Como a disputa agora é séria, e só elegeremos o melhor começo inesquecível de todos os tempos uma vez, que tal deixar a votação (no post abaixo) rolando por duas semanas? É o tempo que o Todoprosa vai tirar de folga. Dia 7 de outubro eu volto a atualizá-lo. Abraços a todos e até lá.
Herman Melville e Fiodor Dostoievski, nessa ordem, foram os mais votados da última rodada classificatória, com Miguel de Cervantes num honroso terceiro lugar. Chegamos assim à finalíssima dessa disputa sumamente desimportante – mas, espero, divertida – para eleger o mais inesquecível começo de romance de todos os tempos. Agradeço a todos os que participaram das rodadas classificatórias, animando a conversa muito além do que eu tinha imaginado ao propor a brincadeira. Aos votos, pois, moçada! Como diria meu amigo Humberto Werneck, chegou a hora da onça beber água. Apenas um lembrete: cada eleitor deve escolher um único início, por favor. Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta. (Vladimir Nabokov, “Lolita”.) Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: “Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames”. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem. (Albert Camus, “O estrangeiro”.) Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira. (Leon Tolstoi, “Ana Karenina”.) Nonada. Tiros que o senhor…
Esta é só para os leitores do Rio: amanhã, domingo, último dia da Bienal do Livro, estarei no Café Literário às 17h para falar, ao lado de Carlos Heitor Cony, sobre o tema “A política entre a ficção e a realidade” – no meu caso, leia-se “Elza, a garota”; no de Cony, leia-se uma obra inteira e, de forma mais diretamente ligada ao mote político, “Pessach: a travessia”. Quem quiser aparecer será muito bem-vindo. A mediação ficará por conta de Marcelo Moutinho.
E a relação dos finalistas do Portugal Telecom, hein? Nos seis anos de existência do galardão (os quatro primeiros, é verdade, em âmbito apenas nacional), só um português – o luso-angolano Gonçalo M. Tavares, em 2007 – ganhou o primeiro prêmio. Tem muita gente apostando que chegou a hora de equilibrar um pouco mais o jogo.
O gigantesco parque temático de Harry Potter que abrirá ano que vem em Orlando, na Flórida, leva o blogueiro Alison Flood a especular (em inglês, acesso gratuito) quais as outras obras literárias que mereceriam essa glória mundana – ele fala de C.S. Lewis e de Stephenie Meyer, tudo meio óbvio. Gostei mais quando aquele estranho parque temático de Dickens inaugurado na Inglaterra há dois anos – comentado na época aqui – inspirou em colegas blogueiros fantasias irônicas como a de um aterrorizante Castelo de Kafka. É engraçado imaginar por dois minutos o tipo de empreendimento paraliterário do gênero que poderíamos ter no Brasil se houvesse por aqui mais dinheiro para gastar/apreço pela literatura/paixão por parques idiotas – sei lá qual é a melhor alternativa. Exercício para mentes desocupadas? Provavelmente sim. Mas que parece um desperdício nunca termos podido visitar o Sítio do Picapau Amarelo, comprar um potinho de purpurina com a marca Pirlimpimpim e almoçar uma galinha ensopada no Tia Nastácia, isso parece. (Sim, dizem que aquele que existe em Taubaté é simpático, mas parece estar mais para Museu Lobato, filho ilustre da terra, do que para parque temático.)
…numa única impressora a jato de tinta, o trabalho levaria 3.805 anos e produziria uma pilha de papel de 544 mil toneladas; e outros números igualmente inúteis – aqui.
