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Post número 999
NoMínimo / 29/12/2009

Todo fim de ano é assim: não sei se é essa contagem regressiva surda que pulsa em cada esquina, ou quem sabe será apenas o calor. O fato é que os pensamentos vão ficando cada vez mais soltos à medida que avança dezembro, esgarçando-se como nuvens ao vento até que, ali em torno do Natal, o estrago está feito: como o fim, de tão aguardado, parece chegar antes da hora, sem contudo trazer ainda o recomeço, instaura-se um limbo em que o non sequitur vira lei universal e já nada leva a coisa alguma – fica tudo espalhado por aí feito milhões de tweets. Deve ser por isso que o pessoal gosta de bolar listas – de melhores, de piores, de presentes, de resoluções, listas de listas de listas. Como se sabe, listas são a maneira mais primitiva – no bom sentido – de organizar o caos. Mas aí você vai atrás do bálsamo das listas e descobre que o aguado “Leite derramado” – que tem algumas páginas brilhantes de entremeio, mas é um tanto contrafeito e bem inferior a “Budapeste”, do mesmo autor – vem sendo eleito o livro do ano no Brasil. Fica confuso. Nesse limbo, até que…

O romance morreu, viva o romance!
NoMínimo / 27/12/2009

O ensaio político “Anatomia de um instante”, de Javier Cercas, sobre o fracassado golpe de Estado de 1981 na Espanha, foi eleito por um time de críticos reunido pelo caderno “Babelia” o livro do ano no país – ou mais até do que isso, “uma das obras capitais da literatura de língua castelhana de nossa época”, segundo Alberto Manguel. Cercas, conhecido do leitor brasileiro por dois excelentes romances baseados em histórias políticas reais, “Soldados de Salamina” e “A velocidade da luz” (já citados neste blog, aqui e aqui), inverte desta vez – pelo que pude entender, sem ter lido o livro – o peso da balança para o lado da não-ficção. Estaríamos diante de mais um sintoma da tão alardeada crise do romance? Ou, ao contrário, de mais um sinal de que sua renovação se dá hoje no mundo inteiro – com o Brasil meio atrasado, como costuma ocorrer – no incontrolável contrabando que rola na fronteira entre os gêneros?

DeLillo & Kindle, tudo a ver
NoMínimo / 23/12/2009

O livro já estava na fila faz tempo, mas o empurrãozinho decisivo veio daquele ótimo artigo de Tim Adams no “Observer”, que escala Don DeLillo como uma espécie de antípoda dos e-books. Feliz proprietário de um Kindle natalino, decidi inaugurar o aparelho com “Underworld”. Queria ver sangue. Mas não é que eles se amam?

A volta de Sam Spade
NoMínimo / 22/12/2009

Joe Gores é um autor americano de literatura policial que teve um livro muito interessante lançado no Brasil, pela Graal, em 1986: “Hammett”, um romance do gênero hard boiled, tão rigoroso quanto divertido, em que o detetive é ninguém menos que Dashiell – que foi mesmo detetive (medíocre) antes de virar escritor (brilhante) e mudar para sempre o jeito de escrever sobre crimes. E não é que o cara continua preso em sua obsessão? Acabo de descobrir numa retrospectiva do ano da “New Yorker” que Gores lançou em 2009, com alguma discrição, um romance chamado “Spade & Archer”, que vem a ser uma prequel – a história anterior – de “O falcão maltês”. Sim, eu sei: os mais descolados entre vocês vão dizer que ninguém agüenta mais esse papo de intertextualidade – será que depois do pós-modernismo não vem nada, não? Compreendo o enfado, mas lembro um detalhe, ou melhor, dois: Gores é um escritor de verdade; o livro não tem zumbis.

