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Se é para consertar o Jabuti, valeu
Vida literária / 29/11/2010

Bons ou ruins, antenados ou sem noção, criteriosos ou politiqueiros, todos os grandes prêmios literários têm um vício de origem. Estão para a literatura como a decoração de shopping está para um certo espírito de Natal: têm visibilidade e movimentam a ciranda dos interesses comerciais, mas passam longe de captar a essência da coisa. Tal convicção sempre levou este blog, em seus quatro anos e meio de existência, a oscilar entre o comentário breve e o silêncio significativo diante dos prêmios nacionais, mesmo reconhecendo seu papel na divulgação de livros e autores. Ocorre que essas cerimônias já fazem os tambores soar em alto volume por toda parte, restando assuntos mais relevantes a tratar se o seu negócio é literatura, esse nicho rarefeito, e não mercado editorial ou outros temas periféricos. O Jabuti, então, pouco deu as caras por aqui. O mais tradicional de nossos galardões vem sendo também, de forma consistente, o menos artisticamente sério. Mas a celeuma em torno da premiação de “Leite derramado”, de Chico Buarque, que a princípio julguei conveniente submeter ao mesmo tratamento, chegou tão longe que altera a equação. Não porque tenha algo a ver com mérito literário: o último romance do grande compositor –…

A ironia segundo David Foster Wallace
Primeira mão / 26/11/2010

…a TV americana dos primeiros tempos fazia uma apologia hipócrita de valores cuja realidade tornara-se atenuada num período dominado por grandes corporações, entrincheiramento burocrático, aventureirismo além-fronteiras, conflito racial, bombardeios secretos, assassinatos, escutas telefônicas etc. Não se trata de nenhum acidente que a ficção pós-moderna tenha ajustado sua mira irônica sobre o banal, o ingênuo, o sentimental, o simplista e o conservador, pois essas eram precisamente as características que a TV dos anos 60 parecia celebrar como distintamente americanas. A ironia rebelde da melhor ficção pós-moderna não era apenas plausível como arte; parecia ter plena utilidade social em sua capacidade de fazer o que os críticos da contracultura definiram como uma “negação crítica que deixasse evidente para todos que o mundo não é o que parece ser”. A sombria paródia dos hospícios feita por Kesey sugeria que os árbitros de nossa sanidade eram frequentemente mais malucos que seus pacientes; Pynchon reorientou nossa visão da paranoia, promovendo-a de desvio psicológico marginal a fibra principal no tecido corporativo-burocrático; DeLillo expôs a imagem, o signo, a informação e a tecnologia como agentes do caos espiritual e não da ordem social. As doentias investigações de Burroughs sobre o torpor americano detonavam a hipocrisia; a denúncia…

Fala, Raymond Chandler!
Pelo mundo / 24/11/2010

Natal antecipado aqui no Todoprosa: em quatro partes, do arquivo da BBC para o YouTube, esta sensacional entrevista de rádio concedida por Raymond Chandler a Ian Fleming em Londres em 1958, poucos meses antes de morrer. Consta que se trata do único registro da voz do genial – além de profundamente amargurado com a crítica americana e levemente alcoolizado, como se verá – criador de Philip Marlowe, consciência crítica de Los Angeles, o mais perfeito exemplar de detetive hard-boiled da história: 1, 2, 3, 4.