Tolstoi promoveu um massacre na última rodada: o famoso início de “Ana Karenina” teve 28 votos e deixou a emoção restrita à disputa do segundo lugar, esta sim dura. E Guimarães Rosa acabou eliminando Charles Dickens por apenas um voto. (Campos de Carvalho também teve participação honrosa. Meu preferido era Juan Rulfo, mas o que se há de fazer.) Assim, já estão classificados para a rodada decisiva, domingo que vem, os começos inesquecíveis de “Lolita”, “O estrangeiro”, “Ana Karenina” e “Grande sertão: veredas”. Da lista abaixo sairão os dois últimos finalistas. Agora é com vocês… Chamem-me Ismael. Alguns anos atrás – não importa precisamente quantos – tendo pouco ou nenhum dinheiro na bolsa, e nada que me interessasse particularmente em terra firme, decidi navegar um pouco por aí e ver a parte aquosa do mundo. É um jeito que tenho de espantar a melancolia e regular a circulação do sangue. (Herman Melville, “Moby Dick”.) Desocupado leitor: sem juramento meu embora, poderás acreditar que eu gostaria que este livro, como filho da razão, fosse o mais formoso, o mais primoroso e o mais judicioso e agudo que se pudesse imaginar. Mas não pude eu contravir a ordem da natureza, que nela…
O leitor Aian Cotrim tem uma dúvida de grafia que qualquer dicionário poderia ter sanado. Mas vale a pena falar um pouco sobre a história da palavra “luau”. Caro Sérgio, nessa semana travei uma discussão com colegas da faculdade sobre a grafia correta de uma palavra: é ‘luau’ ou ‘lual’? Defendi com todas as minhas forças a opção ‘luau’ por achar as vogais mais características da nossa lingua, porém não tenho qualquer fundamento mais organizado para embasar minha resposta. Espero que você possa responder a minha pergunta. Aian acertou, mas pelas razões erradas: “nossa língua” não tem nada a ver com isso. Provavelmente devido ao fato de “luau” ser uma festa praiana de estilo havaiano que ocorre à noite, muita gente acha que a palavra tem alguma relação com “lua”, “luar”. A pista não poderia ser mais falsa. “Luau” vem do havaiano lu’au, que, antes de nomear por extensão também a festa, era apenas o nome de um prato típico servido nessas celebrações – folhas de taro, um tipo de inhame, cozidas com leite de coco. Publicado no “NoMínimo” em 16/4/2007.
“Seu cachorro é gay?”, “Guerra nuclear: o que você pode ganhar com ela”, “Torne sua casa à prova de bombas”, “A vagina mal-assombrada” (“É difícil amar uma mulher cuja vagina é um portal para o mundo dos mortos”, diz a apresentação), “Caixões: faça você mesmo”, “Origami de toalha”, “A termodinâmica da pizza” e o sensacional “Como sobreviver a uma revolta dos robôs” (foto ao lado) são alguns dos títulos disponíveis na recém-criada seção de livros esquisitos do sebo online AbeBooks.com. Vale fazer uma visita com calma. (Via blog de livros do Guardian.)
Enquanto o livro não vem, e para não fugir do assunto de ontem, reedito um Sobrescrito publicado em fevereiro do ano passado: Conheceram-se na oficina de ficção coordenada por um escritor de barba espessa e fama rala. O que primeiro chamou a atenção dela foi a qualidade do diálogo que ele conseguia escrever, vozes se cruzando com uma espontaneidade e um fio inacessíveis a ela, aos outros alunos e talvez até, quem sabe, ao professor. Já a atenção dele foi despertada primeiro por aquele olhar, o olhar morno e lento que ela ficava revezando entre ele e seus próprios pés, como se seu pudor viesse em ondas, enquanto o ouvia ler em voz alta o diálogo habilmente plagiado do Sabino. Foi depois desse dia, a princípio num espírito de retribuição mas logo com curiosidade genuína, que ele expandiu sua atenção dos olhos para o texto, e não demorou a se impressionar com a força dos adjetivos luxuriantes que ela espalhava aqui e ali numa narrativa de resto seca, feito plantas carnívoras de estufa em vasos perdidos no deserto. Não é incomum, especialmente em ambientes artificiais como o de uma oficina de ficção, que metáforas ganhem vida: ele logo descobriu que…
Para quem nunca estudou letras nem gostou de ler crítica, é a chance de ter contato, mesmo que resumido, com as principais técnicas, discussões e correntes da história da literatura. Parece burocrático, mas evita a tentação de reinventar a roda. (…) Para quem está ansioso por mostrar seu trabalho, é a chance de evitar jogá-lo sem filtro num blog ou livro pago do próprio bolso, o que no futuro será fonte de culpa e horror. (…) oficina não dá talento a ninguém, e sim melhora a técnica, que é o instrumento para levar o talento à página em branco. Não imagino como possa acontecer o contrário, isto é, as aulas castrarem o potencial de alguém. O escritor gaúcho Michel Laub, que lançou este ano o romance “O gato diz adeus”, é freqüentemente citado como argumento vivo em defesa das oficinas literárias por ter passado, como Cintia Moscovich e Daniel Galera, pelas aulas de Assis Brasil. Agora ele verbaliza o argumento e o desdobra em dez partes, nesta lista sensata publicada pelo jornal “Zero Hora” e republicada em seu blog. Nunca passei por oficina nenhuma, mas tendo a concordar com tudo ou quase tudo. Bom motivo para soprar as brasas da…
Os começos de “Lolita”, de Vladimir Nabokov, e “O estrangeiro”, de Albert Camus, empatados, foram os mais votados pelos leitores do Todoprosa na chave de domingo passado e estão classificados para a rodada final. Da segunda chave, hoje, sairão mais dois começos inesquecíveis – e quem, voluntariosamente, tiver escolhido por antecipação algum dos candidatos da lista abaixo deve fazê-lo de novo, pois só agora esses votos serão computados. Domingo que vem rola a última rodada classificatória. Bons sufrágios! Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira. (Leon Tolstoi, “Ana Karenina”.) Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. (Guimarães Rosa, “Grande sertão: veredas”.) Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa – e qual defesa seria mais legítima? – logrei ser absolvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris. (Campos de Carvalho, “A lua vem da Ásia”.) Você vai começar a ler o novo romance de…
Subornar vem de sub + ornar. Ornar deriva do latim ornare – “fornecer, equipar, armar, aparelhar, preparar, embelezar, ornar, distinguir, honrar”, segundo o Houaiss. Trata-se de um verbo um tanto culto, mas ainda vivo como sinônimo menos freqüente de enfeitar, adornar, ornamentar, ataviar, emperiquitar, empetecar. Subornar é, na origem, pôr uma pulseira de ouro no subornado, um brinco de brilhante em sua orelha, uma gravata italiana em seu pescoço. Até aí faz sentido, mas… por que o “sub”? Justamente pelo caráter sorrateiro, dissimulado da operação. O prefixo “sub”, aqui, tem o mesmo sentido que exibe no adjetivo “sub-reptício”: denuncia ação furtiva, aquela que só é praticada quando se imagina que ninguém – ou, em termos mais modernos, nenhuma microcâmera – está de olho. Publicado no “NoMínimo” em 1/7/2005.
