Antes que o ano vire, transformando o talão de cheques numa armadilha para o automatismo da mão apegada ao passado recente e, em sábia compensação, tornando cada vez mais raro à medida que o século envelhece o próprio uso desse mico-leão-dourado analógico chamado talão de cheques; Antes, portanto, que seja tarde demais para dar a uma frase longa e convulsa como a do parágrafo anterior o desconto do urgente espírito retrospectivo impressionista que baixa todo fim de ano sobre escribas dos mais variados estilos e confissões; Antes, enfim, que estourem fogos e rolhas e sacos, declare-se aqui com a clareza permitida pela ressaca do último espumante que, das leituras que fiz em 2008, não só o já mencionado “Austerlitz” merece citação nominal pela capacidade de se manter na memória; Pois haveria grande injustiça em não lembrar livros como “Sem sangue” (Companhia das Letras), de Alessandro Baricco, e “Black music” (Objetiva), de Arthur Dapieve, duas novelas curtas tão diferentes e ao mesmo tempo tão curiosamente conectadas, com seu recheio de violência extrema e suas cenas finais de sexo carregadas de uma simbologia estranha, de uma luz triste mas ainda redentora – no caso do italiano, a cópula reinventada como agridoce vingança;…
Fique tranquilo: não são tão frequentes assim as palavras que têm sua grafia alterada pelo novo acordo da língua portuguesa, que estreia oficialmente na virada do ano. Se a ideia o deixa paranoico, temendo uma sequência de erros que acabe em quiproquó, recomenda-se aguentar firme. Um parágrafo como este, com seus oito exemplos de alteração em poucas linhas, seria um acidente raro se não fosse deliberado. Dos exemplos acima, a maioria tem a ver com a morte do trema. Abolido em Portugal desde 1946, esse sinal diacrítico tem seus simpatizantes, mas representa o menor dos problemas que aguardam os brasileiros nessa fase de transição ortográfica. Isso porque se trata de uma regra cristalina e, sobretudo, sem exceção: cinquenta, linguiça, delinquente, equidade, sequestrador… Basta abolir os dois pontinhos horizontais de tudo (menos, claro, de vocábulos estrangeiros, que estão sujeitos a outras regras) que não há como errar. Vale lembrar que a pronúncia dessas palavras permanece a que sempre foi. A reforma é ortográfica, ou seja, limita-se à forma de escrever. Os demais exemplos do parágrafo de abertura se referem a outra mudança de impacto, no sentido de afetar um grande número de palavras, mas também de fácil assimilação por sua clareza….
O dramaturgo inglês Harold Pinter morreu ontem, de câncer, aos 78 anos. Nobel de Literatura de 2005, Pinter, muito doente, não pôde comparecer à cerimônia de premiação, mas gravou um discurso que foi exibido em Estocolmo. Então ficou claro que a saúde debilitada não tinha enfraquecido sua combatividade. O discurso incluía este irônico monólogo para George W. Bush – que àquela altura, convém lembrar, ainda tinha pencas de defensores ferrenhos por aí: Deus é bom. Deus é ótimo. Deus é bom. O meu Deus é bom. O deus de Bin Laden é mau. É mau o deus dele. O deus de Saddam também era mau, a não ser pelo fato de que ele não tinha um. Ele era um bárbaro. Nós não somos bárbaros. Nós não cortamos cabeças. Nós acreditamos na liberdade. Deus também. Eu não sou um bárbaro. Sou o líder democraticamente eleito de uma democracia que ama a liberdade. Somos uma sociedade compassiva. Aplicamos eletrocussões compassivas e injeções letais compassivas. Por mais que seja revoltante confrontar dessa forma um dos grandes escritores do século 20 com um anão moral, não deixa de ser tentador pensar que, agora que Bush está (espera-se) politicamente morto, Pinter pôde finalmente se deixar…
Às sete horas da noite, chegaram com os trapos encharcados de chuva a uma fazendinha. O temporal pegou-os na estrada e entre os trovões e relâmpagos a mulher dava gritos de dor. — Vai ser hoje, Faustino, Deus me acuda, vai ser hoje. O carreiro morava numa casinha de sapé, do outro lado da várzea. A casa do fazendeiro estava fechada, pois o capitão tinha ido para a cidade há dois dias. — Eu acho que o jeito… O carreiro apontou a estrebaria. A pequena família se arranjou lá de qualquer jeito junto de uma vaca e um burro. O “Conto de Natal” do maior cronista brasileiro está muito longe de ser daqueles que aquecem o coração. Mas é bom. Feita essa advertência, clique aqui se quiser ler a história inteira, publicada no site Releituras. Feliz Natal.
