Revi dia desses, graças ao Torrent, depois de um quarto de século, um dos episódios que mais tinham me marcado na velha e brilhante série americana de TV Twilight Zone (“Além da Imaginação”) – uma paixão que compartilho com Molina, protagonista de meu último livro. O filmete de meia hora se intitula Time enough at last e conta a história de um caixa de banco chamado Henry Bemis, uma caricatura de rato de livraria com seus óculos fundo-de-garrafa e seu jeito de perfeito bundão. Bemis não quer nada desta vida além de ler, ler, ler, mas habita um mundo de antiintelectualismo exponencial, filisteu até a raiz e violentamente hostil ao seu prazer – basta dizer que sua mulher, que o trata como o maior dos fracassados, o proíbe de ler em casa. Para encurtar a história, o episódio acaba com Bemis sobrevivendo sozinho ao holocausto nuclear e se vendo, enfim, com tempo e calma para devorar todas as letrinhas do mundo. Pena que, antes de abrir o primeiro volume, seus megaóculos se espatifem no chão, deixando-o para sempre cegueta entre as infinitas pilhas de livros. Bom, o reencontro com a história deu naquilo que costuma ocorrer nesses casos: enxerguei defeitos…
Para quem ainda não sabe: semana passada foi divulgada a lista dos concorrentes à terceira edição da Copa de Literatura Brasileira, um divertido – e ambicioso na medida inversa de sua pompa – prêmio literário em formato de torneio esportivo mata-mata que sempre mereceu a torcida deste blog. Este ano vai ser diferente: pela primeira vez não tenho envolvimento algum na Copa. Depois de estar entre os concorrentes do primeiro ano (meu romance “As sementes de Flowerville” chegou à semifinal) e entre os jurados na temporada seguinte (minha resenha levou “O dia Mastroianni” à final contra “O filho eterno”, que acabou campeão), agora estou na posição de simples torcedor. Uma boa posição. De fora é mais fácil parabenizar o organizador da CLB, Lucas Murtinho, por ter desistido de levar em conta o “voto popular”, que ano passado transformou alguns escritores em candidatos a vereador e chegou perto de estragar a brincadeira. É também mais tranqüilo elogiar a lista de concorrentes, um interessante recorte no universo de romances brasileiros publicados em 2008: “Acenos e afagos”, de João Gilberto Noll. “Areia nos dentes”, de Antonio Xerxenesky. “A arte de provocar efeito sem causa”, de Lourenço Mutarelli. “O conto do amor”, de Contardo…
Talvez o Kindle nem precisasse caprichar tanto na arte de atirar no próprio pé, afinal: o leitor eletrônico da Apple – sonho ou pesadelo de muita gente, dependendo de sua posição nesse mercado ainda bebê – está finalmente com lançamento marcado para o primeiro trimestre do ano que vem, segundo o site AppleInsider. Seria um tablete multifuncional com cara de iPod Touch gigante, na proporção da ilustração (não oficial) ao lado. Se a notícia for tão quente quanto sugere sua fonte e vier por aí mais um produto do nível do iPod ou do iPhone, muda tudo no mundo dos livros virtuais. Fica uma dúvida fundamental: caso a tela seja mesmo tão luminosa quanto sugere a ilustração – e não de e-ink, como a do Kindle, que parece papel e é mais propícia a leituras longas – a chance da Amazon crescerá muito.
Publicado em 28/8/2007: Hoje o futebol está morto, e duvido que alguém ainda chore por ele, mas não era assim no dia 12 de fevereiro de 1989. “O segundo tempo”, de Michel Laub (Companhia das Letras, 2006), um dos bons livros brasileiros do [então] ano passado, tem uma frase inicial ainda melhor. Digna de antologia ou manual para escritores, ela consegue condensar em pouquíssimas palavras, com a falsa simplicidade que a ocasião exige, uma apresentação clássica de tom, tema e marcos temporais (de passado e presente) entre os quais se estenderá a corda da narrativa. Não falta ainda uma sutil estranheza – como assim, o futebol está morto? – que fica zumbindo ao fundo enquanto nos damos conta de que o defunto pode ser outro.
