K. é um jovem (na casa dos 40) e bem-sucedido escritor de língua alemã que vive em Buenos Aires com a mulher e a filha pequena, num apartamento tão amplo, belo e cinematográfico que não dispensa sequer um elevador de porta pantográfica que parece saído de “O bebê de Rosemary”. Eu não conheço K., nunca o encontrei, de modo que não saberia começar a explicar por que um jovem e bem-sucedido escritor suíço de língua alemã elegeu a capital argentina para viver, mergulhado num idioma que ele próprio – assim me dizem – não fala direito. Sequer li K., que jamais foi traduzido no Brasil e de quem ouvi falar apenas agora, já hospedado em sua casa, tornada imensamente vazia pelas férias africanas da família – sim, folheei alguns de seus livros na biblioteca, junto à lareira extemporânea, mas aqueles tomos podiam estar escritos em grego. Apesar de toda essa distância linguístico-existencial, a hospitalidade de K., por meio de amigos comuns, contribui decisivamente para tornar memorável minha passagem de ano portenha, entre dias que parecem querer competir com a temperatura dos ojos de bife fumegantes que alimentam meu corpo e noites frescas em que o vinho tinto torna-se subitamente inadiável…
– Tu tuíta? – Tuíto, e tu? – Tuíto, too. Publicado em 12/1/2010.
…dá tempo de comentar a eleição do livro do ano na Espanha por um time de críticos reunido pelo caderno “Babelia”, do jornal espanhol “El País”: ganhou “Verão”, de J.M. Coetzee, um híbrido de romance e memória que também por aqui foi acolhido generosamente. O livro, lançado no Brasil pela Companhia das Letras, não me agradou muito, como expliquei aqui num post de julho, mas teve inúmeros defensores – Michel Laub foi só um deles. Seja como for, é muito melhor ler sobre a vitória do escritor sul-africano do que ser informado de que “Psicopata americano”, de Bret Easton Ellis, vai virar musical da Broadway. Bem que o ano podia ter acabado sem essa.
Terceira e última parte do trecho de um ensaio de David Foster Wallace, tradução minha. Na verdade, a postura de tédio anestesiado e sem expressão – aquilo que um amigo meu chama de cara-de-garota-que-está-dançando-com-você-mas-obviamente-preferia-estar-dançando-com-outra-pessoa” – que se tornou a versão da minha geração para o cool tem tudo a ver com a TV. “Televisão”, afinal, significa literalmente o ato de “ver longe”; e nossas seis horas diárias não só nos ajudam a sentir proximidade e envolvimento pessoal com os Jogos Pan-Americanos ou a Operação Escudo do Deserto como, inversamente, nos adestra para lidar com aquilo que é realmente pessoal e próximo da mesma forma que lidamos com o distante e o exótico, como se estivesse separado de nós pela física, por uma chapa de vidro, válido apenas como performance, aguardando nossa resenha cool. A indiferença é na verdade, para os jovens americanos, apenas a versão anos 90 da frugalidade: cortejados muitas deliciosas horas por dia em troca de nada além de nossa atenção, consideramos tal atenção nossa principal mercadoria, nosso capital social, e relutamos em gastá-la. Da mesma forma, considere-se que, nos anos 90, a neutralidade apática e a postura cínica tornaram-se formas claras de transmitir a atitude televisiva de…
Segunda parte do trecho de um ensaio de David Foster Wallace, com tradução minha. Eu já afirmei – por enquanto de maneira um tanto vaga – que o que torna a televisão tão resistente às críticas da nova Ficção da Imagem é o fato de que ela cooptou as formas distintivas da própria literatura cínica, irreverente, irônica e absurdista do pós-Segunda Guerra que os novos Imagistas usam como pedras de toque. Ocorre que a reciclagem, pela TV, do cool pós-moderno evoluiu como uma solução inspirada para o problema de manter-João-ao-mesmo-tempo-alienado-da-e-integrado-à-multidão-de-um-milhão-de-olhos. A solução implicou uma gradual mudança de expressão, do excesso de candura para uma espécie de irreverência de menino mau, na Grande Face que a TV nos exibe. Isso por sua vez refletiu uma transformação mais ampla na percepção americana sobre como a arte deve funcionar, uma transição da arte como representação criativa de valores reais para a arte como rejeição criativa de valores fajutos. E essa transformação mais ampla, por seu lado, caminhou em paralelo ao desenvolvimento da estética pós-moderna e a certas mudanças graves e profundas no modo como os americanos optaram por encarar conceitos como autoridade, sinceridade e paixão em termos de nosso desejo de satisfação. Não…