Eu tinha decidido não fazer uma retrospectiva este ano – não uma convencional, pelo menos, daquele tipo que elege os três ou cinco ou dez melhores livros que me passaram pelos olhos entre janeiro e dezembro. E não só porque o formato me parece meio cansado, mas porque 2008 para mim foi um ano de leituras atípicas. Li muito, mas de forma dirigida e sobretudo obras de não-ficção, como pesquisa para o romance histórico que estava escrevendo. O resultado foi que boa parte dos romances e contos que teriam me interessado em condições normais engarrafou numa fila monumental. Foi o convite do Daniel Lopes, editor do Amálgama, que me obrigou a revirar a memória para buscar o livro mais marcante que li em 2008 – e só então descobri que o ânimo retrospectivo que assola a imprensa todo fim de ano tem lá sua razão de ser. Sem essa pauta, acho que eu não teria me tocado de algo que parece, mais que óbvio, necessário: meu romance (agora pronto) não passou o ano cercado apenas de velhos volumes de História e montanhas de recortes de jornal. Reproduzo abaixo o textinho que saiu hoje no Amálgama. Para ler as indicações dos…
Irmãos humanos, permitam-me contar como tudo aconteceu. Não somos seus irmãos, vocês responderão, e não queremos saber. É bem verdade que se trata de uma história sombria, mas também edificante, um verdadeiro conto moral, garanto a vocês. Corre o risco de ser um pouco longa, afinal aconteceram muitas coisas, mas, se calhar de não estarem com muita pressa, com um pouco de sorte arranjarão tempo. Além do mais, isso lhes diz respeito: vocês verão efetivamente que lhes diz respeito. A voz metálica de Max Aue, o ex-nazista monstruoso – mas, ele tem razão, humano – que carrega uma história “um pouco longa” de 900 páginas e 6 milhões de mortos para contar, preenche o início de “As Benevolentes” (Alfaguara, 2007, tradução de André Telles), de Jonathan Littell, com uma ressonância sinistra que, entre modulações mais ou menos violentas, persiste até o fim. Quem se interessar em saber mais sobre o romance, um grande livro grande, pode ler a resenha que publiquei na época aqui.
Os sapatos que o jornalista iraquiano Muntazer Al Zaidi atirou em George W. Bush com excelente pontaria – mas não tão boa quanto o reflexo do presidente americano ao se desviar dos petardos – têm tudo para ficar na história como a imagem mais marcante de um melancólico fim de mandato. O peso simbólico da cena já era evidente antes mesmo de sermos informados de que, na cultura árabe, é um insulto humilhante atirar calçados contra alguém. Pouco importa que, na Europa da Idade Média, um costume de origem obscura considerasse o mesmo ato um gesto simpático, equivalente a um voto de boa sorte. Para os propósitos desta coluna, a elevação de um objeto tão corriqueiro ao estrelato do noticiário político internacional é uma oportunidade única para abordar um aspecto bem diferente da questão: a posição singular ocupada pelo sapato, que é um artefato dos mais – digamos assim – pedestres e rasteiros, mas ao mesmo tempo um dos grandes mistérios etimológicos ocultos em nosso vocabulário cotidiano. Os etimologistas nunca conseguiram sequer chegar perto de um acordo sobre a origem do termo português sapato, do espanhol zapato, do francês savate, que significa sapato (ou chinelo) velho, e do italiano ciabatta,…
Desconfio das palavras “pessimismo” e “otimismo” – diz Milan Kundera. – Um romance não afirma nada; ele busca e formula questões. Não sei se minha nação vai morrer e não sei qual dos meus personagens tem razão. Eu invento histórias, ponho uma em confronto com a outra, e dessa maneira faço perguntas. A burrice das pessoas vem de elas terem uma resposta para tudo. A sabedoria do romance vem de ele ter uma pergunta para tudo. Quando dom Quixote saiu pelo mundo afora, esse mundo se transformou num mistério diante de seus olhos. É esse o legado que o primeiro romance europeu deixou para toda a história subseqüente do romance. O romancista ensina o leitor a compreender o mundo como uma pergunta. Nessa atitude há sabedoria e tolerância. Num mundo baseado em certezas sacrossantas, o romance morre. O mundo totalitário – seja ele baseado em Marx, no Islã ou em qualquer outra coisa – é um mundo de respostas e não de perguntas. Seja como for, creio que em todo o mundo as pessoas hoje em dia preferem julgar e não compreender, responder e não perguntar, de modo que a voz do romance é difícil de ouvir em meio a…