O post de hoje é a junção de duas colunas publicadas no NoMínimo em 9 e 11/11/2005. A leitora Natalia Vale Asari pega uma carona no tema do sucesso que fazem as teorias “etimológicas” pitorescas para tratar de outra palavra, esta bem brasileira: forró. “A sua discussão sobre ‘etimologia romântica’ lembrou-me do acesso de fúria que o meu avô teve ao saber da produção de um filme chamado ‘For All’”, diz a leitora. “Ele adquiriu uma certa antipatia pelos estadunidenses que trabalharam na base militar em Natal e não admitia que essa crença de que ‘forró’ vinha de ‘for all’ estivesse se espalhando. Preferia acreditar na versão (mais plausível) de Câmara Cascudo, de que ‘forró’ vem de ‘forrobodó’. Enfim, qual das duas versões tem mais embasamento histórico?” A resposta está na própria mensagem de Natália. Para a maioria dos etimologistas, forró é simplesmente a forma reduzida de “forrobodó”, que significa “baile popular, arrasta-pé” e também “confusão, balbúrdia”. A intromissão de for all nessa história parece ser mais um caso de excesso de imaginação. E mais um, também, em que a versão engraçadinha suplanta em popularidade, com muitos corpos de vantagem, aquela que procura manter os pés no chão. * Alguns…
Como autor, fico preocupado com o envolvimento da [editora] Scribner nessa “edição restaurada”. Com tal remodelação como precedente, o que fará a Scribner se, por exemplo, um descendente de F. Scott Fitzgerald exigir que seja removido de “Paris é uma festa” o capítulo sobre o tamanho do pênis de Fitzgerald, ou se o neto de Ford Madox Ford quiser suprimir as referências ao odor corporal de seu ancestral? O lançamento de uma nova versão de “Paris é uma festa”, livro de memórias de Ernest Hemingway, com muitos cortes e acréscimos feitos por um neto do autor em nome de uma suposta fidelidade maior às suas “intenções”, é demolido com método e fúria neste artigo (em inglês, mediante cadastro) publicado no “New York Times” por A.E. Hotchner. O articulista exibe a autoridade de quem recebeu o manuscrito pronto das mãos do próprio Hemingway no início dos anos 1960, pouco antes de sua morte. A motivação por trás da nova versão feita pelo neto, acusa Hotchner, é escusa e mesquinha – poupar a imagem da avó de comentários desairosos. Mas esse episódio de aparente stalinismo editorial rende um debate mais profundo do que parece à primeira vista. Não exige muita imaginação enxergar…
A notícia anda circulando por aí, sobretudo em sites de tecnologia, entre risinhos e estupefação, e deve circular ainda mais. A princípio pensei que fosse piada. Não é. Quem baixou – e pagou, e começou a ler – uma versão eletrônica de “1984”, de George Orwell, para o Kindle, levou um susto no fim da semana passada. Aparentemente, houve um mal-entendido entre o editor e a Amazon sobre o licenciamento da obra. O que levou a maior livraria virtual do mundo a, sem aviso prévio, entrar sorrateiramente no Kindle de seus consumidores, deletar o livro e depositar um crédito em sua conta. O mesmo ocorreu com “A revolução dos bichos”, também de Orwell. Bonito, não? Se a idéia era atrasar em um punhado de anos a confiabilidade do livro eletrônico, um golpe de gênio. Embora talvez meio forçado nesse paralelismo óbvio com o Big Brother. Não seria preferível ser mais sutil? Pensando melhor, claro que a história só podia ser verdadeira: como disse Mark Twain, por que a realidade não seria mais inverossímil que a ficção? A ficção, afinal, tem que fazer sentido.
