Certo, todos nós amamos nossos lobisomens e vampiros, mas onde estão os novos monstros do nosso tempo? Onde estão os personagens que refletem a diversidade de nossas ruas e nossas vizinhanças? Quais são as histórias que acessam os terrores da vida moderna? A Campanha pelo Medo Verdadeiro, recém-lançada na blogosfera literária britânica, seria só uma bobagem – reação ao modismo tolinho de enfiar zumbis em todos os clássicos do mundo, provavelmente – se não servisse para nos lembrar, em sua candura, que esse “onde está?” é um dos cacoetes mais idiotas da crítica cultural. Quem pergunta onde está algo que sabe não existir – mas que gostaria tanto, ah tanto, que existisse – parece sensível, inconformista e obviamente superior à mediocridade da cultura contemporânea. Na verdade, é um reacionário sem imaginação. Aquilo que busca é uma restauração, ainda que disfarçada de modernidade: no caso, a restauração do “medo verdadeiro” que as histórias de terror provocaram um dia e, em nossos tempos decadentes, que saco, não provocam mais. Uma mudança real, que crie novas formas para novos conteúdos, está fora do seu horizonte. O adepto do “onde está?” é um saudosista delirante que quer se passar por visionário. Seu epítome é…
Abaixo, a tradução caseira de um trecho publicado pelo “Guardian” de The good man Jesus and the scoundrel Christ (O bom homem Jesus e o canalha Cristo), o novo livro de Philip Pullman, que está sendo lançado depois de amanhã na Inglaterra. Na história, o autor de “A bússola de ouro” – primeiro romance de uma série best-seller cuja suntuosa adaptação cinematográfica foi interrompida após campanha da direita cristã – imagina Jesus e Cristo como irmãos gêmeos antípodas. Se Pullman estivesse falando de Alá, seria fatwa garantida. Mesmo sem sentença de morte, porém, a vida do autor tem tudo para ser difícil nos próximos tempos, como comprova o humor seco deste encontro entre Maria e o “anjo”: Naquele tempo, Maria tinha cerca de dezesseis anos, e José nunca a havia tocado. Uma noite, em seu quarto, ela ouviu um sussurro vindo da janela. – Maria, você sabe como é bonita? Você é a mais adorável de todas as mulheres. O Senhor deve tê-la favorecido especialmente para que fosse tão doce e tão graciosa, e tivesse esses olhos e esses lábios… Ela ficou confusa e disse: – Quem é você? – Sou um anjo – disse a voz. – Deixe-me entrar…
Para se ter uma idéia de como mudou a cabeça da humanidade sobre armas nucleares: há mais de 60 anos, em julho de 1946, o primeiro teste nuclear americano no Atol de Bikini, no Pacífico – o primeiro realizado debaixo d’água – soava tão glamouroso que o lugar batizou uma escandalosa novidade adotada pelas banhistas da Riviera francesa pouco tempo depois. Não é provável que “Coréia do Norte” tenha destino sequer vagamente semelhante. Ah, claro: o poderio – econômico, militar, pop – de quem aperta o botão do detonador também conta um pouquinho. Publicado no NoMínimo em 9/10/2006.
Não é um estudo científico, mas o resultado da pesquisa feita pelo blogueiro e autor americano de fantasia Jim C. Hines com 246 romancistas publicados – aqui e aqui – derruba alguns mitos persistentes no mercado: 1. O de que é possível fazer sucesso do dia para a noite: o grupo mais numeroso de entrevistados levou onze anos entre começar a escrever e publicar seu primeiro livro – e houve quem levasse mais de quarenta. 2. O de que, sem um pistolão, é impossível para um autor inédito arrombar a porta das grandes editoras. 3. O de que publicar contos em revistas abre caminho para a edição de narrativas longas (este é um mito mais americano). O subtexto é que, no fim, o que conta mesmo é a velha dobradinha: talento e suor. O trabalho de Hines é apresentado meticulosamente. Vale a pena conferir todas as tabulações.