Sobre o artigo de Italo Moriconi no ‘Prosa’
Vida literária / 22/11/2010

Ao longo de três décadas, dos anos 60 aos 90, o ensino universitário da literatura desconstruiu o fetiche da “boa literatura” em nome de uma ciência/política geral dos discursos e da noção do texto como objeto do desejo estético, autorizado por disciplinas que iam desde a psicanálise e a antropologia até os marcos existenciais e estéticos de um contexto favorável ao anticonvencional, às experimentações, às vanguardas tardias ou pós-modernas, aos minimalismos antinarrativos. Tudo isso mudou. As sucessivas levas de novos escritores surgidas nos últimos anos, com algumas exceções, não têm estado nem um pouco interessadas em desconstruir o signo literário ou questionar convenções de qualquer tipo, até porque esse questionamento já se tornara ele próprio convencional e repetitivo. Elas têm se mostrado interessadas em recuperar e praticar o valor positivo do fetiche literário enquanto algo pragmático. Sobretudo estão interessadas em buscar seu público não através da mediação da academia (como ocorrera em parte no caso da geração 70) e sim na relação direta com as clássicas instituições do mercado e da vida literária extra-acadêmica. O imperdível artigo “A reinvenção do fetiche literário”, de Italo Moriconi, publicado no Prosa & Verso do último sábado, faz a necessária – ainda que tardia…

Nick Hornby e todos aqueles grandes garotos
Pelo mundo / 19/11/2010

O inglês Nick Hornby é o mais recente nome da literatura a aderir a uma bela tendência internacional que bem poderia servir de inspiração para iniciativas locais: abre hoje em Londres uma oficina literária gratuita para crianças a partir de seis anos, com base no trabalho voluntário de escritores e de quem mais quiser participar e em colaboração com escolas públicas da cidade. O autor de “Febre de bola” e “Um grande garoto” segue os passos do americano Dave Eggers, que desde 2002 tem ajudado a espalhar pelos Estados Unidos “clubes de escrita” do gênero, tendo sempre como fachada e chamariz uma loja temática de apelo lúdico – de produtos para piratas, super-heróis ou viajantes espaciais. Em Londres, a decoração e os produtos à venda terão como tema o universo das histórias de horror. O Ministério das Histórias, como Hornby batizou o projeto, anuncia entre seus professores estrelas literárias do calibre de Zadie Smith e Roddy Doyle – que por sua vez encabeça uma empreitada semelhante na Irlanda – e apregoa o objetivo nada modesto de “inspirar uma nação de contadores de histórias”. Aí alguém pode perguntar, pensando no post de quarta-feira passada aqui no blog: mas já não temos…

A hipótese dos dez milhões de escritores
Pelo mundo / 17/11/2010

É uma percepção mais ou menos generalizada que nunca houve no mundo tanta gente escrevendo a sério, isto é, não necessariamente escrevendo bem, mas com suficiente investimento emocional na atividade para sonhar com alguma medida de glória literária. Quantificar o fenômeno é praticamente impossível, claro, mas não creio que essa percepção esteja errada, por mais desconcertante que seja conciliá-la com o evidente declínio de prestígio social pelo qual passa a literatura há um punhado de décadas. Na falta de métodos mais rigorosos – como a inclusão da questão no censo, por exemplo: “Quantos banheiros tem a casa? Quantos escritores?” – talvez se possa tomar como ponto de partida um cálculo meio maluco feito por Alix Christie, ela própria uma ficcionista inédita, para a revista More Intelligent Life: existiriam em todo o mundo dez milhões de pessoas escrevendo ou tentando escrever romances. O número é uma invenção, mas sustentado por uma tosca matemática. Duzentos e cinquenta mil novos romances são publicados anualmente no planeta, dos quais cem mil em inglês. Isso representa, por sua vez, talvez um quarto dos manuscritos que os agentes tentam emplacar. Os agentes, como os escritores sabem, aceitam apenas uma pequena proporção dos trabalhos que lhes são…

O dia em que a ‘New Yorker’ não falou da literatura brasileira
Vida literária / 15/11/2010

Há pouco mais de dois anos recebi em casa uma ligação incomum: do outro lado da linha, uma simpática repórter da “New Yorker” queria saber minha opinião sobre Paulo Coelho, que seria tema de uma longa reportagem naquela que considero a melhor revista do mundo. Animado pela vaidade de ter minha opinião requisitada pela “New Yorker”, ainda que sobre um tema pelo qual tenho reduzido interesse, falei longamente sobre nosso representante solitário no jet-set literário internacional. A conversa começou a degringolar quando a entrevistadora me perguntou por que, com seu enorme sucesso, PC não tinha franqueado as portas do mercado internacional para outros escritores brasileiros – por que, em suma, não contava com um mísero seguidor. – Ah, porque seu trabalho é algo à parte, mais relacionado com Carlos Castañeda ou Richard Bach do que com qualquer coisa feita aqui – respondi. – Não tem ligação absolutamente nenhuma com a tradição da literatura brasileira. Foi quando ouvi a pergunta singela, ofensiva, espantosa: – Mas a literatura brasileira tem uma tradição? Passado o choque que a arrogância imperialista sempre provoca, especialmente quando distraída, espontânea, simpaticíssima (“sua casa tem água encanada, jura?”), a entrevista virou um curso intensivo e meio atropelado de…