– Você não vem? – Vou já, mamãe. Mas não foi: nem iria nunca. “Coitada de mamãe”, pensou, numa tristeza maior. D. Margarida não sabia, não desconfiava de nada. Se soubesse, se pudesse imaginar! Disse baixinho: “Daqui a pouco estarei morta”. E repetiu, como se custasse a acreditar: “Estarei morta”. Assim, com a morte rondando o seio da família, começam as peripécias rocambolescas de “Núpcias de fogo” (Companhia das Letras), o quarto folhetim escrito por Nelson Rodrigues com o pseudônimo de Suzana Flag. “O Jornal” publicou-o em capítulos em 1948. A primeira edição em livro só saiu em 1997. Publicado em 18/11/2006.
Recebo o seguinte texto “inspirador”, que circula como corrente na internet: A palavra SINCERO foi inventada pelos romanos. Eles fabricavam certos vasos de uma cera especial. Essa cera era, às vezes, tão pura e perfeita que os vasos se tornavam transparentes. Em alguns casos, chegava-se a se distinguir um objeto – um colar, uma pulseira ou um dado –, que estivesse colocado no interior do vaso. Para o vaso assim, fino e límpido, dizia o romano vaidoso: – Como é lindo!!! Parece até que não tem cera!!! “Sine cera” queria dizer “sem cera”, uma qualidade de vaso perfeito, finíssimo, delicado, que deixava ver através de suas paredes e da antiga cerâmica romana. O vocábulo passou a ter um significado muito mais elevado. Sincero é aquele que é franco, leal, verdadeiro, que não oculta, que não usa disfarces, malícias ou dissimulações. O sincero, à semelhança do vaso, deixa ver através de suas palavras os verdadeiros sentimentos de seu coração. Estilo açucarado à parte, essa história de vaso fino tem lá sua beleza, não tem? Infelizmente, tudo indica ser uma daquelas lendas muito comuns na etimologia, baseadas em semelhanças fortuitas de som e sentido. Muitas vezes (embora não seja o caso aqui),…
…um autor contemporâneo que não tenha sido premiado ou, para dizer o mínimo, indicado a alguma honraria da praça. Detalhes aqui.
Na Flip, o mexicano Mario Bellatin contou como, estudante de comunicação em Lima, lançou sua primeira obra: vendendo vale-livros (ricamente impressos) para amigos e conhecidos em nome de uma editora fictícia, a fim de financiar uma edição do autor. A parte surpreendente da história é o sucesso que a estratégia fez, botando Bellatin no mapa definitivamente. Achei curioso voltar de Parati e descobrir que o blogueiro Alex Castro – que não conhecia a história de Bellatin até eu mencioná-la – está tramando em esquema semelhante de pré-venda o lançamento de seu primeiro romance de papel, “Mulher de um homem só”, que já andou disponível em pdf no site do autor. A editora, a independente Os Viralata, não é exatamente uma ficção, mas o resto bate. Num tributo ao fetiche da celulose, que não dá o menor sinal de agonia em meio a toda a fanfarra virtual, os primeiros compradores terão seus nomes listados na edição. Fica a dica para quem quiser se lançar no mercado neste momento em que o apetite das grandes editoras por novos nomes, após a voracidade do início do século, vai se aproximando da anorexia.
Chico Buarque ganhou uma nova e ilustre companhia naquela estrada entre a literatura e a música. Philip Roth acaba de estrear como vocalista – ou ululador – nesta vinheta dance que está virando um sucesso cult na internet, produzida pelo crítico James Marcus a partir de um trecho de entrevista em que o escritor ridicularizou, ganindo, a adaptação cinematográfica de “O complexo de Portnoy”.