Um dos maiores prazeres da rede mundial de computadores é, no meio da barafunda de informações – que, dizem, logo vai nos afogar – encontrar aqui e ali convergências e cruzamentos, nós de concordância ou de tensão. Quando ligamos os pontinhos para destilar algum sentido da geléia geral, pagamos tributo à etimologia da palavra “inteligência” e adiamos mais um pouco a tal submersão. Isso acaba de ocorrer com a idéia de trabalho remunerado x expressão artística, que de repente parece estar por toda parte. Em outras palavras, como a necessidade de “ganhar a vida” influencia a produção desses bens simbólicos que, quase sempre, têm valor de mercado risível demais para garantir sua dose diária de nutrientes. Longe de ser uma discussão bizantina, trata-se de algo que qualquer escritor – com exceção dos ricos de berço ou de baú, uma fração tão pequena que chega a ser desprezível – precisa enfrentar desde cedo e provavelmente pelo resto de sua carreira. Um bom emprego público foi, por décadas a fio, a solução da cultura brasileira para o problema. Mas o serviço público já não é o que costumava ser. Atualmente, o dilema dos escritores tem sido posto com maior freqüência em termos…
É divertido, de um jeito constrangedor, esse vídeo em que o escritor inglês Geoff Dyer, num evento em Adelaide, tenta fazer uma piadinha de salão com seu anfitrião J.M. Coetzee. Explicação de The Elegant Variation, onde descobri a coisa: “Coetzee não tem músculos faciais”.
A amiga Marina Lemle pergunta como e por que “espinafrar” virou, na linguagem informal brasileira, sinônimo de repreender duramente, passar uma descompostura em alguém, ou ainda criticar de forma arrasadora. O que o inocente espinafre, verdura imortalizada pelo marinheiro Popeye e tão valorizada pelas mamães, tem a ver com isso? Segundo o etimologista Silveira Bueno, nada. Vejam o que ele diz sobre espinafrar: “Palavra da gíria onde entra a idéia de espinho, na forma espina, sendo obscura a segunda parte frar. Nada tem com espinafre”. Mas tudo indica que Silveira Bueno se enganou. O próprio sentido que ele atribui ao verbo, o de “amolar, apoquentar, massar, irritar”, não bate bem com o que se encontra em outros dicionários. Houaiss e Aurélio concordam que espinafrar deriva mesmo de espinafre, e o primeiro registra uma curiosa acepção portuguesa que bem pode ser a explicação que faltava para o sentido da gíria brasileira: “tornar(-se) semelhante ao espinafre”. De fato, segundo o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, “espinafrar” nasceu com um significado preciso: “Fazer ficar ou ficar alto e magro como um espinafre”. Diz-se, por exemplo: “Sabe aquele rapaz? De um ano para cá, espinafrou”. Nenhuma relação com a gíria brasileira, como…
Os dois são famosos por sua reclusão. Os dois são contistas maiores com muitas décadas de carreira. E, curiosamente, estiveram no noticiário esta semana desempenhando papéis opostos: Rubem Fonseca, o de mestre fofo e feliz da jovem escritora Paula Parisot; Dalton Trevisan, o de ex-mestre rancoroso e arrependido do escritor de meia-idade Miguel Sanches Neto. As relações atribuladas entre mestre e discípulo no meio literário são tão antigas quanto a própria literatura. Virou lugar-comum recorrer a um enfoque psicanalítico – a necessidade de matar o pai, tal e coisa – para explicar por que tantas delas acabam mal. Como, em episódio relativamente recente, a do protegido Paul Theroux com o mestre V.S. Naipaul, que, consumado o rompimento, foi recapitulada pelo primeiro num livro nada lisonjeiro chamado Sir Vidia’s shadow. A posição de Theroux é semelhante à do escritor paranaense Miguel Sanches Neto, que acaba de publicar pela Objetiva o romance à clef “Chá das cinco com o vampiro”. Nele, com pouca sutileza, transforma seu ex-ídolo Dalton Trevisan no egocêntrico contista Geraldo Trentini. A briga entre Sanches e Trevisan é velha de meia dúzia de anos: ao tomar conhecimento dos originais desse romance, o escritor famoso chamou publicamente o ex-discípulo de…
