras, acrescentou…

Patos em extinção
NoMínimo / 28/08/2008

Sabemos que uma era geológica mental está chegando ao fim quando a revista do “Zio Paperone” (Tio Patinhas) deixa de ser publicada na Itália, um de seus maiores santuários – mote para a contextualização assinada por Marcus Ramone no site Universo HQ: Ainda é cedo para afirmar que Donald, Tio Patinhas, Pateta, Mickey e demais personagens clássicos cairão de vez no limbo, preteridos por criações contemporâneas da Disney – incluindo as egressas dos desenhos animados 3D. Mas o número de cancelamentos de suas revistas vem acontecendo em um ritmo muito maior do que se imagina. Em Portugal e em quase toda a América Latina, outrora contumazes mercados consumidores dessa turma, os personagens já não são mais publicados. E os exemplos continuam. Por muito tempo populares no Egito e em outros países do Oriente Médio, os gibis Disney retornaram àquela região em 2005, após dois anos fora de circulação. Mais de dez títulos foram lançados na época, dos quais apenas quatro conseguiram sobreviver aos novos cancelamentos (um deles, para o público feminino, mostra somente as aventuras de Branca de Neve, Aurora, Bela e outras – as Princesas, que vêm fazendo sucesso no mercado de licenciamento ao redor do mundo). Quando a…

L’Éducation Digitale
NoMínimo / 27/08/2008

Quanto mais experiência eu ganho em minha arte, mais ela me atormenta. O problema é que a imaginação fica estacionada enquanto o gosto amadurece. Poucos homens, eu creio, terão sofrido tanto quanto eu pela literatura. POSTED BY GUSTAVE FLAUBERT, 4 NOVEMBER, 1857 Se George Orwell conseguiu virar blogueiro 58 anos depois de morto, por que não?

O Modesto Diagrama Universal da Arte
NoMínimo / 26/08/2008

Para ser mais ambicioso, só se invadisse o terreno do divino. O diagrama acima busca dividir em tribos e agrupá-las em relação a eixos definidos por pares de valores opostos todos os praticantes de todas as formas de arte que jamais existiram. Ridículo, não? No entanto, depois que se começa a brincar com a idéia, não dá vontade de parar. Em nome da justiça é preciso esclarecer que o tal diagrama, atração de hoje no blog de livros do “Guardian” (em inglês, acesso gratuito), não se apresenta com a pompa sugerida no parágrafo acima. Foi bolado por Scott McCloud, um estudioso de histórias em quadrinhos, aparentemente em veia lúdica, como instrumento para animar palestras. Mas é impossível olhar para ele sem cair na tentação de catalogar o mundo. Para melhor apreciar o brinquedo, convém saber que a tribo dos “animistas” é definida como a dos artistas intuitivos, mais ou menos naïfs, que não têm – ou fingem não ter – consciência dos filtros que se interpõem entre a matéria bruta que arrancam das entranhas e o produto final. Aparecem no diagrama como cultores do “conteúdo” não tanto por escolha, mas porque mal enxergam outros valores na arte. Majoritária entre artistas…

Começos (ainda) inesquecíveis: Machado de Assis

Para que 2008 fosse o ano do homem também por aqui, faltava republicar este post de 3/9/2006: * AO LEITOR Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, cousa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião. Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor…