Votação dos livros do ano: indique os concorrentes
Vida literária / 12/11/2010

Eleger os livros do ano é um clichê jornalístico, mas um clichê incontornável, além de salutar. Como os prêmios literários, e muitas vezes com mais eficácia do que estes, as listas de highlights que pipocam em torno do Natal – e que proliferam em todas as áreas, claro, não só na literatura – nos ajudam a imprimir uma certa sensação de ordem ao fluxo das novidades que, sempre excessivas, inundam o ano inteiro. Recapitular, eleger destaques e hierarquizá-los são atividades próximas de arrumar aquele armário cheio de entulho e conservar só o que interessa. Até que vem o ano novo e o entulho começa a se acumular outra vez. Este ano decidi inovar na retrospectiva anual do Todoprosa, o que explica ter entrado mais cedo no assunto. Os destaques de 2010 na ficção nacional e estrangeira – sempre levando-se em conta livros lançados no Brasil – serão escolhidos pelos leitores, em votação que vai rolar aqui no blog em dezembro. A lista final dos dez livros concorrentes, entre brasileiros e estrangeiros, será preparada por mim, mas levando em consideração mais uma vez, ao lado de critérios pessoais, a participação do público. Fica então o convite, caro leitor: use a caixa…

A tinta eletrônica colorida e a derrota de Chico Buarque
Vida literária / 10/11/2010

Surge na China o primeiro leitor eletrônico com tela de e-ink colorida, que até aqui era considerada uma tecnologia comercialmente inviável. Começa a ser aterrado o fosso separa o Kindle e similares, excelentes para a leitura de livros, do iPad, genial para ver imagens. * E quando já davam o paciente como desenganado, o baixo custo do meio digital está provocando uma explosão de novas revistas literárias. Na Inglaterra. * Por fim, reproduzo uma carta de Adolfo Pinho Rosa, o crítico recluso, com um ponto de vista original sobre os prêmios literários que chovem sobre Chico Buarque: Caro Sérgio, Como você não ignora, os códigos de comunicação do mundo literário são frequentemente sutis. Parece-me que, em meio ao burburinho de satisfação, desagrado ou tédio provocado pelos prêmios concedidos recentemente ao autor de “O que será”, vem passando despercebido o cerne da questão. Vejamos: o homem lançou quatro romances e ganhou o Jabuti por três deles. Isso não lhe parece significativo? Pois garanto que o é. Ocorre que a conta não fecha. “Benjamin” não ganhou o Jabuti – com ênfase no “não”. E agora com exclamação, por favor: “Benjamin” não ganhou o Jabuti! Mera casualidade? Ora, não é preciso ser um…

O leitor está morto?
Vida literária / 08/11/2010

Muito interessante o ensaio do crítico argentino Damián Tabarovsky publicado ontem no bom caderno Ilustríssima da “Folha de S. Paulo”, sob o título “O escritor sem público”. Melhor avisar logo que se trata de coisa cabeçuda, cheia de frases como esta: “Nessa comunidade negativa, a leitura não se impõe sob o modo da distribuição (como no mercado) nem no da circulação (como na academia), mas como generalidade imaginária da particularidade”. O interesse do texto, apesar da opacidade, reside no fato de o autor buscar declaradamente uma superação do impasse em que parece ter empacado o debate literário das últimas décadas: a oposição frontal e pouco inteligente entre literatura “de mercado”, com sua ênfase na narrativa, e literatura “acadêmica” (isto é, valorizada por acadêmicos, não necessariamente e na verdade quase nunca escrita por eles), com sua apologia do trabalho de linguagem. Essa busca de síntese tem valor em si. O problema é que, se entendi o que Tabarovsky quis dizer, sua proposta de um novo radicalismo – que ele chama de literatura “de esquerda”, tomando o cuidado de ressalvar que o rótulo não coincide com o de posições político-partidárias – desemboca na exclusão sumária do leitor: “Em troca, é preciso pensar…