Mais uma curiosidade etimológica: Testa
A palavra é... / 21/12/2009

Do latim testa, vaso de barro cozido, a testa é uma urna de argila. A testa é uma talha para vinho – apropriada, esta. A testa é também tijolo, ladrilho, telha, ou seja, a casca, o casco, a crosta. A escama. A carapaça, eis a testa. A concha. Lá dentro da concha-testa, o bicho dorme. Acorda, bicho-da-testa. Segunda-feira é fogo. Publicado no “NoMínimo” em 9/4/2007, que também caiu numa segunda-feira.

Curiosidades etimológicas: Despautério
A palavra é... / 19/12/2009

Etimologia pitoresca e sóbria ao mesmo tempo: despautério provém de “Despautère, nome afrancesado de J. van Pauteren, ou talvez latinizado Despauterius (gramático flamengo, 1480?-1520), cuja obra Comentarii gramatici (1537), confusa e rica de dislates, foi muito difundida na Europa entre os sXVI-XVII”. Tá no Uais. Despautério era um gramático cretino, gostei de saber disso. Depois, consultando Silveira Bueno, descubro que Despautério talvez não tenha sido o bobo da corte dos gramáticos que imaginei a princípio. SB cita a Larousse: “Embora difuso, obscuro e cheio de declamação, (Despautère) gozou de não pequena voga até que foi destronado pela Gramática, muito mais simples, de Lhomond”. Despautério não falava despautérios, afinal? Era apenas verboso, talvez meio obtuso, mas chegou a fazer sucesso em seu tempo? Nesse caso, quando terá surgido no caminho da palavra seu sentido tão agudo de disparate, de absurdo, do que não tem cabimento? Publicado no “NoMínimo” em 10/11/2005.

Mix Leitor D, um fenômeno verde-amarelo
NoMínimo / 17/12/2009

A notícia saiu hoje no blog do “Prosa & Verso” e tem algo de enigma: como é possível que o e-reader nacional Mix Leitor D, produzido em Recife, já conte (segundo Murilo Marinho, diretor da empresa que o fabrica) com 150 mil encomendas antes mesmo de ser lançado, se o mercado do livro digital, sobretudo no Brasil, ainda é um pântano de incertezas? Catálogo, por enquanto uma grande interrogação, não é. Preço muito menos. Por R$ 1.100 na versão com 3G, o aparelho não leva vantagem competitiva sobre um rival poderoso como o Kindle – cujo design, aliás, copia. É preciso ler até o fim as linhas – e sobretudo as entrelinhas – de Miguel Conde para começar a decifrar o mistério: Bom, talvez os responsáveis por essas encomendas todas pudessem explicar melhor por que se entusiasmaram tanto com o aparelho. Marinho diz no entanto que não pode revelar quem fez as encomendas, mas afirma que “a parte governamental é uma área forte”. Não só escolas, mas também “órgãos do governo” se interessaram, diz. Uma única editora está no projeto desde o início. O Mix Leitor D é desenvolvido por meio de uma sociedade entre a Mix Tecnologia e a…

Livros de presente? Todo cuidado é pouco
NoMínimo / 16/12/2009

Livros, instruções de uso: declarar em público que não se leu o “Ulisses” e muito menos “Em busca do tempo perdido” (isso, que antes era inconfessável, agora se faz muito porque fala às claras de alguém que, de tanto que leu, pode declarar tal ignorância sem ser tachado de burro). Jamais dizer nada de mal sobre “Uma confederação de estúpidos”, de John Kennedy Toole (a mesma regra é válida para qualquer título de Hunter Thompson, quando se está na companhia de jovens jornalistas). Evitar as seguintes discussões, por perigosas, com companheiros queridos ou amigos próximos: a favor ou contra “Psicopata americano”, de Bret Easton Ellis; a favor ou contra “As partículas elementares”, de Michel Houellebecq; a favor ou contra “As correções”, de Jonathan Franzen; a favor ou contra “As benevolentes”, de Jonathan Littell. Mencionar em qualquer encontro, pelo menos uma vez, Berger, Sebald, Pessoa. Dizer, sempre que surgir a ocasião, que Sándor Márai é chato. Dizer, com o olhar perdido no fundo de um copo, que Truman Capote era manipulador. Dizer, com um suspiro, que os romances de Cortázar envelheceram mal, mas em compensação, ah, seus contos. É uma delícia de fino humor – e sob o mais banal dos…