Na primeira missa do dia, ouviu o coro entoando o mais estranho dos latinórios: Membrum virile, mulier super virum, vas naturaaaalis… Vas prepooosterum! A voz de Alfombra ficou martelando em seus ouvidos as obscenidades extraídas de autos brutais pelo resto da manhã. Ocorreu-lhe a certa altura que o gordo ancião trocaria de bom grado uma galeota repleta de tonéis de vinho verde pelas confissões encadernadas em letra de fôrma. Vas prepooosterum! Lembrou-se que na noite anterior sonhara com Santo Agostinho, um Santo Agostinho invertido que começava a vida impoluto e a terminava se esbodegando em todas as orgias. No fim, Frei Alfombra o passava no espeto. Havia um outro condenado, Glauceste. Antes de marchar para a fogueira, o grande árcade soprara em seu ouvido: – É esta a nobre causa, Simão! Presta atenção: é esta a verdadeira Inconfidência! A edição F – isto é, a sexta – da bela revista de contos trimestral “Arte e Letra: Estórias” (96 páginas, R$ 18,50) traz um conto inédito meu, “Vas preposterum”, uma fantasia cívico-pornográfica ambientada em Vila Rica no tempo da Inconfidência Mineira. Lá estou na excelente companhia de, entre outros, William Faulkner, Antonio Tabucchi, Arthur Conan Doyle, Ryûnosuke Akutagawa, Luiz Vilela e…
O que os livros “A condição humana”, de André Malraux, “Killer in the rain”, de Raymond Chandler, “Christine”, de Stephen King, e “The complete shorter fiction”, de Virginia Woolf, têm em comum? Foram todos lançados no ano de 1899, segundo o Google Book Search. Onze anos depois de “A fogueira das vaidades”, de Tom Wolfe. E o pior é que esse tipo de disparate está muito longe de ser raro na Biblioteca Universal do Google, que chega a extremos bibliográficos hilariantes como o de classificar uma edição de “Moby Dick” na rubrica Computação – informa Geoffrey Nunberg em artigo (em inglês) publicado pelo “Chronicle of Higher Education”. Sim, em breve todo o conhecimento produzido pela humanidade estará online. Resta saber a que preço. (Via Arts & Letters Daily.)
Vejam Cormac McCarthy, que por anos parecia ser o mais velho modernista vivo em cativeiro, mas que inaugurou sua fase madura com um romance sobre um serial killer e o seguiu com uma obra de ficção científica apocalíptica. Vejam Thomas Pynchon – em “Inherent vice”, ele trocou suas pesadas acrobacias verbais de sempre pela estrutura mais manejável de um romance de detetive hard boiled. Esse é o futuro da ficção. O romance está finalmente despertando de um cochilo de pedra de cem anos. As velhas hierarquias de gosto estão desmoronando. Os gêneros se hibridizam. A balança do poder está deixando de pender para o escritor e voltando para o leitor, e pactos com o gosto do público vão sendo feitos por toda parte. O lirismo está em declínio, enquanto o suspense, o humor e o ritmo se livram de seus estigmas e assumem o lugar de tecnologias literárias centrais do século 21. De objeto de arte solene e hermético, o romance vai desabrochando em algo mais aberto e casual: uma literatura do prazer. Os críticos terão que acompanhar a mudança. Essa nova linhagem de romances é resistente à interpretação, mas não da forma como a escola modernista era. São livros…