A palestra que o ficcionista e crítico argentino Ricardo Piglia deu esta semana em São Paulo (segunda-feira) e no Rio (quarta) durou pouco menos de uma hora. Pareceu durar dez minutos. Foi a primeira vez que as palavras do autor de “Respiração artificial” me chegaram pelos ouvidos, em vez de pelos olhos, e o ineditismo dessa experiência foi em si um princípio de revelação. Deu vontade de reler seus ensaios – como os de “Formas breves” e “O último leitor” – para investigar o papel do coloquialismo no peculiar embaralhamento pigliano de casos e anedotas com observações críticas penetrantes, que resulta numa espécie de milagre: um texto crítico que não precisa se refugiar no hermetismo ou na chatice para parecer profundo porque, ora, sabe que é. Naquela noite de quarta, enquanto tínhamos, eu e a Heloisa, o privilégio de jantar com o casal Piglia e usufruir de piadas que não haviam entrado na palestra, a seleção brasileira venceu a argentina por 2 a 0. Mas para mim ficou claro que, no campo da crítica literária, qualidades como clareza, humor e generosidade impõem ao Brasil uma derrota de goleada. Intitulada “Romance e tradução”, a conferência do maior escritor argentino vivo (vídeo…
O blog Booklicious tem, toda quarta, uma seção chamada Bookcase Wednesday, dedicada a estantes criativas, belas, inspiradoras, bizarras ou apenas, no sentido mais amplo possível, interessantes. Está certo que, como ocorre frequentemente com designs ousados, é comum a forma se sobrepor à função. Mesmo assim, recomendo visitas regulares a todo mundo que, amando livros, aprendeu a amar também o lugar onde eles moram. Esta estante minimalista aí ao lado, por exemplo, eu não me incomodaria nem um pouco de ter em casa. * Livros perdidos. O primeiro romance de Arthur Conan Doyle, criador do detetive Sherlock Holmes, chega às livrarias quase 130 anos depois de extraviar no correio. Coincidentemente, o site da Smithsonian faz uma lista de dez livros perdidos – de Homero, Shakespeare, Melville etc. – que provavelmente nunca terão a mesma sorte. * “É a lei pérfida mas fatal do corte, que – como toda droga – põe em primeiro plano um de seus efeitos, o efeito imediato, ‘bom’, e faz com que passe despercebido o outro, o efeito tempo, que previsivelmente nunca traz senão deterioração, tristeza, decadência.” Esse trecho do romance “História do cabelo”, de Alan Pauls (Cosac Naify), comentado aqui por seu editor, o não-careca Emilio…
Escrever um romance é como fazer uma cadeira. Você projeta, serra, prega, depois senta para experimentar e, se não desabar, é um romance. Aí lixa, pinta, enverniza o quanto quiser, ou não, deixa tudo tosco, não importa porque, se a cadeira não desabou, já é um romance. Não, escrever um romance não tem nada a ver com marcenaria, está mais para alquimia. Você mistura os líquidos e fica esperando a explosão, que, aliás, raramente vem. Depois bota numa garrafa e cola um rótulo com duas orelhas e diz: “Escrevi um romance”. Não é nada disso, caramba. Escrever um romance é só um gesto de suprema vaidade, um desafio lançado ao tempo por um mortal patético que não se conforma em desaparecer tão misteriosamente quanto apareceu e faz questão de deixar na parede da caverna uma mensagem para os arqueólogos de um futuro que nunca chegará. Engraçado, para mim é diferente. Escrever um romance é uma das três coisas que todo mundo precisa fazer na vida, junto com plantar uma árvore e ter um filho, simples assim. E agora parece que todo mundo está levando isso a sério mesmo, nem tanto a parte do filho, mas certamente a da árvore e…