O lançamento de “Sobrescritos” em Porto Alegre, na próxima segunda, dia 22, na Palavraria, ganhou uma participação especialíssima: Claudia Tajes, fina cultora da ficção cômica, autora de “As pernas de Úrsula” e “A vida sexual da mulher feia”, vai bater um papo comigo antes da tradicional sessão de autógrafos. Colorados e gremistas estão todos convidados: Falando em ficção cômica, peço licença aos leitores para reproduzir um trecho da pequena grande resenha que Paulo Roberto Pires publicou sobre o livro em seu blog no site da revista “Bravo!”: As 40 histórias, originalmente postadas no Todoprosa, são machadianas até o talo. Mas quem se apresenta é o Machado reloaded, pois é com o pixel da galhofa e o toner da melancolia que o Sérgio vai desenhando sua versão ácida da vida literária 2.0 (…) A Belle Époque já teve sua crônica registrada em “A vida literária no Brasil 1900”, de Brito Broca. O século XIX foi contemplado por Ubiratan Machado em “A vida literária no Brasil durante o romantismo”, que acaba de ser lançado pela nova editora Tinta Negra. Pois nossos dias precários têm sua modorra transformada em comédia nos “Sobrescritos”.
Quer virar escritor? Beba muito café. O aditivo é, disparado, o mais popular entre os trinta escritores brasileiros a quem Michel Laub, numa enquete divertida, perguntou sobre rituais, superstições e manias na hora de escrever – aqui. Eu mesmo não citei a maravilhosa infusão em meu depoimento, mas bem poderia ter citado. Pois é: as tais “portas da percepção” de Aldous Huxley já foram menos legais. Laub, que também é romancista, promete dar prosseguimento à série até chegar a cem nomes.
O crítico literário inglês Terry Eagleton é um bicho meio raro nos dias de hoje: um intelectual que, entre uma visão de mundo pautada no marxismo e a reflexão livre e iconoclasta, fica com as duas. Presença confirmada na Flip deste ano, em agosto, só resta lamentar que dois de seus maiores adversários intelectuais tenham vindo em outras edições do evento – Martin Amis em 2004 e Christopher Hitchens em 2006. Do contrário, poderíamos ver faíscas saindo daquelas pedras absurdas que em Parati passam por calçamento. E talvez ainda possamos: Salman Rushdie, que volta à festa após a participação de 2005, também entra na turma de “literatos iliberais” que Eagleton ataca em entrevista (em inglês, acesso gratuito) publicada há poucos dias pela “New Statesman”, da qual reproduzo o trechinho abaixo: Por muito tempo, eles [Hitchens e Amis] eram bastante divergentes politicamente: Hitchens ainda era uma espécie de socialista e Amis, veementemente anticomunista de uma forma desinteressante, estilo Guerra Fria. Mas desde então eles convergiram. E hoje são velhos chapas apoiando-se um ao outro, respondendo instantaneamente a qualquer ataque que o outro sofra. Me intriga o modo como todo um estrato de literatos liberais (Rushdie, Ian McEwan em certa medida, AC…
Eu quase nunca concordava com o crítico Wilson Martins. Ao longo de muitos anos, talvez se contem nos dedos de uma mão as ocasiões em que terminei de ler uma resenha sua sem ter com ela alguma divergência grave, um ou mais pontos em que nossos credos estéticos pareciam água e óleo. O que demorei mais a descobrir foi que, por baixo de toda aquela discussão, havia uma concordância maior, um pacto sem a qual ela, a discussão, cairia no vazio. Martins ousava falar da literatura de dentro, seu pensamento era inteiramente feito de literatura. Ele não partia do livro para chegar a outro