Enquanto isso, vão crescendo os sinais de desespero nas hostes estropiadas de uma certa “literatura do caralho”: Eu sou bom pra caralho, e se vocês não concordam, vão todos se fuder! Meus amigos também são bons pra caralho. E o Tezza é uma merda. O Tezza não é meu amigo, porra! Nunca respondeu meu email. E vão todos se fuder. Não concordam, seus ridículos, idiotas, débeis mentais? Então vão cagar pra dentro! Sentar numa touceira de pica! Agasalhar uma brachola bem gorda! Manja se fuder? Pois é. O Lula falou sifu, eu não, que eu não tenho essas etiquetinhas de burguês, porra! Eu incomodo mesmo e foda-se. Se fuder, valeu? Fu-der! Seus filhos bastardos de uma égua leprosa, pederastas escrotos, eu sou tão bom! Publicado ou não, lido ou não, solenemente ignorado ou não, publicamente humilhado ou não, eu sou bom, bom, bom, booooom! Entenderam ou querem que eu repita? Sou, porra. Meus amiguinhos também. O Tezza não. O Tezza é uma merda. Novela das oito perde, uma merda inacreditável. Se a gente tivesse neste país uma crítica de alto nível, com argumentos de verdade, não sobrava nada dele. Mas o nível de vocês é tão baixo, tão baixo! Eu…
Presente de Natal do YouTube, esse Papai Noel moderno: Vladimir Nabokov falando longamente de literatura em seu inglês de forte sotaque russo num documentário narrado em francês (via Omnivoracious, o blog da Amazon). Além de ler as primeiras linhas de “Lolita” em seu idioma natal e naquele que adotou, o grande escritor despeja diante da câmera, com uma marra monumental que me pareceu temperada por uma leve mas inequívoca sugestão de molecagem, strong opinions mais devastadoras que as de qualquer personagem de Coetzee. Como estas: Fico perplexo e me divirto com as idéias fabricadas sobre supostos “grandes livros”. Que, por exemplo, o asinino “Morte em Veneza”, de Mann; o melodramático e pessimamente escrito “Doutor Jivago”, de Pasternak; ou as crônicas caipiras de Faulkner possam ser considerados obras-primas, ou pelo menos aquilo que os jornalistas chamam de “grandes livros”, é para mim o mesmo tipo de ilusão de quando uma pessoa hipnotizada faz amor com uma cadeira. Nunca é demais lembrar: ano que vem a Alfaguara brasileira participa do lançamento mundial de The original of Laura, um Nabokov inédito.
É bem bonitinha essa animação – uma cidade toda feita de livros, pela qual transitam personagens de papel – que o selo editorial americano Fourth Estate, da HarperCollins, lançou na internet para comemorar seus 25 anos. (Dica do blog de livros da “New Yorker”, que recomenda o filminho para quem anda cabisbaixo com a morte anunciada do livro de papel.)
Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo; eu estava deitado no assoalho do meu quarto, numa velha pensão interiorana, quando meu irmão chegou para me levar de volta; minha mão, pouco antes dinâmica e em dura disciplina, percorria vagarosa a pele molhada do meu corpo, as pontas dos meus dedos tocavam cheias de veneno a penugem incipiente do meu peito ainda quente; (…) Nunca, na literatura brasileira, teve a velha quiromania, o onanismo, a punheta, o cinco-contra-um tratamento verbal tão suntuoso quanto no início – aqui em corte arbitrário, pois os pontos-e-vírgulas ainda vão longe – do romance “Lavoura arcaica” (Companhia das Letras, 3a. edição, 1989), obra-prima publicada em 1975 por Raduan Nassar.