Um texto sobre o romance “Esperando Zilanda” ([e] editorial, 2010), bom livro de estreia da escritora carioca Tamara Sender, garantiu a Felipe Charbel o primeiro lugar no I Concurso Todoprosa de Resenhas – Brasil, século 21. Experiente no ramo, Charbel produziu uma apreciação crítica lapidar em que descrição, interpretação, referências a outras obras e texto apurado se fundem com enganosa facilidade. Para seguir à risca a receita da boa resenha segundo John Updike, só faltou citar um trecho mais encorpado da obra, a fim de que o leitor pudesse julgar por si mesmo o estilo do autor – regrinha que, naturalmente, não é obrigatória e que raros concorrentes seguiram. Em suas próprias palavras, Charbel “é professor adjunto de Teoria da História na UFRJ e autor do livro ‘Timoneiros: retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini’ (Editora da Unicamp, 2010). Foi jurado da Copa de Literatura Brasileira em 2008 e 2009”. O primeiro colocado ganha um pacote com os seguintes livros: “Mecanismos internos”, de J.M. Coetzee; “O mal de Montano”, de Enrique Vila-Matas; e “Sobrescritos”, de Sérgio Rodrigues. O segundo lugar leva “Borges oral & sete noites”, de Jorge Luis Borges, e “Se um de nós dois morrer”, de Paulo…
Com um texto sobre o romance “Mãos de Cavalo”, de Daniel Galera (Companhia das Letras, 2006), Leonardo Petersen Lamha ficou com a segunda posição no I Concurso Todoprosa de Resenhas – Brasil, século 21. A sacada do personagem “em dúvida sobre seu próprio arco dramático” me parece uma contribuição relevante à leitura desse livro já tão comentado. Em suas próprias palavras, Lamha “tem 23 anos, cursa o último período de Comunicação Social com habilitação em Cinema na PUC-Rio. Está se especializando em Roteiro Cinematográfico e estuda literatura paralelamente à faculdade, mas é antes de tudo um leitor”. A resenha vencedora será publicada na sexta-feira. A GLÓRIA DE UM COVARDE, de Leonardo Petersen Lamha “Mãos de Cavalo”, de Daniel Galera, abre com um capítulo que pode ser lido como um mito fundador das futuras obsessões do personagem, quando adolescente e adulto, e estabelece alguns temas que serão recorrentes, tais como como o corpo levado ao limite, a violência física, o exercício físico como fuga, frustração, vergonha e autoconsciência: um garoto (Hermano) de dez anos, espetacularmente pedalando pelas ruas, leva um tombo e vê pela primeira vez o seu sangue escorrendo. O livro intercala duas tramas que contam duas fases distintas da…
Publico hoje o primeiro dos textos vencedores do I Concurso Todoprosa de Resenhas – Brasil, século 21. Terceira colocada na disputa, a resenha assinada por Gilda Oswaldo Cruz chegou de Lisboa e discorre de modo competente – ainda que em tom mais descritivo que analítico – sobre o romance “Traduzindo Hannah”, de Ronaldo Wrobel, lançado ano passado pela editora Record. O segundo colocado será publicado na quarta-feira e o primeiro, na sexta. Em suas próprias palavras, Gilda “é pianista e escritora. Reside na Europa desde 1984 e dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros em Barcelona. Tem CDs dedicados à música de Claudio Santoro (Biscoito Fino) e publicou em 2010 o romance ‘Na sombra do herói’ (Topbooks)”. TRADUZINDO A CONDIÇÃO JUDAICA, de Gilda Oswaldo Cruz Ambientado no período da violenta repressão da ditadura de Vargas aos comunistas no Rio de Janeiro, de meados da década de 30 até o fim da guerra em 1945, este é um romance de formação que reconstitui, com humor agridoce e uma rara verve narrativa, a vida, os costumes e as vicissitudes de integrantes da pequena colônia judaica carioca instalada nos arredores da extinta Praça Onze, no centro da cidade. Quem leu “Olga”, de Fernando Morais,…