Traduzam este livro!
NoMínimo / 15/12/2009

Já virou um clichê destacar a falta de interesse da indústria editorial americana por literatura traduzida, que responde por menos de 3% dos lançamentos literários daquele país culturalmente – quase – autista. (Um trabalho de mapeamento mundial como o da boa revista eletrônica “Words Without Borders”, que tem link permanente aqui no blog, é exceção.) A novidade imaginada pela “Quarterly Conversation” é ir além da mera lamentação e perguntar a tradutores americanos e autores estrangeiros quais livros, entre os que nunca foram vertidos para o inglês, eles consideram de tradução prioritária. O resultado completo pode ser conferido aqui e traz algumas curiosidades. Uma delas é que a maioria dos livros citados também não saiu no Brasil, um país que traduz proporcionalmente muito mais (mesmo porque, embora também autista em muitos aspectos, não anda lá muito interessado em ficção nacional). Outra é que não aparece nenhum autor brasileiro contemporâneo na relação dos entrevistados pela “Quarterly Conversation”. Em compensação, o tradutor Matt Rowe teve a idéia – que não deixa de ser excelente por ser óbvia – de incluir na lista os contos de Machado de Assis, sem dúvida um dos expoentes mundiais do gênero, que até hoje foram lançados em inglês…

Curiosidades etimológicas: Furacão
A palavra é... / 12/12/2009

A palavra “furacão” descende do espanhol huracán, que por sua vez veio do taino, língua indígena antilhana. De huracán saíram também o inglês hurricane, o francês ouragan e o italiano uragano. No entanto, como traçar a origem de uma palavra nunca dá conta de toda a sua riqueza, o Houaiss anota sabiamente que “a forma portuguesa acusa desde o início um alto grau de motivação expressiva”. Motivação expressiva? Isso. Furacão. Fúria do Cão. Publicado no “NoMínimo” em 31/8/2005.

Lugar de livro é no fogo
NoMínimo / 11/12/2009

Quem já tentou doar ótimos livros a escolas e até bibliotecas públicas e se estarreceu com o mal-humorado desinteresse do lado de lá, como se o candidato a doador estivesse pedindo um imenso favor, não vai se surpreender muito com a queima de livros promovida anteontem pela Escola Estadual Ernesto Monte, de Bauru, que um fotógrafo flagrou por acaso. O caso pode ter virado notícia, mas não foge tanto assim a um padrão nacional. O triste padrão do filistinismo. Em compensação, somos os maiores candidatos a potência mundial da vez, oba!

Para os viciados em começos inesquecíveis

Este site (em inglês), que acabo de descobrir, é indicado para quem anda com saudade dos “Começos inesquecíveis”, seção deste blog que está passando por uma espécie de período sabático. Algumas das aberturas de livro que já apareceram por aqui ao longo de três anos e meio estão lá. Mas muitas das que estão lá nunca apareceram por aqui. A seleção é boa, embora excessivamente focada na língua inglesa. Na página de abertura, à esquerda, clique em “All-time favourites” para ter acesso à lista completa e, se quiser levar a brincadeira mais longe, votar no seu começo preferido. Boa diversão.

A bíblia da Bibliosmia
Sobrescritos / 10/12/2009

Acaba de sair, com patrocínio da Kleenex, o aguardado “Manual do cafungador de livros: teoria e prática da resistência bibliósmica” (Nova Cosac Naify, 556 páginas, R$ 2.899,00), suma teológica do movimento surgido espontaneamente nas primeiras décadas do século 21, quando multidões em todo o mundo elegeram seus aparelhos olfativos o último bastião de resistência ao então nascente livro digital. Lançado, claro, apenas em edição de papel, o livro traz um apêndice que ensina os cafungadores calouros a reconhecer os 102 aromas básicos entre os milhares catalogados pela Bibliosmia (almíscar, tanino, funghi, repolho, rolha seca, poeira do sótão, poeira do porão, urina de traça, sêmen de baleia etc.) e relacioná-los aos gêneros literários dos quais emanam. Requinte supremo: o capítulo dedicado a cada eflúvio pode ser, além de lido, cheirado. O que é talvez obrigatório, se procederem as informações de que os cafungadores lêem cada vez menos, chegando a apresentar alta incidência de analfabetismo e cegueira total ou parcial – em compensação, sua exuberância olfatométrica humilha até a dos enólogos. Cheiro de sucesso editorial no ar.