Nepotismo
A palavra é... / 23/08/2008

A notícia é excelente: o Supremo Tribunal Federal declarou ilegal o nepotismo, a prática de favorecer parentes com empregos públicos. Resta saber se isso bastará para extirpar uma crença tão trançada em nossa armação social – a crença no direito sagrado ao favorecimento, à mamata – que chega perto de constituir uma religião. A palavra nepotismo desembarcou no português no início do século 18. Vinha em última análise, provavelmente via francês, do latim nepos, nepotis – “sobrinho ou neto”. Mesmo antes de ganhar um nome, a prática já se espalhava feito praga por todos os cantos do poder na então colônia portuguesa. Casava-se à perfeição com a lógica de uma sociedade escravocrata que praticamente desconhecia – e levaria ainda muito tempo para começar a reconhecer – o valor do trabalho livre. A metáfora religiosa usada ali em cima é mais pertinente do que parece: a palavra nasceu para designar os privilégios de que gozavam os sobrinhos de certos papas na hierarquia da Igreja (netos não, apesar da ambigüidade da palavra latina, pois pelo menos em tese o Sumo Pontífice não devia tê-los). Nas palavras do filólogo brasileiro Silveira Bueno, fica assim: “Nepotismo – Proteção aos sobrinhos, criação italiana visando aos…

Nada será como antes
NoMínimo / 22/08/2008

Trechos dos romances finalistas do Booker poderão ser lidos – ou ouvidos – de graça no celular. Definitivamente, este é o ano em que o tradicional prêmio britânico decidiu desbundar de vez em forma e conteúdo: como comentado aqui, a “lista longa” dos finalistas inovou ao incluir um thriller assumido, “Criança 44”. Acessíveis por celular estarão apenas trechos dos livros da “lista curta”, a dos finalistas entre os finalistas, que será anunciada dia 9 de setembro. É improvável que as frases frondosas de Salman Rushdie, considerado o favorito, façam tanto sucesso numa telinha de celular quanto a prosa escrita especialmente para o novo meio que causa furor no Japão. Em todo caso, para quem ainda duvida, é mais uma prova de que o chão está se mexendo.

Ponto-e-vírgula; morto?
NoMínimo / 21/08/2008

Num artigo recente para o “Boston Globe” (em inglês, acesso gratuito), Jan Freeman comenta a queda em desgraça do ponto-e-vírgula, que não vem de hoje. Segundo um estudo restrito à língua inglesa, sua incidência teria despencado de 68,1 para 17,7 (por mil palavras) entre os séculos 18 e 19. O século 20 não é mencionado, mas suponho que um levantamento semelhante encontraria esse sinal de pontuação – “que indica pausa mais forte que a da vírgula e menos que a do ponto”, segundo o Houaiss – chegando perto de encostar no zero à medida que nos aproximássemos do 21. Kurt Vonnegut, que chamava o ponto-e-vírgula de “travesti hermafrodita”, foi apenas um dos escritores que ajudaram a difamá-lo como figurinha pedante, esnobe, cricri, desprovida de sentido e até, na formulação machista de um de seus detratores, mariquinhas. Acho um exagero. Embora procure usar o ponto-e-vírgula com a maior parcimônia possível – basicamente em enumerações em que um ou mais elementos contenham vírgulas internas, caso em que ele é indispensável à clareza – e não o recomende efusivamente a quem está em busca de um estilo, prefiro pensar nele como mais um recurso no arsenal da língua. Se até a insuportável mesóclise…

Ainda Kafka: a barata que não era
NoMínimo / 20/08/2008

A recente aparição de Franz Kafka neste blog, embora talvez motivada por interesses menores (de um crítico inglês, não meus, como se pode conferir aqui embaixo), teve pelo menos um efeito divertido: o leitor Eric Novello explorou num comentário certa ambigüidade semântica característica do português brasileiro para declarar: Nunca mais verei a barata do Kafka da mesma forma! Claro que a piada seria inviável se Gregor Samsa tivesse virado um besouro. Acontece que virou – e agora estou falando sério. A discussão sobre qual bicho é aquele da novela “A metamorfose” não é brincadeira. No primeiro parágrafo do livro, em que o Samsa insetificado faz sua brusca entrada em cena, Kafka é vago. O original fala em ungeheueren Ungeziefer, que quem conhece alemão – não é o meu caso – garante ser algo como “monstruoso inseto repulsivo”. Em outros pontos da narrativa, porém, ligeiras pistas morfológicas parecem indicar que Kafka se refere a um inseto da família dos coleópteros, sem maiores detalhes além de suas dimensões avantajadas de monstro. Essa família inclui diversos tipos de besouro, joaninhas e vagalumes. Baratas não. Para se ter uma idéia da gravidade dessa questão líterário-zoológica, ninguém menos que Vladimir Nabokov, admirador de “A metamorfose”,…

