A Flip 2009 – que para mim e muita gente foi uma das melhores da série, logo atrás da edição de 2004 – vai começando a desbotar em contato com a realidade, que aliás não existe, como proclamou por lá um autor que agora não recordo. E se a memória, como sabemos, tem uma vontade própria e meio insondável na hora de decidir o que será guardado e o que será posto fora, não custa fazer um exercício de futurologia para tentar antecipar algumas cenas e ditos públicos que têm tudo para ficar arquivados anos a fio, em meio aos muitos prazeres de que o fim de semana prolongado foi cheio. Por exemplo: alguém chamando o debate-lavanderia entre a artista francesa Sophie Calle e seu ex, Grégoire Bouillier, de “Márcia Goldsmith na Casa do Saber” – perfeito. Ou o historiador inglês Simon Schama, sessentão alucinado, se escangalhando de dançar, com direito a longas sessões de air guitar, na festa promovida pelo portal Saraiva na Casa de Cultura, sábado à noite. A mesma festa em que Alex Ross, crítico de música clássica da “New Yorker”, arriscou um rebolado ao som de Sidney Magal. Mas talvez o melhor de tudo seja a…
Depois do discurso com certo ranço de ensaiado de Gay Talese, o português António Lobo Antunes pôs a Flip 2009 no bolso ontem à noite. Com o humor dos grandes mal-humorados e aquela marra que é só dele mesmo, lançou ao auditório abarrotado da Tenda dos Autores uma quantidade acachapante de boas tiradas, anedotas e epigramas. Foi impossível colher tudo, mas aí vão alguns: “Um bom livro se faz sozinho. Só o que você tem que fazer é tornar sua mão feliz. Se a mão está feliz, o livro sai fácil.” “Quem quer ser escritor deve ver dez minutos de Garrincha a jogar bola. Didi é a cabeça e Garrincha é a mão. Para escrever, você precisa ter Didi na cabeça e Garrincha na mão.” “Escrever é sobretudo corrigir e reescrever. Você tem que ter uma atitude muito humilde em relação ao material. A prosa tem problemas oficinais e técnicos muito grandes. É óbvio que isto é um ofício, como o de pedreiro ou cirurgião.” “Há livros que gosto de ler mas não gostaria de ter escrito: Gabriel García Márquez, Graham Greene, Simenon…” “Só tenho um lema ao escrever: impor a mim mesmo desafios impossíveis. A divisa de um escritor…
Observações avulsas num fim de tarde de sábado, enquanto Gay Talese não sobe ao palco: Cristovão Tezza e o mexicano Mario Bellatin fizeram uma mesa estranhamente desequilibrada ontem à tarde. O brasileiro, que veio à Flip a bordo de um veículo raro – um best-seller aclamado pela crítica – chamado “O filho eterno”, se viu escalado no papel de coadjuvante do convidado estrangeiro, uma figura certamente curiosa, com sua prótese em forma de falo no braço direito, para quem o mediador, Joca Reiners Terron, levantou cerca de 70% das bolas. Senti algum desequilíbrio também na mesa que Milton Hatoum e Chico Buarque dividiram ontem à noite. Neste caso, não por falta de balanço entre os dois, que mostraram entrosamento ao se acusarem mutuamente de plágio (brincadeirinha), mas por uma concentração excessiva das perguntas do mediador Samuel Titan Jr. em detalhes de concepção e feitura de seus livros. Sobriedade e gentileza demais podem atrapalhar. Nada se perguntou a Milton, por exemplo, sobre sua polêmica condenação dos blogs literários. Nem se procurou saber de Chico como encara as críticas de machadianismo pesado feitas à sua novela “Leite derramado”. Conclusão provisória, para a qual contribuem ainda as ótimas entrevistas feitas por Silio Boccanera…
A química da mesa de Atiq Rahimi e Bernardo Carvalho, no fim da manhã de hoje, não foi das mais potentes. Mas houve um momento em que, discordando, o afegão-francês e o brasileiro, dois bons escritores, iluminaram uma questão interessante sobre a circulação de livros e idéias pelo mundo: “Não existe uma literatura universal”, disse Bernardo, autor de romances em que o elemento estrangeiro é crucial, como “Mongólia” e “O filho da mãe”. E explicou: “Existe uma guerra geopolítica de imposição de literaturas. Na China, onde estive antes de escrever ‘Mongólia’, não existe o menor interesse pela literatura brasileira. Acho que ela nem seria compreendida lá, caso fosse lida. Posso estar sendo pessimista, mas vejo cada vez mais uma política de fechamento, cada bloco cultural defendendo seus interesses.” Respondeu Rahimi, cujos relatos baseados em seu passado afegão encontraram excelente acolhida na França (Goncourt incluído) e em outras partes do mundo: “Não digo que todos os escritores do mundo escrevam da mesma forma, mas que todos somos seres humanos. Temos em comum nossos limites em relação à morte, à família, ao amor. Li ‘Os Miseráveis’ quando tinha 14 anos, quando não sabia nada da França, e foi uma revelação.” Dirigindo-se ao…
Richard Dawkins, entrevistado com muita competência por Silio Boccanera, foi – como estava programado – a grande atração de quinta-feira. Articulado e com aquela fala claríssima dos ingleses educados, Dawkins me surpreendeu pela serenidade com que expõe seus pontos de vista, bem diferente do estilo inflamado de Christopher Hitchens, por exemplo, com quem vem dividindo o palco de uma certa cruzada ateísta. Foi engraçado quando ele disse que o fato de os cérebros humanos terem crescido enormemente nos últimos três milhões de anos não significa que essa tendência evolutiva se manterá nos próximos três milhões de anos. “Para isso, seria necessário que as pessoas cabeçudas continuassem a ter mais facilidade de se acasalar do que as pessoas não cabeçudas, o que já não parece ser o caso”, disse. Não fora de Parati, pelo menos. Ah, eu tinha prometido mais notícias sobre a mesa “Verdades inventadas”? Tinha. Mas descubro agora que é impossível resenhar um evento do qual participei, a não ser para dizer que correu tudo bem, muito bem, e que o alívio que sobreveio foi comemorado com um Cohiba.
Primeiro dia de Flip, e a melhor notícia – além de que as coisas estão funcionando conforme o previsto, tudo calmo no front – é a temperatura agradavelmente tropical que resistiu ao cair da noite, coisa inédita por aqui em minha experiência: normalmente, mal o sol se esconde, o inverno de Parati exige casacos e pulôveres imediatamente, por maior que tenha sido o calor durante o dia. Não foi o caso desta quarta-feira. O show de Adriana Calcanhotto, daqui a pouco, promete ser o primeiro da história da Flip a ser degustado em mangas de camisa. Um bom prenúncio – apesar das previsões de chegada de chuva pesada, que variam entre amanhã e sábado, agourarem ruas enlameadas e um certo mau humor generalizado. Mas no momento, sentindo a brisa morna que assovia na boca da baleia branca alegórica que domina a Praça da Matriz – e que a princípio eu achei que fosse Moby Dick, mas é a do Pinóquio, que branca não era – meu ceticismo em relação aos meteorologistas é invencível. Amanhã é dia de encarar o público, o que é sempre uma provação, mas a esta altura parece um preço justo a pagar. Acho promissora a mesa…