lugar, nem vinha de outro lugar para abordar o livro. Morava ali, e quando saía era para inspecionar a relação do livro com… outros livros. Avesso a sistemas, a “verdades” importadas de campos fora das letras, arriscava o pescoço a cada resenha. É o que torna sua “História da Inteligência Brasileira” tão caótica e tão interessante: o pulso de vida real. A literatura para Martins nunca era sintoma, era o que importava, como deve mesmo ser, se você tem a pretensão de se declarar crítico literário. Quando o relativismo cultural começou a tentar nos convencer –…
O leitor Alexandre Telles pergunta pela origem da palavra “chiste”, que quer dizer gracejo, dito espirituoso, piada curta. Segundo o Houaiss, o termo foi importado do espanhol chiste, forma regressiva do verbo chistar. O curioso é que a formação de chistar parece ser onomatopaica, ou seja, imitativa do som – não é gratuita, portanto, a semelhança sonora de “chiste” com a interjeição “psit”. Chistar é, na origem, “falar em voz baixa, sussurrar gracejos”. Embora tenha nascido ao pé do ouvido, o chiste já não guarda esse caráter de cochicho – “cochicho” que também é uma onomatopéia. Publicado no NoMínimo em 28/11/2006.
Nada como um espírito-de-porco ou advogado do diabo para nos fazer pensar com mais lucidez quando todo mundo fica histérico. Levi Asher, do Literary Kicks (via blog de livros da “New Yorker”), ousa insinuar que o rei está nu: Muitos observadores esperam que o mercado de livros eletrônicos acompanhe a velocidade do mercado de música, que se tornou subitamente digital no início dos anos 2000 e que hoje, provavelmente, guarda uma relação de 95% a 5% entre digital e analógico (uma diferença enorme para os 50% a 50% que eu prevejo para os livros dentro de vinte anos). Tornou-se lugar-comum dizer que o e-book será tão popular quanto o MP3, mas o MP3 solucionou alguns problemas reais, ao contrário do que faz o e-book. A equação sensorial/física de ouvir música é na verdade muito diferente da de ler. Um aparelho de MP3 desaparece quando você ouve música. Um livro não desaparece – nem no reino digital nem no impresso. Você olha para ele. Faz diferença que tamanho ele tem, de que cor é, se é duro ou mole, se é frágil, se marca a página em que você está. Ao ler um livro, todas essas considerações afetam seu prazer, de…
O livro Reality hunger, a manifesto (“Fome de realidade, um manifesto”), do escritor e ex-romancista americano David Shields, saiu há apenas duas semanas nos EUA e já está provocando – tanto na internet quanto na imprensa tradicional – um dos debates estéticos mais quentes dos últimos anos. Sua intenção nunca foi outra, claro. O livro é uma coleção de seis centenas de aforismos e micro-ensaios (muitos assumidamente chupados de terceiros) que se revela, mesmo à mais diagonal das leituras, um ataque frontal à imaginação e à ficção em geral – que corresponderiam a uma sensibilidade passadista, destituída de vida. Ao mesmo tempo, faz uma defesa fervorosa do ensaio, da reportagem, da livre apropriação de idéias (que muitos chamam de plágio), do memorialismo que toma liberdades criativas com seu material, dos reality shows e do hip hop – estes sim, segundo o autor, gêneros e formatos afinados com o ar de nossos tempos. Que, como se sabe, está mais para vendaval. Por atingir seu objetivo de criar polêmica, palmas para Shields. Convenhamos que a polêmica mora no horizonte de qualquer manifesto, o gênero mais fácil e previsível para se chegar a ela, mas palmas mesmo assim. (Até um manifesto despretensioso como…
Imperdível: no blog de Paulo Roberto Pires, o escritor holandês Cees Nooteboom procura, no cemitério São João Batista, o túmulo do escritor brasileiro Machado de Assis. “Quem?” Tarefa imperdoavelmente difícil.