O poeta faz a barba, contente. O espelho lhe devolve isso: o poeta faz a barba. E acordou contente. Se o poeta se enxergasse, se tivesse um espelho de mínima fidelidade diante de si, talvez não estivesse tão contente. O poeta é barrigudo, preguiçoso, solteirão, duro, meio dependente da mãe, bebe demais, fuma maconha demais, precisa tratar dos dentes. Além disso é dado a surtos de mau humor que, ao longo dos anos, já lhe custaram muitas e queridas amizades. Só que o poeta não enxerga nada disso. O que o seu espelho lhe devolve é um poeta. De barba feita. Desce para a rua e, na primeira esquina, o mendigo de todo dia lhe pede esmola. O poeta, como todo dia, finge que não ouve. Vê o primeiro carrinho de bebê a simbolizar a criação, tão harmônico com as manhãs. No sinal vermelho de pedestre aguarda civilizado, mas pensa: e se uma bomba de nêutrons explodisse agora, simbolizando a morte, o fim? Tenta compor versos por livre associação. Bomba de nêutrons meio da manhã. Seios de Neuza rebentar de frutas. Nem bênção memória de lesmas restantes. Distraído, quem será essa Neuza?, o poeta demora a perceber que o sinal…
Dagoberto Castro de Menezes fechou seu Ovídio magro ricamente encadernado e o pousou na banqueta Joaquim Tenreiro ao lado da Bergère, de onde tomou da xícara fumegante de Darjeeling e de um Agamben que lia com apetite cada vez mais magalizesco, para citar Maurício. Leu concentradamente por quarenta e oito minutos. De repente pôs o livro de lado e pulou da poltrona pensando no homo sacer. A tarde envelhecia. Puxou uma cordinha. Um minuto depois, quando o mordomo apareceu, comandou a carruagem para as seis em ponto. O recital seria às oito e meia, queria jantar antes. A hora e tal que lhe restava ao ócio Dagoberto, ou Castro de Menezes, como ele preferia, a empregou em seu passatempo predileto, pequena extravagância que um dia, em momento de exasperação, tivera a fortuna de criativamente improvisar: dar de comer à lareira sólidos toros de literatura brasileira contemporânea. Deitados lânguidos ao fogo, os livros iam mudando de estado no mundo da matéria num belo espetáculo de chamas coloridas, e Dagoberto Castro de Menezes (usemos o nome todo, para evitar confusão) se deu conta de que aquilo era puro homo sacer, sim, claro! Ficou feliz com a ideia, era isso mesmo: a literatura…
Peço desculpas a todo mundo que comprou meu ebook “Baby, I’m yours” e leu na página 293: “Ele se retesou por um instante, mas então ela sentiu seus músculos ficando mais relaxados, e ele cagou no chão”. Susan Andersen, autora americana de romances românticos conhecida por adicionar pitadas de pimenta na massa açucarada, foi obrigada a esclarecer que não, seu herói não precisa de fralda geriátrica e de modo algum lhe passaria pela cabeça ser tão deselegante com a mocinha. Andersen avisa que não escreveu “cagou” (shitted) e sim “mudou de posição” (shifted). Mudou de posição (shifted), ele MUDOU DE POSIÇÃO (SHIFTED)! Com sorte, isso talvez esteja só na versão em iBook que eu comprei, mas se estiver na sua também, por favor, me avise. Já entrei em contato com a editora para implorar que o problema seja corrigido imediatamente. Tarde demais para nós… pelo amor de Deus. Alison Flood, do “Guardian”, chamou essa troca de um f por um t de “melhor erro de edição de todos os tempos”. Perde na tradução, uma pena, mas é no mínimo candidato ao título. A preparação da frase escrita por Andersen (retesou-se, relaxou) é perfeita. O site Smart Bitches Trashy Books preferiu…
Na literatura – sobretudo a americana, mas não apenas nela – o principal efeito da queda das Torres Gêmeas, que completa dez anos neste domingo, foi o surgimento de um novo subgênero, chamado em inglês de 9/11 novel, “romance do 11 de setembro”. Agrupar no escaninho de um subgênero as muitas obras de ficção que tentaram dar conta do impacto psicossocial “extremamente alto” do atentado (para citar o título de Jonathan Safran Foer que ajudou a engordar essa leva) tem um risco: o de mascarar sua razoável variedade de forma e conteúdo. Como fenômeno mercadológico, porém, o termo se aplica. Autores consagrados como John Updike, Don DeLillo, Ian McEwan, Art Spiegelman, Paul Auster e Martin Amis se atracaram com o tema, como se deixar o fato sem uma resposta imediata representasse uma nova derrota, desta vez artística. Curiosamente, os primeiros momentos após a tragédia passavam longe de anunciar tanto apetite. O inglês Amis chegou a dizer que “depois de algumas horas diante de suas escrivaninhas, no dia 12 de setembro de 2001, todos os escritores do mundo estavam considerando relutantemente mudar de profissão”. Havia uma sensação pós-traumática de que as palavras tinham perdido o sentido. Com seu conto “Os últimos…