Como presente de Natal aos leitores do Todoprosa, publico esta semana, em três partes, o trecho de um longo e brilhante ensaio de David Foster Wallace sobre as relações entre a televisão e a nova ficção americana que traduzi para a revista “Serrote” – e que teve apenas um pequeno naco aproveitado. O ensaio integral, E unibus pluram, encontra-se na coletânea A supposedly fun thing I’ll never do again, ainda não lançada no Brasil. O presente trecho foi batizado pelo próprio DFW de “A aura da ironia” e contém seu argumento central: o de que a ironia da ficção pós-moderna foi apropriada e esvaziada pela TV. Certos nomes de atrações televisivas à parte, o texto parece-me não ter envelhecido substancialmente desde os anos 90, quando o ensaio foi escrito. Espero que o aperitivo sirva de estímulo a quem quiser correr atrás do livro em inglês (disponível aqui) ou a editoras que se disponham a lançar a obra no Brasil. É fato amplamente reconhecido que a televisão, com sua bateria de estatísticos e pesquisadores de aros de tartaruga, sai-se terrivelmente bem na tarefa de discernir padrões no fluxo das ideologias populares, absorvendo-os, processando-os e em seguida reapresentando-os como estímulos para assistir…
“O único final feliz para uma história de amor é um acidente”, de João Paulo Cuenca, na ficção nacional, e “2666”, de Roberto Bolaño, na ficção estrangeira, foram escolhidos os livros de 2010 pelos leitores do Todoprosa, numa disputa que mobilizou 1326 votos (veja abaixo). Logo após o início da votação, no último dia 8, o tijolão de Bolaño disparou na frente e deixou claro que “Solar”, de Ian McEwan, o segundo colocado, teria poucas chances de alcançá-lo. Chegou ao fim com 41% dos votos, contra 20% do principal concorrente. A disputa nacional foi mais animada. Evidentemente turbinados por campanhas de caça ao voto na internet, João Paulo Cuenca e Elvira Vigna, de “Nada a dizer”, monopolizaram a competição até o fim, deixando Cristovão Tezza, Dalton Trevisan e Adriana Lisboa – esta, minha favorita pessoal com o belo e maduro “Azul-corvo”, seu melhor livro – com uma magra votação de coadjuvantes. A arrancada de Cuenca nas últimas 24 horas de votação lhe deu a vitória com 40% dos votos, contra 34% de Elvira. Pode-se discutir, claro, a validade de uma eleição que deixa em pé de desigualdade tão flagrante livros que contam com fãs interneticamente ativos e livros que apenas…
Livro do ano é pouco, vamos falar do livro da década! A sanha das listas de fim de ano levou o programa “Espaço Aberto Literatura”, da Globonews, a promover em seu site uma interessante enquete com a intenção de fechar uma lista dos melhores títulos literários nacionais e estrangeiros (predominantemente de ficção e poesia, embora apareçam algumas obras de outros gêneros) nesses primeiros dez anos do século 21. Tem graça? Claro que tem. Listas são bobagens, mas isso não as condena à inutilidade. Tentar recapitular uma década inteira é ainda melhor – porque envolve uma luta mais difícil com a memória fugidia – do que escolher os destaques de um único ano. Naturalmente, o grau de risco da tarefa também é maior. O “Espaço Aberto” tomou como ponto de partida para sua enquete as listas pessoais de dez profissionais ligados de formas variadas à literatura: André Seffrin, Claufe Rodrigues, Edney Silvestre, Flávio Carneiro, Heloisa Buarque de Hollanda, Humberto Werneck, Livia Garcia-Roza, Lucia Riff, Luciana Savaget e Ricardo Costa. No site, é possível consultar os dez títulos de cada um, embora, de forma meio confusa, apenas três de cada relação tenham se classificado para a votação final, que fica a cargo…
Os dois maiores escritores do meu tempo são Ernest Hemingway e JD Salinger. Ambos cruzaram a fronteira entre o século 20 e o 21 com sua originalidade, sua substância e seu poder de permanência intactos. Como repórter e como amiga – com o privilégio de brincar na sua área – foi excitante observar em primeira mão o gênio único dos dois escritores revelar-se de forma cada vez mais nítida com o passar dos anos. Ambos tinham um senso de humor muito particular – surpreendente, inimitável, em conversas, em cartas e em seu trabalho. Salinger me mantinha ao telefone por horas, morrendo de rir, falando de tudo e de todos à nossa volta. Ele adorava ler e adorava escrever. Hemingway costumava dizer que amava a parte de escrever, “mas não o que vinha depois”. O que veio depois para ele foram anos de inexplicável censura por ter tido a coragem e o gênio de nos dar prazer e iluminação duradouros na leitura. Nunca entendi a parte do “depois”, nem no caso de Hemingway nem no de Salinger. Temos visto tentativas deprimentes de derrubar Salinger também. Salinger amava as pessoas que criava e as protegeu até a sua morte. Ele nos deu…
