Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho. Dirigi-me a alguns amigos, e quase todos consentiram de boa vontade em contribuir para o desenvolvimento das letras nacionais. Padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira aceitou a pontuação, a ortografia e a sintaxe; prometi ao Arquimedes a composição tipográfica; para a composição literária convidei Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do Cruzeiro. Eu traçaria o plano, introduziria na história rudimentos de agricultura e pecuária, faria as despesas e poria o meu nome na capa. O intrigante começo de “São Bernardo” (1934), de Graciliano Ramos (39.a edição, Record, 1983), apareceu aqui no blog no distante 20/6/2006. Já estava na hora de voltar.
A bomba norte-coreana que explodiu no noticiário da semana traz em seu nome ecos da Grécia antiga. É do grego bómbos – uma palavra de origem onomatopaica, isto é, de imitação de um som natural – que provêm, no fim das contas, todas as bombas e bombs e bombes que tornam minado o vocabulário da maioria das línguas do mundo. Bómbos queria dizer na origem “estrondo seco, trovão”, sentido que passaria ao latim bombus (usado ainda para designar zumbido, além de explosão). A acepção da palavra como máquina de bombear líquidos saiu da mesma fonte, por fazer também ela um barulho infernal. Detonada a primeira bomba, seguiu-se uma reação em cadeia. O inglês foi buscar bomb no francês bombe, que por sua vez viera do italiano bomba. O termo estreou oficialmente em nossa língua em 1572, num verso de “Os Lusíadas”, de Luís de Camões: “As bombas vêm de fogo, e juntamente/ As panelas sulfúreas tão danosas”. Acredita-se que tenhamos importado o vocábulo do espanhol. Naquele tempo as bombas eram estalinhos comparadas às que o século 20 inventaria. Mesmo assim, no início dos 1700, o pioneiro “Vocabulário Português e Latino” não escondia o assombro com o poder destrutivo da bomba:…
O caso do recolhimento, pelo governo de Santa Catarina, de 130 mil exemplares do livro “Aventuras provisórias”, do catarinense Cristovão Tezza, depois de adquiri-los para distribuição na rede escolar em licitação do ano passado, está bem contado nesta reportagem do “Diário Catarinense”, que ouve todos os lados envolvidos na história. Inclusive uma professora que justifica a proibição com ataques morais ao livro – “chulo e em alguns parágrafos a relação sexual é abordada de maneira banal” – e o próprio escritor, que, elegantemente, evita dar ao caso o tratamento de escândalo censório. Não creio mesmo que se trate disso. É claro que pedagogos têm o direito de escolher o que vão apresentar a seus alunos – mesmo que, no caso presente, a faixa etária de 15 a 18 anos permita supor que as cenas de sexo descritas no romance (a reportagem cita um trecho que menciona sexo oral) contenham pouca ou nenhuma novidade para a quase totalidade deles. O que o imbroglio catarinense me parece deixar evidente, com sua bateção de cabeças entre esferas do mesmo governo, é outro tipo de problema: a dificuldade extrema que o sistema educacional brasileiro tem para lidar com a literatura contemporânea, provavelmente bandeira de…
Saudação, amigo de internet! Eu é Sr. Kumbundu Wahaha, um filho de extinto ilustre escritor Sr. Dr. Kuagananga Wahaha, maior de Nigéria. Meu pai tem sido assassinado em Dezembro passado ano, 2008, por fanáticos suportadores de ex-amigo então inimigo de letras, Sr. Tutu T. Pendengas, ilustre não este, bem bastardo como uma questão de fato. A razão que eu escreve, amigo de internet, meu extinto querido pai tem deixado soma de US$ 2.993.345.558,20 (dois bilhão, novecentos noventa três milhão, trezentos quarenta cinco mil, quinhentos cinquenta oito dólares norte-americanos, mais vinte centavos) em conta de ele, fortuna de direitos de cópia de melhor-vendido de ele, “Marfins sangrentos”, de Kuagananga Wahaha. Dinheiro que tem tido bancário bloqueio devido explosiva política situação em Nigéria. Ajuda nós! Caso recebemos número de conta de você em banco, senha, nome completo, eu faz hoje transferência bancária de US$ 2.993.345.558,20, via Switzerland, para amigo de internet! Depois Sr. devolve fortuna e conserva para próprio uso 20% do total valor, isto é, US$ 598.669.111,64 (quinhentos noventa oito milhão, seiscentos sessenta nove mil, cento onze dólares norte-americanos, mais sessenta quatro centavos) por modos de compensando incômodo. Eu, Sr. Kumbundu Wahaha, conta com amizade de Sr. amigo e completa discrição….