Deixadinha
Sobrescritos / 18/08/2008

Quando João começou a namorar Letícia, todo mundo apostava numa relação de um mês ou dois, três no máximo. Ficava por aí a média dele. Galinha famoso na rede do Leblon que ambos freqüentavam, João era medíocre no vôlei de praia, mas compensava a insuficiência atlética com uma condição de semicelebridade artística – advinda de sua inclusão numa antologia de jovens contistas, quatro anos antes – para ir ampliando um currículo amoroso que beirava o lendário. Letícia, nova e inexperiente, jogava o fino na areia, com um talento especial para as deixadinhas, mas a verdade é que tinha tudo para ser só mais uma naquele placar. O jogo começou a virar quando, surpreendendo o pessoal da praia, Letícia passou a bater bola com João no campo dele. Nos e-mails que trocavam diariamente, a menina, quem diria, se revelou talentosa também com as palavras. João, que preferia namorar atletas justamente por se saber indefeso diante de intelectuais, acusou o golpe. Ponto a ponto, seu bloqueio foi virando uma peneira. O terceiro mês de namoro passou, veio o quarto. O quinto. O sexto já ia pelo meio quando, ao pé de uma mensagem despretensiosa em que Letícia contava ter dormido mal na…

Começos (ainda) inesquecíveis: Franz Kafka

E já que falamos no homem… Post publicado em 23/9/2006: * Quando Gregor Samsa despertou, certa manhã, de um sonho agitado, viu que se transformara, em sua cama, numa espécie monstruosa de inseto. Eis o primeiro parágrafo de “A metamorfose” (Civilização Brasileira, tradução de Brenno Silveira, 5.a edição, 1988), do escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924). Sem comentários.

Recorde
A palavra é... / 16/08/2008

A profusão de recordes batidos nos Jogos Olímpicos de Pequim e sua extensa cobertura põem em evidência uma dúvida de pronúncia que sempre acompanhou esse termo importado do inglês record. Afinal, devemos falar récorde, palavra proparoxítona, como a maioria dos locutores e comentaristas da TV? Ou, seguindo a recomendação de dez entre dez sábios, recórde, paroxítona? Trata-se de um caso clássico em que a língua da vida real vai para um lado e a dos estudiosos para o outro. “Recorde”, estrangeirismo consagrado há décadas em todos os dicionários, pode ser substantivo – com o sentido de marca esportiva, desempenho a ser superado – ou adjetivo: tempo recorde, velocidade recorde. Até aí ninguém briga. A divergência começa na hora de definir a prosódia. Em seu Dicionário de palavras e expressões estrangeiras, Luís Augusto Fischer observa com bom humor que há “duas pronúncias: a que os gramáticos preferem, rre-CÓR-dji, ou a do resto da humanidade, RRÉ-cor-dji”. É mais ou menos isso. Basta substituir, na frase de Fischer, “o resto da humanidade” por “a maioria dos brasileiros” que ela fica perfeita. Em Portugal, os falantes se inclinam por recórde. Uma possível explicação para o descompasso: os portugueses manteriam a pronúncia que record ganhou…