‘Outras cores’, de Pamuk: literatura é remédio
Resenha / 05/11/2010

Atrás da beleza dos livros de Nabokov há sempre algo de sinistro (ele usou essa palavra num dos seus títulos), um cheiro de tirania. Se a atemporalidade da beleza é uma ilusão, isto é em si um reflexo da vida e da época de Nabokov. Sendo assim, por que fui afetado por essa beleza, escrita, como é, nos termos de um pacto faustiano com a crueldade e o mal? (…) Para compreender melhor o que chamo de crueldade de Nabokov, examinemos o trecho [de “Lolita”] no qual Humbert visita o barbeiro na cidade de Kasbeam – só para passar o tempo, pouco antes de Lolita o deixar (de modo tão cruel, mas com toda a razão). Trata-se de um velho barbeiro de província, com o dom da tagarelice, e enquanto faz a barba de Humbert fala com volubilidade sobre o filho jogador de beisebol. Limpa os óculos no avental por cima de Humbert e deixa a tesoura de lado para ler recortes de jornal sobre o filho. Nabokov dá vida ao barbeiro em poucas frases miraculosas. (…) Mas no fim Nabokov joga sua última e mais chocante cartada. Humbert presta tão pouca atenção ao barbeiro que só no último instante…

História com beija-flor
Sobrescritos / 03/11/2010

O escritor moveu o dedo indicador e apagou o último arquivo com o último vestígio de sua extensa obra inédita. Levantou-se e andou até a janela. Nono andar. Abriu a janela e, uma perna depois da outra, sentou-se no parapeito de frente para a rua, sem olhar para baixo. Olhou, em vez disso, para a janela do vizinho da esquerda. Esta tinha uma floreira onde adejava um beija-flor minúsculo, de bico longo e curvo, pretinho com umas pinceladas branco-fosforescentes na cauda. Voltou ao computador e iniciou imediatamente uma nova obra. Foi salvo por aquele passarinho. Um beija-flor minúsculo, de bico longo e curvo, escreveu. Uma obra voltada para a beleza. Esta foi igualmente extensa e também ficou inédita até sua morte por peritonite, trinta e sete anos depois, e por toda a posteridade.

Vêm aí os romances customizados?
Pelo mundo / 01/11/2010

Há poucas semanas, perguntaram a Don DeLillo como as novas tecnologias digitais estão interferindo na literatura de ficção. Conhecido por sua paranoia e seu pessimismo, o autor de “Submundo” e “Ruído branco” se saiu com a seguinte previsão, que leva o festejado potencial de interatividade dos leitores eletrônicos para dar uma voltinha no inferno: Os romances serão gerados pelo usuário. A pessoa não só apertará um botão que lhe dará um romance adequado a seus gostos, necessidades e estados de espírito particulares, como também poderá projetar seu próprio romance, muito possivelmente tendo a si mesma como personagem principal. O mundo está ficando cada vez mais customizado, modificado segundo especificações individuais. Esse contexto de encolhimento mudará necessariamente a linguagem que as pessoas falam, escrevem e leem. A frase de DeLillo, que tinha me parecido apocalíptica demais e até meio tola quando a li, voltou-me à cabeça agora como contraponto a uma opinião de Alberto Manguel citada no artigo “A utilidade da ficção”, assinado por Carlos García Gual no caderno Babelia do último sábado: Alberto Manguel destaca a importância dos relatos de ficção para uma compreensão autêntica e panorâmica do mundo e de nossa existência acidental. Uma vez que vivemos em um…