Ontem, encontrei as cartas que Violet escreveu para Bill. Estavam escondidas entre as páginas de um dos livros dele, de onde escorregaram e caíram no chão. Embora eu já soubesse da existência dessas cartas fazia anos, Bill e Violet nunca me contaram o que havia nelas. Contaram, no entanto, que minutos depois de ter lido a quinta e última carta, Bill mudou de idéia sobre seu casamento com Lucille, saiu pela porta do prédio da Greene Street e foi direto para o apartamento de Violet, no East Village. Quando segurei aquelas cartas com minhas mãos, senti que tinham o peso misterioso das coisas encantadas por histórias que já foram contadas e recontadas uma infinidade de vezes. Enxergo muito mal atualmente e levei um tempo enorme para conseguir lê-las, mas acabei conseguindo distinguir cada palavra. Quando guardei de novo as cartas, sabia que começaria a escrever este livro hoje. Mais conhecida por aqui como “a mulher do Paul Auster”, a americana de ascendência norueguesa Siri Hustvedt mostrou em “O que eu amava” (Companhia das Letras, 2004, tradução de Sonia Moreira), seu terceiro romance e o primeiro lançado no Brasil, que tem voz própria e madura. O tijolo de 500 páginas sobre…
Este artigo (em inglês) de Viv Groskop no site do jornal “Daily Telegraph” defende bravamente uma tese com a qual, para minha surpresa, estou cada vez mais de acordo: o Twitter é o “paraíso dos viciados em livros”. O texto invoca em seu apoio uma frase de Margaret Atwood, aliás, @MargaretAtwood, ela própria tuiteira: “Fui tragada pela Twittersfera como Alice pela toca do coelho” – 67 toques no original, 60 na tradução. A conclusão de Groskop tem tudo para surpreender os que, como eu mesmo até poucos meses atrás, ainda consideram o Twitter um modismo tolo e superficial, talhado para quem tem tempo demais e obrigações de menos, onde proliferam mensagens de importância capital como: “Bom dia, tô comendo granola com mel!” ou “O motorista do ônibus que eu peguei pra vir pro trabalho é os cornos do Léo Moura”. Não é que os recados irrelevantes não estejam lá. Provavelmente são maioria. O que os detratores do Twitter não percebem é que a coisa tem a cara do dono. Tudo depende, claro, de quem você segue. O artigo do “Telegraph” lembra que a rede está cheia de escritores de verdade – @paulocoelho é um dos citados – tuitando e sendo…
A indicação de “Solar”, o novo livro de Ian McEwan, para o prêmio britânico Wodehouse (homenagem ao escritor P.G. Wodehouse), dedicado exclusivamente à ficção cômica, é uma rara ponte sobre o abismo que parece estar se alargando no mundo inteiro – e certamente no Brasil – entre a “literatura séria” e o humor. “Solar” não é um livro de piadas e seu autor, definitivamente, não está para brincadeiras. Mas será engraçado mesmo o romance em que McEwan satiriza a luta de um físico famoso para salvar o planeta do aquecimento global? Pode apostar que sim. Lançado há cerca de um mês e ainda não traduzido no Brasil (leia a resenha que escrevi para o iG aqui), “Solar” não me provocou uma única gargalhada. Não se trata desse tipo de comédia. Em lugar disso, o que temos é uma longa sucessão de trechos angustiantes e risinhos mais ou menos nervosos, desses que não iluminam a sala nem lavam a alma, mas acendem clarões na cabeça. O anti-herói Michael Beard, prêmio Nobel de Física, corre – isto é, até o ponto em que sua carcaça baixinha e roliça lhe permite correr – para livrar o mundo de uma catástrofe, ao mesmo tempo…
A confirmação da cubana Wendy Guerra na Flip não poderia ofuscar a do lendário quadrinista americano Robert Crumb, mas, por razões alheias à qualidade artística, chegou perto. A autora de “Nunca fui primeira-dama” – seu primeiro romance traduzido no Brasil, a ser lançado esta semana – é uma ex-apresentadora de programa infantil de TV que já posou nua por amor à arte. É também uma escritora séria cujos romances permanecem inéditos em seu país. O posto de musa da Flip 2010 já tem dona.