O que Kafka fazia no banheiro
NoMínimo / 15/08/2008

É mais enrolada do que parece a última polêmica “literária” européia, que põe de um lado uma tropa de críticos de língua alemã e do outro, sozinho, o acadêmico e escritor inglês James Hawes, que publicou ontem a biografia “Excavating Kafka”, sobre o escritor tcheco (aqui, em inglês, acesso livre). Sem ler o livro é impossível opinar sobre quem tem razão, se é que alguém tem, mas o resumo do arranca-rabo, em três tempos, é o seguinte: 1. Hawes dá destaque ao fato de Kafka ter sido assinante de revistas pornográficas chiques, algumas, segundo ele, de arrepiar. 2. Os kafkólogos de língua alemã se unem para acusar Hawes de puritanismo, marquetagem e até, de forma que parece um tanto obscura, anti-semitismo. Alegam que as revistas eram adultas, mas traziam imagens estilizadas, “artísticas” e não pornográficas. 3. Hawes contra-ataca falando em “conspiração de censura” e dizendo que seu foco não é bem o gosto de Kafka por pornografia, mas o fato de que gerações de críticos e biógrafos, tendo examinado com lupa cada bilhete banal jamais escrito pelo gênio de Praga na tentativa de decifrar sua personalidade esquisitona, tenha feito silêncio sobre um dado tão suculento. Hmm. Em primeiro lugar, mesmo…

O pensamento voa, as palavras andam
NoMínimo / 14/08/2008

Gosto de livros de citações. Seria cômodo dizer que minha eterna busca de frases espirituosas sobre o ato de escrever, provocada pela necessidade de renovar pelo menos uma vez por semana a epígrafe do Todoprosa, me levou a uma convivência íntima com eles. Mas é mais honesto reconhecer que não foi essa a ordem dos fatores. Há um modo melhor e um modo pior de apreciar um livro desses. O pior é transformá-lo em algo próximo do vire-um-super-algo-em-dez-lições, um depósito de sabedoria concentrada que vai “direto ao ponto” – sendo o ponto, naturalmente, o aprendizado, o lucro ou a redenção do leitor. Para muita gente, não faz sentido ler coisa alguma se tal perspectiva contábil ou salvacionista não estiver no horizonte. E se os manuais de auto-ajuda são mais úteis pelo lado prático, coleções de frases gozam de boa reputação como instrumento aplicador de verniz e repositório de lições de moral. Provêm o cidadão de uma erudição de laboratório nada insatisfatória quando se sabe que a erudição propriamente dita dá um trabalho danado, além de poder tornar o sujeito um ermitão, um esquisito. Já a maneira melhor de ler um livro desses é ver nele um jogo, um jogral em…

De Kindles e boitatás
NoMínimo / 12/08/2008

As conversas sobre o livro na era eletrônica, tema da reportagem que recomendei no post de ontem, têm muito a ganhar com esta nota do site nova-iorquino “Gawker” sobre o Kindle, a maior aposta – ao lado do Sony Reader – de quem acredita, discordando de Steve Jobs, que aparelhos eletrônicos dedicados à leitura vão revolucionar a indústria editorial em poucos anos: Já houve dezenas de supostas aparições, mas você ou alguém que você conhece já viu realmente um Pé-Grande – ou uma pessoa de verdade usando o leitor eletrônico de 400 dólares da Amazon? Sim, o Citigroup informa que as vendas estão “melhores do que se esperava” e prevê que “a Amazon venderá até 380 mil Kindles em 2008, bem acima da previsão inicial de 190 mil”. Pensamento positivo? Papo de maluco? Nós exigimos provas fotográficas autênticas. Sim, o “Gawker” tem um tom venenoso, bitchy, no limite da irresponsabilidade – essa é uma de suas atrações. Erra bastante. E acerta muito também. (A propósito: de maluco ou não, e ao contrário do que sugeriu um leitor ontem, essa conversa toda me parece bem distante do seminário dedicado a discutir a “web literária”, blogs de escritores etc., que o site…

Link para o ‘Link’
NoMínimo / 11/08/2008

O caderno de informática do “Estadão”, o Link, traz hoje, em quatro páginas, a mais completa e arejada reportagem que já vi na imprensa brasileira sobre todas as questões que envolvem o livro na era digital, assinada por Bruno Galo.