Você já leu a contista canadense Alice Munro? Eu confesso que não, e convido quem tiver lido a se manifestar aqui nos comentários. O mais-que-prestigioso prêmio Man Booker International que ela ganhou hoje pelo conjunto de sua obra e “contribuição à ficção no cenário mundial”, concorrendo com nomes como Mario Vargas Llosa, V.S. Naipaul e Peter Carey, recomenda jogar logo alguma luz nas trevas da minha ignorância. Munro tem dois livros em catálogo no Brasil: “Fugitiva” (Companhia das Letras, 2006) e “Ódio, amizade, namoro, amor, casamento” (Globo, 2004). Quem tiver pressa e inglês para tanto pode preferir seguir este bom guia de contos disponíveis online, publicado pelo blog de livros do “Guardian”. Vou passear por lá, quem sabe volto ao assunto.
Com o tempo aprendi que o ciúme é um sentimento para proclamar de peito aberto, no instante mesmo de sua origem. Porque ao nascer, ele é realmente um sentimento cortês, deve ser logo oferecido à mulher como uma rosa. Senão, no instante seguinte ele se fecha em repolho, e dentro dele todo o mal fermenta. São trechos lapidares como esse, prontos para ascenderem da página contingente que temos diante do nariz ao repositório atemporal da sabedoria do idioma, que sustentaram meu prazer de ler “Leite derramado” (Companhia das Letras, 196 páginas, R$ 36), a nova novela – sim, novela, novelíssima, não romance – de Chico Buarque. Na estrutura, no arco tensionado da narrativa, sou obrigado a discordar da maioria dos exegetas e considerar “Budapeste” um livro muito mais instigante e coeso. Mas, se o leite às vezes fica meio aguado, não me parece um prêmio de consolação banal dizer que certas páginas ou frações de página exibem uma prosa que ousa passar uma cantada na perfeição, coisa rara na literatura brasileira contemporânea. Imagine-se que, ao trecho anterior, segue-se a comicidade do seguinte, para ter uma idéia do pêndulo que move todo o livro: O ciúme é então a espécie mais…
Tentei de novo falar com você esta madrugada, mas o quintal estava povoado de lobos ganindo contra minha sombra. As feras da tua família são estúpidas o tempo todo, numa insistência que me impressiona. Vou matar todos aqueles bichos, aquelas cadelas negras, apesar da admiração que nutro pelas bestas puras. É um cerco medieval, minha musa de castelo. E como de tudo faço literatura, graças à fidelidade com que desprezo a vida e conforme minha incapacidade aberrativa de viver, acabei achando bonito aquele espetáculo de urros e pulos, de dentes e unhas na escuridão da casa, tudo para preservar a imaculada jovialidade dos teus dezesseis anos. Reconheço: o teu pai, esse monstro de asas de morcego e orelhas de burro, é mesmo um homem sutil, joga com as minhas armas, e mal sabe. E como, para completar, havia lua cheia – das derramadas – sentei no meio-fio e puxei dois charutos de maconha, com os cães latindo atrás de mim num furor melancólico. Às vezes, os livros já soam seus primeiros acordes no volume máximo. Como “Trapo” (Record, 2007, 7.a edição), romance lançado em 1988 por Cristovão Tezza.
O aumento da oferta de emprego no Brasil, embora muito modesto, é uma boa notícia – nada mais óbvio do que afirmar isso. Mas nem sempre a idéia de trabalho esteve associada a algo que se procura com afinco e que faz uma falta tremenda quando não se encontra. A origem desse termo surgido na infância de nossa língua, no século 13, com a grafia traball, é uma boa ilustração de como as palavras, seus sentidos e conotações são construídos historicamente. Para uma sensibilidade moderna, é chocante descobrir que aquele que “enobrece e dignifica o homem”, como diz o chavão, nasceu do nome em latim medieval para um instrumento de tortura, o tripalium, apresentado pelo filólogo Silveira Bueno como um artefato composto de “três paus aguçados, algumas vezes ainda munidos com pontas de ferro”. As estacas eram cravadas no solo, convergindo para um vértice no alto, e a esse esqueleto se atavam os infelizes para serem castigados ou mortos. A relação com a tortura começa a fazer sentido quando se leva em conta que, no momento histórico em que a palavra surgiu, o trabalho era uma atividade indigna reservada a subalternos, de preferência servos ou escravos. Mas a ligação pode…
Rubem Fonseca fechou contrato hoje de manhã com o selo Agir, do grupo Ediouro. Participaram do animado leilão pelo passe do escritor, conduzido ao longo desta semana, oito editoras: além da Agir concorreram Record, Objetiva, Rocco, Leya, Globo, Língua Geral e Cosac e Naify. Segundo informações não confirmadas, a proposta vencedora ultrapassa a barreira de 1 milhão de reais. O anúncio oficial será feito pela Agir na segunda-feira, dia 25. Num episódio que permanece mal explicado, Fonseca se desligou há três semanas da Companhia das Letras, que publicava seus livros há vinte anos. (Corrigido às 17h58: a editora Planeta não participou do leilão.)