O leitor Igor Felipe, do Recife, gostou da palavra “escambau”, que usei outro dia, e pergunta por seu “significado e origem”. “Desde pequeno escuto essa palavra mas só descobri sua grafia na sua coluna”, diz Igor, acrescentando já ter visto por aí as formas “iscambau”, “uscambau” e “scambau”. “Escambau” – grafada assim nos dicionários – é uma das minhas gírias antiguinhas de estimação. Leva a data de 1950 no Houaiss, mas tem o misterioso poder de conservar um certo frescor. Não faz o falante parecer recém-saído de uma câmara criogênica, como ocorre com “jóia”, “brasa”, “bokomoko”. O sentido de “o escambau” é, como se sabe, “mais um monte de coisas” – uma espécie de “etc.” menos formal e mais enfático. Também é possível encontrar a palavra, com menos freqüência, num papel que costuma ser assumido por palavrões. Exemplo: “Ingênuo, eu? Ingênuo é o escambau!” Sua origem é controversa, mas a tese que soa mais plausível deriva a palavra de “cambada” (porção de coisas, cambulhada). O Houaiss, sempre ele, explica como isso teria ocorrido: “com alteração de sufixo para -al, ‘grande quantidade’, e depois grafado com -u, seguindo a pronúncia do -l final, predominante no Brasil”. Publicado no “NoMínimo” em 28/8/2006.
No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h30m da manhã para esperar o navio em que chegava o bispo. Tinha sonhado que atravessava um bosque de grandes figueiras onde caía uma chuva branda, e por um instante foi feliz no sonho, mas ao acordar sentiu-se completamente salpicado de cagada de pássaros. “Sempre sonhava com árvores”, disse-me sua mãe 27 anos depois, evocando os pormenores daquela segunda-feira ingrata. A seção Começos inesquecíveis estava de férias desde outubro do ano passado, quando seu primeiro ciclo foi fechado com a eleição, pelos leitores do blog, da abertura de “Ana Karenina”, de Leon Tolstoi, como o mais memorável entre os começos memoráveis da literatura. Um dos concorrentes de Tolstoi na ocasião foi, é claro, Gabriel García Márquez com a primeira frase de “Cem anos de solidão”. Considerado por muitos vítima de uma injustiça, faz sentido que o colombiano ganhe agora mais uma chance de entrar no jogo, na segunda edição da enquete que o futuro nos reserva, e o privilégio de inaugurar a nova temporada de aberturas literárias brilhantes do Todoprosa. O começo de “Crônica de uma morte anunciada” (Record, tradução de Remy Gorga, filho) pode não ser tão sensacional quanto…
Um post no blog de livros do “Guardian”, a propósito da recém-lançada edição temática da revista “Granta” sobre sexo, sustenta – meio a sério, meio brincando – que a masturbação é a última fronteira. Em outras palavras: que hoje, quando os leitores já não se chocam com quase nada, as imaginosas artes do amor-próprio sobrevivem como o último tabu literário. Segundo o autor do post, Chris Cox, muito pouca boa literatura foi feita sobre o assunto. (Cecilio Giovenazzi ficou indignado, mas deixa pra lá.) Claro que Cox cita o óbvio “Complexo de Portnoy”, de Philip Roth, como uma das exceções que confirmam sua suposta regra. Pensei em escrever para acrescentar um conto de Martin Amis, “Let me count the times”, mas imaginei que, diante do número incontável de exceções nomeáveis, isso seria perda de tempo. Por sorte, nem todo mundo pensou assim. Foi na caixa de comentários – um dos pontos altos do blog do “Guardian”, que, além de pré-cadastrar os comentaristas, faz uma boa triagem – que eu encontrei o tesouro do dia: um conto de Chuck Palahniuk chamado “Guts”, publicado na revista “Playboy” em 2004 e disponível na íntegra, em inglês, aqui. Uma pequena e crudelíssima obra-prima de…
1. Minha contribuição ao (bem-vindo) tsunami de informação provocado pela estréia iminente da “Alice” de Tim Burton, hoje na home de Cultura do iG: Inspiradas nas histórias orais que Dodgson improvisava para uma amiguinha real, Alice Liddell, de 10 anos, as aventuras de Alice são uma das obras capitais da literatura infantil, com tradução para 125 línguas. Mas são mais do que isso: a fúria com que seu autor, matemático de prestígio, empacotou ali paradoxos, charadas, jogos de palavras e neologismos garantiu-lhes um cartaz talvez até maior com os leitores adultos. James Joyce e Jorge Luis Borges estão entre os grandes escritores influenciados por Carroll, que, sob muitos aspectos, foi o maior precursor do modernismo a escrever no século 19. 2. Meu Kindle está acabando de ler “Solar”, de Ian McEwan, e gostando muito. Assim que ele me contar suas impressões finais, prometo dividi-las com os leitores. 3. Claro e informativo este artigo de Claudio Soares, intitulado “Os leitores brasileiros e o livro digital”. 4. Um dos grandes mistérios do terceiro milênio: por que será que a internet predispõe tantos leitores, que na vida real talvez sejam flores de cidadãos, ao ataque histérico e ao insulto grotesco? 5. E o…
A Penguin australiana está recolhendo e destruindo 7 mil exemplares de um livro de culinária especializado em massas, “Pasta Bible”, por causa de um erro de revisão. Um erro gravíssimo: uma receita manda adicionar ao tagliatelle salt and freshly ground black people (“sal e pessoas negras recém-moídas”) em vez de black pepper (pimenta-do-reino).