Aprendo neste artigo da “Slate” (em inglês, acesso gratuito) que o primeiro guia conhecido de auto-ajuda para escritores foi publicado em Londres em 1895 por um jovem chamado Sherwin Cody. Intitulava-se How to write fiction (Como escrever ficção) e dava conselhos como estes: O público é como uma criança: quer ser tocado emocionalmente ou inconscientemente. Os homens geralmente pegam um bom tema e o desenvolvem mal, enquanto as mulheres pegam um tema fraco e o desenvolvem bem. Mas nem tudo eram generalidades tolas. Havia momentos de sensatez diante das incertezas do ofício: Ninguém deve fazer da escrita de ficção sua única atividade. E havia também formulações especialmente felizes como esta, que mais tarde ficaria conhecida pelo nome genérico de “não conte, mostre”: Dizer que sua heroína era orgulhosa e desafiadora não tem nem metade da eficácia de dizer que ela empinou o queixo e bateu o pé. Se o livro de Cody prova que o mercado dos aspirantes à glória literária, hoje vivendo uma explosão internética, foi descoberto faz tempo, demonstra também que uma certa dose de picaretagem já estava presente nesse mundinho desde o início: publicado sob um pseudônimo (An Old Hand) que sugeria décadas de estrada, How to…
Agora é com você, leitor. Está aberta aí embaixo a votação dos livros de 2010 – um de ficção nacional, um de ficção estrangeira. Foram considerados apenas títulos publicados este ano no Brasil – no caso dos estrangeiros, o critério permite a inclusão de um lançamento de 1963, como o de Natalia Ginzburg, ao mesmo tempo que exclui (porque ainda sem tradução) o romance que mais marolas provocou no cenário internacional em 2010, o superestimadíssimo Freedom, de Jonathan Franzen. A seleção de candidatos é responsabilidade minha. Agradeço aos leitores que deixaram suas sugestões na caixa de comentários. A campanha pela inclusão do romance brasileiro “As almas que se quebram no chão”, de Karleno Bocarro, despertou minha curiosidade para a leitura, que pretendo satisfazer em breve. No entanto, sem a experiência do texto em primeira mão e sem referências independentes, decidi não incluí-lo na lista. Outros títulos lembrados, como “A passagem tensa dos corpos”, de Carlos de Brito e Mello, e “A morte de paula d”, de Brisa Paim, não foram lançados em 2010 – um ano discreto para a ficção brasileira, aliás, apesar da qualidade dos cinco concorrentes abaixo. [poll id=”2″] [poll id=”4″]
Os consensos artísticos do futuro (do presente?) vão surgir (estão surgindo?) na rede, da rede, isso parece certo. Outro dia me perguntaram numa palestra o que acontece na era digital com o velho sistema de validação literária, que há tempos vinha se baseando na academia e nos estratos mais rarefeitos da imprensa de papel. Quem vai separar o joio do trigo no presente, no futuro? Parece evidente que, cada vez mais, quem vai dizer o que fica e o que merece ser lido é a rede – a mesma rede que eleva a uma potência inédita o número de candidatos a essa glória fugidia. É claro que isso não exclui por completo os atores tradicionais: universidade e imprensa também fazem parte da rede. Mas inclui outros personagens, “autoridades” que não dependem de títulos ou da chancela de um grande grupo de comunicação para se estabelecer – basta que tenham números consideráveis de seguidores. Pode-se ver nisso uma bem-vinda democratização ou o beijo da morte do pensamento crítico. Eu mesmo oscilo entre os dois pontos de vista. Mas o crítico e editor James Panero escolhe resolutamente a segunda opção neste artigo para “The New Criterion” (em inglês, acesso gratuito), no qual…
A princípio, acho que para tentar encontrar seu caminho nas letras você procura um modelo. E eu elegi quatro ou cinco que significaram muito para mim em meus anos de formação. Mas depois que está formado, então você lê basicamente à procura de coisas tão admiráveis que gostaria de ter feito você mesmo, e não está acima de, quem sabe, roubá-las, se conseguir achar um bom lugar para escondê-las. (…) Os jovens me perguntam sobre como se tornar escritores, mas eles na verdade não leram nada, nem mesmo coisas ruins. Nunca tiveram a experiência da leitura como felicidade. Ora, sem algum conhecimento sobre o que outros escritores fizeram, é muito difícil encontrar seu próprio caminho, eu acho. Suponho que todos sejamos ladrões. Nesta entrevista até agora inédita (em inglês, acesso gratuito), concedida a Lila Azam Zanganeh em 2006, John Updike fala com a sabedoria habitual sobre seu processo criativo, as relações entre arte e política e a diferença entre jornalismo e literatura, duas áreas em que foi igualmente prolífico. Mas fala sobretudo, por insistência da entrevistadora, de sua admiração por Vladimir Nabokov, que idiossincraticamente considera um escritor devotado à felicidade e ao prazer de viver. Quando Updike fala, a gente…