Bem que a língua portuguesa tentou forjar um similar nacional: mercadologia e até mercadização são palavras dicionarizadas, mas de aplicação cada vez mais rara na vida real. O vocábulo importado diretamente do inglês, marketing, sem outra adaptação que não a do sotaque local, acabou prevalecendo de tal forma que suspirar hoje por seus sucedâneos fracassados seria tão cômico quanto lamentar que o futebol não se chame balípodo ou ludopédio. Pois é mesmo no marketing e não no balípodo que, pelo menos até prova em contrário, Ronaldo Fenômeno continua sendo craque. Segundo o Houaiss, a língua de Henry Ford viu nascer por volta de 1920 a moderna acepção de marketing, palavra que até então era apenas a forma nominal do verbo to market, “negociar”. Surgia a acepção de conjunto mais ou menos organizado de técnicas comerciais com foco fechado no consumidor, que desse modo deveria ser sondado por meio de pesquisas, bajulado por campanhas publicitárias e acompanhado no chamado “pós-venda”. O mesmo dicionário registra a chegada do termo por aqui em torno de 1960. Hoje, quando não existe uma única área da atividade humana em que o marketing não se aplique, já há descendentes locais, como o termo (pejorativo) marqueteiro. A…
Encerra-se aqui, pelo menos para este blog, o capítulo da Copa de Literatura Brasileira 2008. E se encerra com festa. Saiu hoje o resultado da final: “O filho eterno” 11 x 3 “O dia Mastroianni”. A festa fica por conta da orgia de opiniões que o formato da competição proporciona, com todos os juízes (bom, quase todos) entrando em campo ao mesmo tempo para justificar seus votos. Todas as atrações do circo estão lá, numa diversidade bonita de ver. Melhor ainda quando se constata que, no balanço final, o ambiente conserva uma sanidade básica, que também pode ser chamada de inteligência coletiva. Por mais que se deva – e se deve mesmo – desconfiar das consagrações unânimes, se o grande livro de Cristovão Tezza deixasse de levar mais esse “título”, perdendo para o livrinho apenas bom de João Paulo Cuenca, haveria motivo de preocupação. Houve até um bônus inesperado: Nelson de Oliveira compareceu mais sério, suando a camisa de árbitro, em contraste dramático com sua primeira atuação na Copa. Enfim, não sei se isso tem a ver com o efeito embriagante de toda festa, mas termino minha participação na CLB com vontade de retocar as críticas à edição deste ano…
O vetusto e alquebrado escritor permanecia inédito, desprezado por casas editoriais grandes e pequenas, não obstante os tenazes esforços do espírito que lhe haviam consumido a saúde na lida com as exigências da criação, as quais, sendo artista consciente e de talento raro, equacionara de modo tão sutil e original que terminou por se distanciar irremediavelmente de seus contemporâneos. Na hipótese mais benevolente, seria compreendido pela geração de seus bisnetos. Bisnetos que, bem entendido, tinham na frase papel meramente retórico, pois entre os departamentos da vida que o artista mantivera lacrados para se entregar por inteiro à literatura, essa górgona voraz, avultava a paternidade. Tinha um sobrinho; isso tinha. Rapazola tresloucado, boêmio, compunha a figura de um perfeito doidivanas, mas um doidivanas de boa aparência e traquejo social incomum. Sapato bicolor e mecha rebelde desabada sobre os olhos, surgiu-lhe esse sobrinho certa noite, em sonhos, como peça-chave de um plano insensato. O escritor tentou escorraçar a extravagante idéia, decerto germinada no lado negro de sua alma ferida, mas o sonho se repetiu. Noite após noite o sonho se repetiu, até que o juízo combalido do homem lhe desse passagem e ele adentrasse, aos pinotes, a terra da vigília. Não devemos…
A entrevista que fiz com Millôr Fernandes para a “Bravo!” deste mês – e que pode ser lida no site da revista – deixou de incluir, por razões de espaço, algumas histórias impagáveis do genial humorista-escritor-desenhista-dramaturgo-e-o-escambau. Felizmente, os cinco minutos e pouco de conversa que estão disponíveis em arquivo sonoro no site incluem, entre outras delícias, uma veemente defesa milloriana do trocadilho da qual consta esta frase que o crítico literário Agrippino Grieco endereçou a seu desafeto Menotti del Picchia: Menotti del Picchia, fecha a barguilha do teu nome!
Jamais a conheci em vida. Ela existe para mim através dos outros, como prova dos caminhos em que a sua morte os lançou. Voltando ao passado, buscando apenas fatos, eu a reconstruí como uma menina triste e uma prostituta, quando muito alguém-que-poderia-ter-sido, rótulo que também poderia se aplicar a mim. Gostaria de lhe ter concedido um final anônimo, de tê-la relegado a breves palavras de detetive, num relatório sumário de homicídio, com cópia carbono para o legista, e mais papelada para enterrá-la em vala comum. O único erro em relação a esse desejo é que ela não teria gostado que fosse assim. Por mais brutais que sejam os fatos, ela gostaria que fossem todos revelados. E como lhe devo muito e sou o único que sabe a história inteira, incumbi-me de escrever essas memórias. Dois começos em um: o de “Dália negra” (Record, 2006, tradução de Cláudia Sant’Ana Martins), romance lançado em 1987, e o da carreira brilhante de James Ellroy, um escritor que, embora a tentação seja grande, não dá para enfiar no escaninho “policial” – pelo menos não sem esquartejá-lo antes.