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Uma manhã na vida do poeta
Sobrescritos / 16/09/2011

O poeta faz a barba, contente. O espelho lhe devolve isso: o poeta faz a barba. E acordou contente. Se o poeta se enxergasse, se tivesse um espelho de mínima fidelidade diante de si, talvez não estivesse tão contente. O poeta é barrigudo, preguiçoso, solteirão, duro, meio dependente da mãe, bebe demais, fuma maconha demais, precisa tratar dos dentes. Além disso é dado a surtos de mau humor que, ao longo dos anos, já lhe custaram muitas e queridas amizades. Só que o poeta não enxerga nada disso. O que o seu espelho lhe devolve é um poeta. De barba feita. Desce para a rua e, na primeira esquina, o mendigo de todo dia lhe pede esmola. O poeta, como todo dia, finge que não ouve. Vê o primeiro carrinho de bebê a simbolizar a criação, tão harmônico com as manhãs. No sinal vermelho de pedestre aguarda civilizado, mas pensa: e se uma bomba de nêutrons explodisse agora, simbolizando a morte, o fim? Tenta compor versos por livre associação. Bomba de nêutrons meio da manhã. Seios de Neuza rebentar de frutas. Nem bênção memória de lesmas restantes. Distraído, quem será essa Neuza?, o poeta demora a perceber que o sinal…