“Aloprado” é uma palavra exclusiva do português brasileiro que quer dizer “amalucado, desatinado” ou “agitado, inquieto”. Vem de “lorpa”, termo que, como “pascácio”, é hoje pouco usado mas designa com eloqüência cômica um idiota, imbecil, palerma. De “alorpado”, apalermado, se fez “aloprado” por meio de uma operação lingüística conhecida como metátese, que consiste no deslocamento de fonemas ou letras dentro de uma palavra. Esse deslocamento pode ser produzido deliberadamente por um autor em busca de efeito poético – como Camões ao escrever, nos Lusíadas, sobre “ventos contrairos” – ou ser um trabalho anônimo de gerações de falantes, como o que transformou “desvariar” em “desvairar”. “Aloprado” está no último caso. Publicado no “NoMínimo” em 26/9/2006.
O “avô dos e-books” (o honroso título lhe foi dado pelo “New York Times” neste artigo) chamava-se Bob Brown e viveu entre os anos 1930 e 1940 no Rio de Janeiro, onde fundou uma revista de negócios chamada “Brazilian American”. Seu nome completo era Robert Carlton Brown, nascido em Chicago em 1886. Trata-se de uma figuraça: autor de literatura popular, poeta, roteirista de cinema, jornalista, editor e artista de vanguarda com um círculo de amizades que incluía Marcel Duchamp e Gertrude Stein, Brown publicou em 1930 um manifesto chamado “The Readies”, em que declarava guerra ao livro de papel: A palavra escrita não acompanhou o tempo. (…) Para continuar lendo na velocidade dos dias de hoje, eu preciso de uma máquina. Uma máquina simples de leitura que eu possa carregar comigo, ligar em qualquer tomada velha e ler romances de centenas de milhares de palavras em dez minutos se eu quiser, e eu quero. A tal máquina, que chegou a ter um protótipo construído por um amigo, tinha uma fita de texto correndo por trás de uma lente de aumento a uma velocidade controlada pelo leitor. Está mais para um microfilme, mas Brown não queria parar por aí. Antevia o…
Por falar em trailer de livro, taí uma coisa bela.
Um amigo me dá a notícia que, confirmada, seria um dos mais eloquentes sinais do fim do mundo como o conhecemos: “O Google Translate virou uma ferramenta perfeita!” Como assim? Até outro dia mesmo, eu me lembrava bem, a burrice cômica dos tradutores automáticos e os textos pedregosos e repletos de armadilhas que eles produziam eram parte da paisagem virtual. Pareciam indicar um limite claro – e provavelmente eterno – para a automação, preservando uma área enorme para a ação humana: traduzir, como de resto escrever, é uma operação sofisticada demais para prescindir de um cérebro biológico, certo? E agora vinha o meu amigo, também ele escritor, dizer que o Google Translate tinha gastado rios de dinheiro em pesquisa e virado uma ferramenta perfeita! Cético, fui conferir. Logo descobri com alívio que não, o Google Translate está longe de ser uma ferramenta perfeita. Duvido que seja um dia. Mas, caramba, como melhorou! Sua relativa acurácia pode ser conferida neste quadro (em inglês) publicado mês passado pelo “New York Times”, que pega trechos em diversas línguas – inclusive de “O pequeno príncipe”, “Cem anos de solidão” e “A metamorfose” – e compara quatro traduções de cada um deles para o inglês:…
Este trecho de um atualíssimo ensaio do historiador americano Robert Darnton, intitulado O Google e o futuro dos livros e publicado no número de estréia da revista “Serrote”, dá uma boa idéia de por que o diretor da Biblioteca de Harvard é até o momento, das atrações já confirmadas pela Flip para depois da Copa do Mundo, a mais atraente: O que acontecerá se o Google privilegiar a lucratividade ao livre acesso? Nada, se eu li os termos do acordo corretamente. Somente o representante legal, agindo pelos detentores de copyright, tem o poder de forçar uma mudança nos preços de subscrição cobrados pelo Google, e não há