O vidro martelado da porta tem um letreiro em tinta preta trincada: “Philip Marlowe…. Investigações”. É uma porta razoavelmente decadente no fim de um corredor razoavelmente decadente, num edificio do tipo que era novo ali pelo ano em que o banheiro com azulejo até o teto se tornou a base da civilização. A porta fica trancada, mas ao lado dela há uma outra, com letreiro igual, que não fica. Pode entrar – não há ninguém aqui além de mim e de uma enorme mosca varejeira. Mas não se você for de Manhattan, Kansas. O início de “A irmãzinha” (The little sister, The Library of America, tradução caseira), de Raymond Chandler, o grande estilista da literatura policial americana hard boiled, já devia ser inesquecível quando foi publicado pela primeira vez, em 1949. Ainda mais inesquecível se tornou, porém, depois que milhares de escritores mundo afora fizeram questão de lembrá-lo, lembrá-lo e lembrá-lo de novo, numa avalanche de imitações, sátiras, pastiches, glosas e homenagens que encheriam bibliotecas. Um processo de lugar-comunização tão avassalador que, a esta altura, estará desculpado quem preferir esquecer o inesquecível. É estranho pensar que nunca mais será possível ler esse parágrafo sem ouvir os ecos de suas palavras…
Dando prosseguimento à série que a Flip interrompeu, segue um texto publicado em minha coluna diária sobre palavras no site “NoMínimo” em 2/3/2005: A leitora Luiza Fontes, de São Paulo, envia uma historinha de certo sucesso na Internet sobre a origem das palavras “aguardente” e “pinga” – texto creditado, não se sabe se acertadamente, ao Museu do Homem do Nordeste, no Recife. “Você pode confirmar sua veracidade?”, pergunta Luiza. Não posso, lamento: a história é grotescamente falsa. Obra de algum etimologista bêbado ou apenas exemplo daquele conjunto de crendices divertidas que faz divisa com a etimologia popular, a coisa, no entanto, é instrutiva ao seu modo – embora não sobre aquilo que pretende ensinar. Vamos à lenda: Antigamente, no Brasil, para se ter melado, os escravos colocavam o caldo da cana-de-açúcar em um tacho e levavam ao fogo. Não podiam parar de mexer até que uma consistência cremosa surgisse. Porém um dia, cansados de tanto mexer e com serviços ainda por terminar, os escravos simplesmente pararam e o melado desandou! O que fazer agora? A saída que encontraram foi guardar o melado longe das vistas do feitor. No dia seguinte, encontraram o melado azedo (fermentado). Não pensaram duas vezes e…
A frase escrita pelo Snoopy com tanta dificuldade no post abaixo – “Era uma noite escura e tempestuosa” – foi de fato usada, e a sério, pelo escritor vitoriano Edward George Bulwer-Lytton para abrir seu romance “Paul Clifford”, de 1830. O que lhe valeu a glória de batizar o famoso concurso anual de bad writing promovido pela Universidade de San Jose, na Califórnia, em que os participantes inscrevem “começos inesquecíveis” escritos, de propósito, com o maior número possível de clichês literários. Pois bem: o resultado do Bulwer-Lytton Fiction Contest 2009 acaba de sair e os vencedores podem ser lidos aqui – vai um trechinho traduzido do grande campeão: Dizem que se você apurar bem os ouvidos quando a lua cheia está no mais alto do céu, o vento sopra no Estreito de Nantucket vindo do nordeste e os cães uivam por nenhuma razão terrena, conseguirá ouvir os gritos terríveis da tripulação do Ellie May…
Ele vai com seu pai a Newlands porque o esporte – rúgbi no inverno, críquete no verão – é o mais forte laço sobrevivente entre eles, e porque atravessou seu coração como uma faca, no primeiro sábado após seu retorno ao país, ver seu pai vestir o casaco e, sem uma palavra, sair na direção de Newlands como uma criança solitária. Seu pai não tem amigos. Ele também não, embora por razões diferentes. Tinha amigos quando era mais jovem; mas esses velhos amigos estão agora dispersos pelo mundo e ele parece ter perdido o jeito, ou talvez a vontade, de fazer novos. Assim, viu-se arremessado de volta a seu pai, e seu pai arremessado de volta a ele. Como vivem juntos, aos sábados se divertem juntos. É a lei da família. Atenção, coetzeemaníacos: o New York Review of Books – que resenha muito mais ficção do que a publica, mas nos últimos anos tem andado mais soltinho – antecipa um trecho (de onde traduzi os dois parágrafos acima) do próximo romance do homem, chamado Summertime, que sai em breve por lá.