Diversão de feriado: uma curiosa lista de dez musas da literatura em todos os tempos, feita pelo blog coletivo “Mais 1 Livro”. Espera aí, Mayra Dias Gomes está dentro e a jovem Lygia Fagundes Telles (foto), fora?! Será que estamos nos entendendo sobre o significado da palavra “musa” – ou, por falar nisso, da palavra “literatura”? Pois é. Como ocorre com todas as listas do gênero, a melhor parte da diversão é discordar. * Três anos após se suicidar, no dia 12 de setembro de 2008, o escritor americano David Foster Wallace ainda dá trabalho à posteridade, que não consegue se decidir sobre o seu tamanho real. A última voz de peso a dizer que ele não é tão grande assim – ecoada por Maude Newton no “New York Times” – foi a do inglês Geoff Dyer, que, como DFW, transita entre a ficção e o ensaio jornalístico. Dyer mirou justamente nos ensaios de Wallace, afirmando que “tem surtos de alergia mental” quando é obrigado a lê-los: “Não é que eu não goste da extravagância, do excesso, do barroco de colegial, da incrível verborragia. Eles simplesmente me deixam todo empolado”. Da minha parte, acho que Dyer devia tomar um Fenergan….
No sábado, publiquei aqui no blog vizinho VEJA Meus Livros o resultado de uma ótima conversa, entre expressos e capuccinos, com o escritor português (nascido em Angola) Gonçalo M. Tavares, que veio ao Rio para participar da Bienal do Livro. O festejado escritor de 41 anos, para quem José Saramago vaticinou o Prêmio Nobel, discorre sobre seu peculiar método de trabalho e sua produtividade quase insultuosa, além de falar com simpatia sobre a literatura brasileira contemporânea e o uso que aqui fazemos do português – língua que acredita fadada a brilhar internacionalmente no futuro próximo. A quem ainda não leu a entrevista, recomendo dar um pulo lá. De bônus, seguem três respostas que ficaram fora da edição final: Você começou a escrever copiosamente – “obsessivamente”, como diz – muito cedo. Drummond tem uma frase boa sobre o que a escrita tem de renúncia: “Escrever impede a conjugação de tantos outros verbos”. Essa renúncia o incomoda? – A frase é boa, mas a escrita não é uma coisa fora da vida. Nós não saímos da vida para escrever e depois voltamos. Alguns dos momentos mais extraordinários que eu tive têm a ver com a escrita. Não aceito a separação entre o…
O mantra de que poucos leitores brasileiros estão interessados na ficção escrita hoje no país, entoado por escritores e críticos, só se sustenta por meio do artifício de excluir do campo da ficção nacional o maior fenômeno de popularidade do século 21. Sim, faz tempo que nossas listas de best-sellers viraram terra estrangeira, mas dificilmente alguma estrela internacional arrastará tanta gente à Bienal do Livro do Rio, que ocupa até dia 11 o Riocentro, quanto a escritora carioca Thalita Rebouças. Aos 36 anos, Thalita atingiu este ano a marca de 1 milhão de exemplares vendidos ao longo de dez anos de carreira, uma montanha de livros erguida com onze títulos voltados para um público-alvo muito preciso: adolescentes e pré-adolescentes do sexo feminino. “Para mim leitor é leitor, pode ter 8, 13, 20, 30 ou 60 anos”, diz ela. Numa divertida entrevista deste ano a Jô Soares, Thalita lembrou a Bienal de 2001, quando subiu numa cadeira para apregoar aos passantes perplexos as qualidades de seu primeiro livro, “Traição entre amigas”. Em artigo publicado ontem no blog da Companhia das Letras, o editor Luiz Schwarcz poderia estar falando dela quando diz: “Se hoje sabemos que não é correto julgar as pessoas…