Eu odiei O grande Gatsby quando o li na escola, mas achei-o glorioso ao relê-lo para meu curso na universidade, alguns anos depois. Suspeito que, aos 17, eu simplesmente não tenha entendido nada. Baixar o nível do currículo não é a solução, mas talvez tenhamos uma visão estreita demais do que deveria constar numa lista de leituras escolares. A sugestão dada por um editor, misturar clássicos com literatura contemporânea, foi descartada por muitos como um golpe de marketing, mas talvez seja um conceito que poderia se mostrar fértil nos contextos educacionais em que os estudantes fazem um grande esforço para descobrir naquilo que lêem algum tipo de relevância para a vida moderna. Diretamente do arquivo do “Guardian”, Jean Hannah Edelstein entra com este bom post de 2007 na discussão que andou rolando dia desses no Todoprosa. A causa é nobre, embora provavelmente perdida: fazer nosso sistema educacional entender a verdade ululante de que o prazer não é tudo na leitura, mas sem ele a leitura não existe.
Ela deu um meio sorriso de olhos baixos, como se tentasse ler desígnios superiores nos volteios dos pedaços de limão esmagados no fundo do copo, e disse que a maior ofensa que se costuma fazer às de sua espécie é supor como móvel de sua busca sem fim uma ilusão vizinha da loucura ou da imbecilidade – a de que os homens que dedicam a vida a simular outras vidas por escrito são mais gostosos ou tesudos, mais misteriosos ou desafiadores do que os mortais comuns. O meio sorriso virou uma gargalhada seca, tão áspera e alta que metade do bar se voltou na nossa direção, inclusive todos os garçons. Ela aproveitou para erguer o copo vazio com a mão esquerda e bater nele com a unha comprida do indicador direito, esmalte carmim, três pancadinhas que tilintaram longamente dentro do segundo de silêncio instaurado por seu riso. O garçom mais próximo assentiu com a cabeça e fez meia-volta. Se houver alguma relação, ela prosseguiu, é bem o contrário, escritores tendem a ser piores de cama do que a média dos homens: mais broxas, mais ejaculadores precoces, além de mais inseguros, mais ciumentos, mentirosos, desleais, descuidados, caspentos, fedidos, barrigudos, egoístas, frios,…
Brincadeira divertida no blog de livros do “Guardian”: qual é o personagem literário mais famoso de todos os tempos? O ponto de partida é uma alegação assumidamente publicitária da editora Penguin de que Sherlock Holmes, o detetive de Arthur Conan Doyle (com um bocado do código genético de Poe, como já comentamos aqui), seria o detentor do título. O que leva a autora do post, cética, a lhe opor um adversário mais erudito como D. Quixote e em seguida coletar com conhecidos sugestões que incluem Hamlet, James Bond e Harry Potter. Quase todos transformados em figuras ainda mais populares graças a adaptações para outros meios, claro, em especial o cinema – o jogo é esse mesmo. Começou então uma discussão animada entre os leitores. Gostei especialmente de um palpite lacônico, mas com a maior pinta de campeão: “Deus”. E no Brasil, quem você acha que ganharia um concurso de celebridades entre os personagens da ficção? A boneca Emília? A escrava Isaura? Capitu? Mônica? E por que será que só tem mulher nesta lista? E aqui está mais uma: meu voto vai para Gabriela, aquela que um dia – meninos, eu vi – subiu no telhado para pegar uma pipa.