Os melhores livros de 1909
NoMínimo / 09/12/2009

Se não há como fugir do apelo jornalístico das listas de fim de ano, ainda mais inescapável é a necessidade de fundar juízos no distanciamento histórico – um século, por exemplo. Fiel a ditames tão contraditórios, segue uma lista dos cinco mais relevantes lançamentos literários de 1909, um ano desditoso para as letras auriverdes: o primeiro sem Machado de Assis e aquele em que Euclides da Cunha foi assassinado por Dilermando de Assis (nenhum parentesco). Note-se a ausência do prolífico Rui Barbosa, que andou ocupado demais com sua campanha à Presidência da República para publicar qualquer coisa: 1. “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, de Lima Barreto. Mal saiu de cena Machado de Assis, um mulato que não se via como tal, sobe ao palco um que se vê. Publicado em Portugal, este romance, que marca a estréia literária do autor carioca, pinta o retrato de uma sociedade brasileira corrupta e racista. A primeira frase, que algum compilador do futuro poderá incluir entre seus “começos inesquecíveis”, é de uma beleza sombria: “A tristeza, a compreensão e a desigualdade de nível mental do meu meio familiar agiram sobre mim de um modo curioso: deram-me anseios de inteligência”. 2. “Zeverissimações ineptas da crítica”,…

O livro, quando morre, vira ‘conteúdo’
NoMínimo / 07/12/2009

O artigo de Tim Adams no “Observer” de ontem (em inglês, acesso gratuito) versa sobre o tema-clichê do momento, para o qual confesso que minha paciência anda curta: o futuro dos livros na era do Kindle e tal. Mas faz isso de forma brilhante – e meio perturbadora. Segue seu naco inicial em tradução caseira: Duas observações isoladas sobre literatura atraíram minha atenção nos últimos dias e se recusam a me abandonar. A primeira é de uma entrevista de Don DeLillo, autor do grande épico moderno “Submundo”. DeLillo contava como continua escrevendo numa máquina de escrever, e disse o seguinte: “Eu preciso do som das teclas, as teclas de uma máquina de escrever manual. Os braços martelando a página. Gosto de ver as palavras, as frases, à medida que se formam. É uma questão estética: ao trabalhar, tenho um senso de escultor sobre a forma que as palavras vão adquirindo.” A segunda era um anúncio local em minhas páginas amarelas sobre um “game” para Nintendo DS que contém cem livros clássicos. O cartucho vende-se assim: “A Coleção 100 Livros Clássicos transforma seu Nintendo DS numa biblioteca portátil que contém romances de leitura obrigatória de autores icônicos como Charles Dickens, Jane…

Curiosidades etimológicas: Corrupção
A palavra é... / 05/12/2009

Antes de designar a venda ilegal de favores por representantes do poder público, corrupção é deterioração, decomposição física, apodrecimento. “Corrupto” vem do latim corruptus, particípio de “corromper”: é o corrompido, o podre, o que se deixou estragar. Como se vê, nossa linguagem condena a corrupção com uma veemência muito maior do que seria de esperar numa sociedade inclinada a pagar a cerveja do guarda sem pensar duas vezes. Pior: a palavra pode nos induzir ao erro quando dá a entender que a prática é uma espécie de acidente ou queda, desvio lamentável num caminho feito para ser reto e solar. E se ela estiver mais próxima de ser um sistema? Publicado no “NoMínimo” em 27/5/2005.