nenhuma razão para se esperar que ele se oponha, caso os preços fiquem muito elevados. O Google pode optar por ser generoso nos preços, mas poderia também empregar uma estratégia comparável à que se mostrou tão eficaz nas publicações acadêmicas especializadas: primeiro, atrair assinantes com preços iniciais baixos, e depois, quando eles estiverem fisgados, aumentar os valores até o ponto em que o comércio suportar. (…) Ninguém pode prever o que acontecerá. Podemos somente ler os termos do acordo e imaginar o futuro. Se o Google tornar acessível, a um preço razoável, os…
A consulta vem do leitor Olney Figueiredo: Dá pra explicar o motivo do uso de “cachê” (do francês, “oculto”) como forma de pagamento de artistas? Na verdade, nosso cachê foi importado do francês cachet, que não guarda relação com o verbo cacher, “disfarçar, dissimular, esconder”. Embora possa sugerir a imagem de um pagamento envergonhado, feito na moita, o cachê não tem nada a ver com isso. A palavra cachet, cujas acepções mais antigas são “sinete, carimbo, selo”, acabou adquirindo em francês o sentido, entre outros, de remuneração dada a um artista por cada uma de suas apresentações. O caminho que percorreu para chegar a esse ponto incluiu carnês – carimbados, claro – que iam sendo destacados a cada pagamento. Publicado no “NoMínimo” em 11/9/2006.
É divertido este artigo (em inglês) de Jeanette Demain na “Salon” sobre os resenhistas amadores da Amazon que detonam clássicos da literatura. O que poderia ser até saudável – a candura de um olhar leigo servindo para balançar certos consensos enferrujados da crítica acadêmica – acaba se tornando um espetáculo deprimente em que o analfabetismo funcional (ou, nos casos menos graves, literário) se cruza com aquela disposição enfezadinha que a internet, por alguma razão, parece estimular em tanta gente. Alguns trechos selecionados por Demain: “Graças a Deus a Srta. Lee só escreveu este livro; o seguinte com certeza degradaria ainda mais a sociedade.” (Sobre “O sol é para todos”, de Harper Lee.) “Intermináveis descrições sem sentido. DESCRIÇÃO, DESCRIÇÃO, DESCRIÇÃO!!! O livro inteiro é escrito em metáforas estúpidas.” (Sobre “Jane Eyre”, de Charlotte Brontë.) “No começo eu gostei do livro. Aí ele começou a ficar um saco na altura em que Winston estava se envolvendo sexualmente com sua amiga. Eu odiei tanto o livro que esqueci o nome dela. Gostei das primeiras cento e poucas páginas, aí ficou muito chato.” (Sobre “1984”, de George Orwell.) “Rapaz, este livro é chato. Acontece um monte de coisas estranhas e é mais difícil de…
Correndo para pegar daqui a pouco o vôo para São Paulo, onde lanço hoje à noite o “Sobrescritos” na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, publico alguns links que, mesmo mal passados, espero serem capazes de preencher a cota diária de todoprosismo dos mais inveterados todoprosistas: 1. Em sua coluna (em inglês) sobre questões éticas da vida moderna no “New York Times”, Randy Cohen considera perfeitamente legítimo baixar de graça a versão digital de um livro se você já pagou por um exemplar de papel: “É como comprar um CD e depois copiá-lo para o seu iPod”. Pirateadores contumazes vão achar ridículo. Vindo de onde vem, significa muito. 2. “Quis o acaso, por exemplo, que Martin Amis, Paul Auster, Bret Easton Ellis e J. G. Ballard tivessem personagens de seus livros interpretados pelo canastrão James Spader.” Falando do livro “Da literatura para o cinema”, de Julio Alfradique e Carla Lima, Almir de Freitas cata pepitas de informação na fronteira entre duas artes que nunca deixaram de namorar – embora vivam adiando o casamento. 3. E, para completar, uma pitada de autopromoção: falando do “Sobrescritos” no Digestivo Cultural, Julio Daio Borges considera-o “um dos melhores livros de contos dos últimos tempos e…