Logo estarei bem morto por fim, apesar de tudo. Talvez no mês que vem. Será então abril ou maio. Porque o ano ainda é jovem, mil pequenos sinais me dizem isso. Pode ser que eu esteja errado e sobreviva ao dia de São João Batista ou mesmo ao 14 de Julho, festa da liberdade. Eis o começo de “Malone morre” (Malone dies, Grove Press, tradução caseira a partir da tradução feita pelo próprio autor do francês para o inglês), romance lançado em 1956 por Samuel Beckett.
O deputado que está – ou estava, até quarta-feira – se lixando para a opinião pública se lixou mesmo. Para compreender a frase anterior é preciso levar em conta dois sentidos bem diferentes, ambos coloquiais, do verbo lixar. A acepção empregada pelo gaúcho Sérgio Moraes é a de não dar importância, não ligar, ser completamente indiferente. Mas lixar-se também pode significar se dar mal ou, como registra o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, “sofrer conseqüências muito desagradáveis”. Nos dois casos, o verbo é pronominal. Diferente, portanto, do lixar propriamente dito, que quer dizer desbastar, alisar, polir. Este existe em nosso idioma desde o século 15 e é derivado de lixa, que tem origem controversa. Há estudiosos que ligam lixa ao italiano liscio, “liso”, base do verbo lisciare, “tornar liso”. Outros apostam numa relação com lixo (lixar viria de remover os excessos, o que não presta), palavra registrada já no século 13 e portanto mais antiga que liscio. E por que não uma conexão com o adjetivo liso, do latim vulgar lisium, sem passar pelo italiano? Enfim, etimologia nunca foi ciência exata. Ainda bem que, desde que uma palavra seja expressiva e funcional, os falantes estão se lixando para…
Li no jornal, naquelas letras grandes que se usam em títulos, esta palavra espantosa: corroteirista. Senti vertigem. Asco. Deslocamento. Desviei os olhos rapidamente, mas não me livrei da imagem mental hedionda, que me acompanhou o dia inteiro. Corroteirista – de fora a fora no pára-brisa. Corroteirista – na hora do almoço, dentro do prato. Corroteirista – de olhos fechados. Sempre defendi, por uma questão de princípio, a unificação ortográfica (que só não adotei ainda neste blog porque estamos em fase de transição, pressa pra quê?). Também sempre critiquei esse acordo pobrezinho que os doutos negociadores dos dois lados do Atlântico levaram tantos anos para alinhavar, principalmente por sua incapacidade de desbastar o ridículo emaranhado que são as regras do hífen. Nunca achei, porém, que essas ressalvas pudessem ser mais que ressalvas, invalidando o argumento central de que é melhor ter uma ortografia tosca, mas única, do que ter duas. Mas isso foi antes de encontrar para nunca mais esquecer, na vida de minhas retinas tão fatigadas, o inominável corroteirista. O corroteirista rompe todos os cojones, corrói minhas convicções. Não sei de mais nada. Me limito a torcer para que, em nome do bom gosto, da elegância, da harmonia entre as…
Os vencedores do sorteio de exemplares autografados de “Elza, a garota”, entre os mais de 140 que se inscreveram, foram os leitores Carlos Marques, de São Paulo; João Athayde, de Londrina; e Mariana Sanchez, de Curitiba. Obrigado a todos os que participaram da promoção de aniversário do Todoprosa. E vamos aos próximos três anos!
A Bravo! atualiza – a propósito do lançamento do livro “A escola e a letra”, coletânea organizada por Flávio Aguiar e Og Dória – a velha mas interminável discussão sobre o que fazer para estimular nas crianças o gosto pela leitura. Por coincidência, algo em que tenho pensado muito nos últimos dias. Acontece que meu filho de 12 anos anda se engalfinhando com dois livros recomendados pela escola: “Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, e “The red badge of courage”, de Stephen Crane (isso mesmo, no original, para a aula de inglês). Bons e importantes livros, ninguém discute. Mas serão escolhas sábias para leitores dessa idade? Não vou fingir que entendo de pedagogia, mas literatura eu conheço um pouco. Uma peça teatral de Suassuna e um clássico americano do século 19 (que, mais do que ler, eu traduzi, e posso garantir que é datadíssimo) me parecem opções desastrosas – a segunda, então, beira a piada. Em sua aparente insensibilidade para os desafios que a palavra escrita enfrenta com a geração Playstation, chegam a ser desanimadoras. E estamos falando da “moderna” Escola Parque, no Rio. É claro que meu filho avança lentamente e de má vontade nas duas tarefas. E olha…